Eis um teste de filosofia fora do estereótipo dos testes que os autores dos manuais escolares da Porto Editora, Leya, Santillana, Areal Editores, etc, divulgam. E sem questões de escolha múltipla que, frequentemente, são incorrectamente concebidas por quem não domína o método dialético e desliza para a horizontalidade da filosofia analítica vulgar. Os conteúdos deste teste de filosofia referentes a alquimia, cabala e princípio das correspondências macrocosmos-microcosmos integram-se na rubrica «Os grandes temas da filosofia» e são relativos a uma visita de estudo ao centro histórico de Sevilha em que se fez hermenêutica de monumentos antigos e seus pormenores artísticos.
Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA A
11 de Fevereiro de 2016. Professor: Francisco Queiroz.
I
"A filosofia da alquimia, que aceita as noções de pleroma, kenoma e hebdómada, sustenta a divisa «solve e coagula» e a existência de três princípios/ substâncias do universo material. Na Grande Obra Alquímica, que traduz a lei dialética do uno, há quatro fases correspondendo uma ave a cada uma. O princípio das correspondências macrocosmo-microcosmos foi usado na construção da catedral medieval."
1)Explique, concretamente este texto.
2) Relacione, justificando:
A) Seis esferas da árvore cabalística dos Sefirós, as respectivas qualidades, cores e planetas associados a cada uma, e a planta do templo cristão medieval.
B) Lei da luta de contrários, por um lado, e taoísmo, Adão Kadmon, e binómio realismo/idealismo, binómio ética deontológica/ ética teleológica por outro lado.
C) Vontade autónoma/ vontade heterónoma, eu fenoménico e eu numénico em Kant, por um lado, e três partes da alma na teoria de Platão, por outro lado.
D) Máxima e imperativo categórico em Kant e o princípio moral do utilitarismo em Stuart Mill
CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 20 VALORES
1) A filosofia da alquimia, doutrina esotérica, hermética que sustenta o processo da Grande Obra ou criação laboratorial da pedra filosofal que concederia a imortalidade ao homem, dotando-o de um corpo astral desmaterializado como o mítico Adão Kadmon (metade homem e metade mulher), defende que há três princípios/ substâncias originárias do universo, o enxofre ou homem vermelho (princípio masculino), sólido, o mercúrio filosófico ou mulher branca (princípio feminino), volátil, e o sal, neutro. A divisa «solve e coagula» significa dissolver o enxofre, sólido, e coagular o mercúrio líquido ou gasoso que se esparge pelas esferas celestes de forma a obter o equilíbrio e a pedra filosofal, ou lapis vermelho. O pleroma é o mundo divino, da luz, o mundo dos éons ou dos arquétipos perfeitos, o kenoma é o vazio, das trevas e da matéria exterior ao pleroma, a hebdómada é o mundo das sete esferas planetárias que tem a Terra no centro, criado por Deus ou pelo demiurgo (deus inferior) no seio do kenoma para alojar Adão que, ao sair do Éden atraído por Lúcifer, se materializou e perdeu Sofia, a sua metade espiritual (VALE QUATRO VALORES). As quatro fases da Grande Obra Alquímica que visa produzir o elixir da longa vida ou pedra filosofal em laboratório são: nigredo, ou fase negra, da putrefação da matéria transformada no laboratório a que corresponde o corvo; albedo, ou fase branca de separação das impurezas, a ave é o cisne; citredo, ou fase multicolor, de alguma dominancia do amarelo limão, a ave é o pavão; rubedo, ou fase vermelha na qual se dá a produção da pedra filosofal cuja ave é a fénix. A lei do uno sustenta que tudo se relaciona e isso exemplifica-se no facto de estas quatro fases da Grande Obra estarem ligadas entre si num processo de continuidade. (VALE TRÊS VALORES). O princípio das correspondências microcosmo-microcosmo da filosofia hermética sustenta que o que está em baixo é como o que está em cima, há uma analogia entre o microcosmo ou pequeno universo e o macrocosmo ou grande universo. Assim, o templo cristão da idade média obedeceu a essa lei: o macrocosmos seria um corpo gigantesco de Cristo de braços abertos que atravessaria o universo inteiro e o templo a construir seria um macrocosmos que imitaria, em forma de cruz, esse corpo macrocósmicos. A abside do templo, orientada a Este, ponto cardeal onde nasce o Sol (Cristo é o Sol espiritual) equivale à cabeça, o transepto aos braços abertos, o altar ao coração, as naves ao tronco e pernas de Cristo. (VALE DOIS VALORES).
