Sartre move-se, tal como Heidegger, no paradoxo posicional da fenomenologia: perspectivar, de fora, o mundo físico e a consciência do sujeito (designada de para-si, em Sartre) como se fosse um terceiro Olho, exterior, num hiper realismo, e, simultaneamente, perspectivar a partir de dentro da consciência do sujeito o mundo físico exterior por saber que é impossivel abandonar, por completo, o «Cogito» de Descartes, perspectiva traduzida, de diferentes modos, no idealismo e no realismo. O esforço de Sartre para destacar o primado da coisidade material, que integra a facticidade, sobre a consciência subjectiva é visível. No entanto, na linha da fenomenologia heideggeriana, Sartre fala na situação como correlação sujeito (para si) / objecto material (em si). Escreveu:
«A situação é o sujeito inteiro (ele não é nada a não ser a sua situação) e é também a coisa inteira (nunca há mais nada senão as coisas) . É o sujeito a elucidar as coisas pela sua própria superação, se assim quisermos; ou são as coisas a reenviar ao sujeito a imagem dele. É a total facticidade, a contingência absoluta do mundo, do meu nascimento, do meu lugar, do meu passado, dos meus redores, do facto do meu próximo - e é a minha liberdade sem limites como o que faz com que haja para mim uma facticidade.»
(Sartre, "O Ser e o Nada", Círculo de Leitores, pag 541; o negrito é posto por mim).
A confusão neste texto de Sartre reside no seguinte: a liberdade não faz com que haja uma facticidade, isto é, um estado de coisas inevitável e incontornável (exemplo: o meu rosto, o meu capital genético, a família e o meio onde nasci e cresci, etc). É o inverso que, originariamente, acontece. A facticidade é anterior, ontologicamente, à liberdade. Não escolhemos o corpo ou a família em que nascemos, ainda que a posteriori possamos agir sobre um ou outra segundo o nosso livre-arbítrio. Decerto, a liberdade pode escolher uma das várias escarpas do promontório rochoso da facticidade, em momentos ulteriores - supondo que o fatalismo não existe, claro. Mas essa escolha não é uma criação a partir do nada, um poder infinito da liberdade, como a frase acima, de Sartre, sugere. Não existe a liberdade infinita.
Outro paradoxo implícito no texto consiste nisto: o sujeito, o para-si, é um "nada" mas ao escolher entre as diversas vias da situação - de que ele é uma componente móvel e activa - modifica esta, desenvolve certas facetas desta e enfraquece outras. Por exemplo: se alguém é pouco musculado, pode decidir frequentar um programa de músculação em ginásio e alterar formas no seu corpo. Então a frase «nunca há mais nada senão as coisas» não é verdadeira: o livre-arbítrio do «para si» (consciência individual) é causa eficiente de algumas coisas, não é, por conseguinte, um nada. Se escrevo um livro usando a "coisa" que é a minha mão, a minha inteligência (o «para mim») não é um nada, mas sim a autora do livro, das páginas que vão surgindo escritas. A coisidade do sujeito que se opõe à coisidade material não é da mesma natureza desta: é demiúrgica, criadora, opõe-se à inércia da facticidade.
Sartre defende, com brilhantismo, a sua tese do primado da liberdade sobre a facticidade:
« Não sou acaso eu que decido do coeficiente de adversidade das coisas e, inclusive, da sua imprevisibilidade ao decidir de mim mesmo? Não há assim acidentes numa vida; um acontecimento social que rebenta subitamente e me arrasta não vem de fora; se sou mobilizado para uma guerra, esta guerra é a minha guerra, ela é à minha imagem e eu mereço-a. Mereço-a, em primeiro lugar, porque dispunha sempre da possibilidade de a ela me subtrair pelo suícidio ou a deserção; estes possíveis últimos são aqueles que devem estar-nos sempre presentes quando se trata de encarar uma situação. Na falta de a ela me ter subtraído, escolhi-a; pode ser por moleza, por cobardia perante a opinião pública, porque prefiro certos valores ao da própria recusa de fazer a guerra (a estima dos meus inimigos, a honra da minha família,etc). De qualquer modo, trata-se de uma escolha. » (Sartre, O Ser e o Nada, pag 546; o negrito é colocado por mim).
Mas este voluntarismo sartriano minimiza o peso «morto» do determinismo biológico e social que faz frente ao livre-arbítrio.
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Sir Karl Popper, um filósofo de terceira categoria, que beneficiou da boleia que o avião das ciências e dos media lhe concedeu no século XX, é confuso na hierarquização e caracterização das teorias filosóficas :
«Temos agora perante nós uma lista de cinco teorias filosóficas. »
«Primeiro, determinismo: o futuro está contido no presente, na medida em que está inteiramente determinado por ele.
Segundo, idealismo: o mundo é o meu sonho.
Terceiro, irracionalismo: nós temos experiências irracionais ou supra-racionais em que nos experenciamos a nós mesmos como coisas-em-si; obtemos, dessa forma, algum tipo de conhecimento das coisas-em-si.
Quarto, voluntarismo: nas nossas próprias volições, conhecemo-nos a nós mesmos como vontades. A coisa-em-si é a vontade.
Quinto, niilismo: no nosso tédio, conhecemo-nos a nós mesmos como nadas. A coisa-em-si é o Não-Ser.»
»E é quanto basta para a nossa lista. Escolhi os meus exemplos de um modo que me permite dizer relativamente a cada uma destas cinco teorias, e após cuidadosa ponderação, que estou convencido da sua falsidade. Ou, para pôr a questão em termos mais precisos: eu sou, primeiro que tudo, um indeterminista, em segundo lugar um realista, em terceiro um racionalista.» (Karl Popper, Conjecturas e Refutações, Almedina, Pág. 266).
Várias confusões de Popper que afloram neste texto.
Uma é a confusão entre fatalismo (o destino está inexoravelmente escrito nas linhas gerais e particulares) e determinismo ou semi fatalismo (nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos mas nem tudo está predeterminado, há livre arbítrio humano e algum acaso).
A definição de irracionalismo é coxa: há irracionalismo ontológico - o ser entendido como natureza biofísica não é governado por uma razão universal mas por factores de desordem - que difere de irracionalismo gnosiológico cuja definição Popper esboça, equivocamente..
A definição de niilismo é unilateral: há niilismo ético, niilismo científico, niilismo ontológico. O niilismo científico, segundo o qual a ciência é nada - e a doutrina conjecturalista de Popper parece ser uma forma disso - não implica que nos conheçamos a nós próprios como nadas, nem que a coisa em si, a realidade incognoscível, seja nada.
A definição de voluntarismo é também vaga: há um idealismo voluntarista e um idealismo imaginacionista, mas Popper não se dá conta disto e hierarquiza idealismo e voluntarismo como extrínsecos entre si, como espécies de um mesmo género.
Popper é, deveras, fraco na sistematização das ideias e o facto de centenas de milhar de professores de filosofia e filósofos o incensarem no mundo inteiro prova a indigência da filosofia exotérica e mediática, .difundida, paga e editada para a massa popular. Dá vontade de rir o espectáculo mundial de as universidades estarem ocupadas, na área da filosofia, por uma esmagadora maioria de catedráticos e agregados acríticos, meros reprodutores de filósofos que alcançaram a fama.
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