2-A) A árvore das Sefirós (Esferas) é o diagrama do universo, segundo a Cabala (ensinamento secreto) judaica, uma «heresia» do judaísmo como religião de massas. Essa árvore de 10 esferas, que são 10 qualidades manifestas de Deus, é composta de um hexágono em cima, um triângulo debaixo deste e um ponto isolado no fundo. Podemos aplicar este diagrama à planta em cruz da catedral cristã fazendo coincidir Kéther, a primeira Sefiró, com a abside do templo, Binan e Guevurah com a extremidade esquerda do transepto, Hockman e Chesed com a extremidade direita do transpeto, Tiferet com o altar no pilar central.
KÉTHER (Coroa)
Planeta: Úrano
Esfera nº 1
Cor : Indefinida
BINAH: CHOCKMAH
Esfera nº 3 Esfera nº 2
Inteligência Sabedoria
Feminina Masculina
Saturno Neptuno
Cor Negra Cor iridescente
GUEVURAH CHESED
Esfera nº 5 Esfera nº 4
Justiça Misericórdia
Marte Júpiter
Cor: Vermelho Cor Azul
THIPHERET
Esfera nº 6.
Beleza.
Sol.
Cor: amarelo ouro.
(VALE TRÊS VALORES)
2. B) A lei da luta de contrários sustenta que a essência e o motor de desenvolvimento de cada fenómeno ou ente é uma luta de contrários. No taoísmo, antiga filosofia chinesa, o Tao ou mãe do universo divide-se numa luta entre o Yang e o Yin, o fluxo da onda (Yang) e o refluxo desta (Yin), a luz do dia (Yang) e a escuridão da noite (Yin), a diástole (Yang) e a sístole (Yin), o crescimento (Yang) e o decréscimo (Yin), o masculino (Yang) e o feminino (Yin), o vermelho e o laranja (Yang) o azul e o violeta (Yin), o verão e o calor (Yang), o inverno e o frio (Yin). O Adão Kadmon, antepassado mítico do homem, é uma luta de contrários: a sua metade direita é masculina, a sua metade esquerda é feminina. O realismo e o idealismo são contrários: o primeiro afirma que há um mundo de matéria, real em si mesmo, fora das nossas mentes e anterior a elas, ao passo que o idealismo diz que o mundo material é uma ilusão fora do corpo, é apenas percepções e ideias da nossa mente. As éticas deontológicas são, supostamente, não hedónicas, põem o dever à frente do prazer. ao passo que as éticas ditas teleológicas (télos significa finalidade) colocam o prazer, finalidade da acção, à frente do dever.(VALE QUATRO VALORES)
2-C) A vontade autónoma reside no eu numénico, ou eu racional, na doutrina de Kant, e permite a cada pessoa universalizar a sua máxima ou princípio subjetivo, agir de acordo com o imperativo categórico que cada um gera no seu eu racional: trata cada ser humano como um fim em si mesmo, alguém digno de respeito, e nunca como um meio para chegares a fins egoístas. Isto liga-se ao Nous ou parte superior, racional, da alma humana, em Platão, que contempla os arquétipos e dirige os filósofos.reis que vivem colectivamente, sem ouro nem prata, numa casa do Estado e fazem as leis. Também se liga ao Tumus ou parte intermédia da alma que representa o valor militar dos guerreiros, auxiliares dos filósofos-reis. A vontade heterónoma situa-se no eu fenoménico ou eu empírico e é governada por interesses materiais, instintos e paixões contrárias ao eu racional e exprime à parte inferior da alma humana, a epythimia ou concupiscência, sede dos prazeres egoístas de enriquecer materialmente com ouro e prata, comer requintadamente, desfrutar vida luxuosa, etc. (VALE TRÊS VALORES).
2-D- O imperativo categórico ou verdadeira lei moral postula: «Age como se quisesses que a tua ação fosse uma lei universal da natureza». Resulta da universalização da máxima, da aplicação equitativa do princípio subjectivo moral de cada um ou máxima. Exemplo: se a minha máxima é «Combato a vacinação obrigatória porque as vacinas infectam o organismo» o meu imperativo categórico será «Vou difundir a ideia de que a vacinação é nociva e não me vacinarei nem as minhas filhas, quaiquer que sejam as sanções contra mim.» O princípio moral de Stuart Mill é, em cada situação, promover a felicidade da maioria das pessoas, mesmo sacrificando a minoria. Em regra, isto opõe-se ao imperativo categórico de Kant que é absolutamente equitativo e trata por igual todos os indivíduos. (VALE UM VALOR)
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Aristóteles classificou a virtude de modo muito semelhante ao que Kant viria a fazer séculos depois: não como um sentimento espontâneo, nem um talento natural, mas como um hábito de acção. Escreveu:
«E posto que na alma há três géneros de coisas somente: afectos, faculdades e hábitos, a virtude há-de ser, necessariamente, algum destes três géneros de coisas. Chamo afectos a avareza, a ira, a sanha, o temor, o atrevimento, a inveja, o regozijo, o amor, o ódio, o desejo, os ciúmes, a compaixão, e geralmente tudo aquilo a que é anexa tristeza ou alegria. E faculdades, aquelas por cujas causas somos nomeados ser capazes destas coisas, como aquelas que nos tornam aptos para nos zangarmos, nos entristecermos ou nos doermos. (...) De maneira que nem as virtudes nem os vícios são afectos, porque, por razão dos afectos, não nos chamamos bons nem maus, como nos chamamos por causa das virtudes e vícios.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro II, Capítulo V, pag 81 do volume I da edição espanhola de Folio)
«É, pois, a virtude hábito voluntário, que no que nos diz respeito consiste em uma mediania estabelecida pela razão e como a estabeleceria um homem dotado de prudência; e é a mediania de dois extremos maus, um por excesso e outro por defeito.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro II, Capítulo VI, pag 84 do volume I da edição espanhola de Folio; a letra a negrito é por mim colocada.)
Aristóteles diz, pois, que a nossa bondade ou maldade não reside nos instintos - de que os afectos são expressão- nem nas predisposições genéticas orgânicas - as faculdades: a inteligência, a acuidade visual, auditiva, táctil, etc - mas nos hábitos bons (virtudes) ou maus (vícios) que desenvolvemos. Assim ser bom ou mau tem a marca da vontade, do livre arbítrio. Note-se que o termo "virtude" (areté em grego) é, em Aristóteles, um exercício da vontade. Em outros pensadores, a virtude poderá designar o talento inato - a beleza física, a capacidade atlética, a inteligência - mas em Aristóteles não. A diferença entre a "virtude" em Aristóteles e a boa vontade, em Kant, está em que a primeira é uma mediania especificada, - divide-se em espécies: sabedoria, prudência, liberalidade, temperança, etc - substancial, entre o «eu» e os outros «eus» ou entre o «eu» e o seu modelo ideal e a segunda não, é uma mediania formal, simétrica, entre o «eu» e a totalidade dos «eu» dos outros.
Se a ética de Aristóteles se designa por «ética da virtudes» não há razão para não designar a ética de Kant por «ética da virtude da equidade». A equidade é a igualdade de tratamento e benefício para com todos os seres humanos, qualidade que Kant considera ser o pilar da lei moral autêntica de cada um. Ambas as éticas são deontológicas (deón significa dever, corrente, em grego), isto é, assentam no dever, fornecem descrições das situações morais e dos meios ao alcance de cada homem (descritivismo) e prescrevem normas de conduta (prescritivismo). Não pode haver dúvida de que a ética de Aristóteles é deontológica. Na "Ética a Nicómaco" Aristóteles prescreve o dever de obedecer às leis, em particular de ser temperado, não cometer adultério, não fugir, não ofender ninguém, não levantar armas contra outrém:
«Porque também manda a lei que se façam as obras próprias do homem valoroso, como não desamparar a ordem, não fugir, não lançar as armas. E também as que são do varão temperado, como não cometer adultério, não fazer afronta a ninguém: do mesmo modo a do varão manso, como não ferir ninguém, não injuriar, e da mesma maneira nos demais géneros de virtudes e vícios, mandando umas coisas e proibindo outras, o que a lei que está bem feita faz bem, e faz mal a que está forjada de forma repentina e sem conselho amadurecido.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro V, Capítulo I, pags 154-155 do 1º tomo da da edição espanhola de Folio; a letra a negrito é por mim colocada.)
Classificar a ética de Aristóteles de "deontológica" não é consensual. Esta encontra-se a meio caminho entre a ética estóica, racionalista ascética, deontológica por excelência (porque razão se considera Kant como o modelo da deontologia e não os estóicos?) e a ética hedonista, sensualista de Aristipo de Cirene.
Aristóteles definiu a boa vontade como um "amor sem desejo", que abarca até os desconhecidos:´
«A boa vontade parece-se algo à amizade, mas não o é, porque a boa vontade pode-se ter para com os que não são conhecidos, e pode ser sem que se entenda, mas a amizade não. Mas isto já foi dito. Mas tampouco é aficção, porque a boa vontade não tem porfia nem desejo, mas na aficção ambas estas coisas se acham. Do mesmo modo a aficção vai acompanhada de conversação, mas a boa vontade emerge repentinamente, como acontece entre os que se combatem, aos quais outros se aficcionam e com eles desejam a vitória, mas nem por isso se põem a ajudá-los. Mas, como dissemos, a boa vontade ocorre repentinamente, e os que a têm, amam assim simplesmente, sem afecto. Mas parece que esta boa vontade é princípio da amizade, da mesma maneira que dos amores o é o deleite da vista, porque ninguém ama sem que primeiro se agrade com a vista, e ainda que um se agrade pela visão, nem por isso ama, a não ser quando chega a sentir a ausência, e deseja gozar a presença. (...) E assim, falando como que por metáfora, poderia alguém dizer que a boa vontade é uma amizade remissiva ou tíbia, a qual, se persevera e vem a confirmar-se como conversação, converte-se em amizade, mas não das que se fundam em utilidade e deleite, porque nestes não há boa vontade. »(Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro IX, Capítulo V, pag 190-191 do volume 2 da edição espanhola de Folio; o negrito é colocado por mim)
A boa vontade em Aristóteles é pois uma atitude benévola, não interesseira, para com qualquer pessoa . Em sintonia com esta noção, Kant escreveu:
«Como a própria lei moral há-de ser o móbil numa vontade moralmente boa, o interesse moral supõe o interesse de uma razão prática simples que seja puro e independente dos sentidos.» (Immanuel Kant, Crítica de la Razón práctica, pag 172, Alianza Editorial; o negrito é de minha autoria).
Poderá objectar-se que a boa vontade ou vontade autónoma, isto é, a vontade de fazer o bem ou de fazer justiça sem olhar a quem, na doutrina de Kant, conduz, em certas condições, a atitudes de punição física ou moral de um certo número de indivíduos, incluindo a prisão e a execução. É o caso por exemplo das execuções de colaboracionistas com o nazismo, ocorridas em França em 1944-1946, sob a égide do governo provisório de libertação nacional presidido por De Gaulle: havia que condenar a longas penas de prisão ou fuzilar os que trairam a pátria francesa, colaborando vergonhosamente com a ocupação militar hitleriana. Mas, mesmo nesse gesto punitivo, há benevolência para com os cidadãos em geral, sem discriminações. A punição dos traidores e criminosos publicamente reconhecidos produz bem-estar e tranquilidade nos restantes cidadãos.
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