Apesar de servir para leccionar o programa de Filosofia do 11º ano de escolaridade em Portugal, o manual da editora A Folha Cultural «Este Amor pelo Saber», de Amândio Fontoura, Mafalda Afonso e Maria de Fátima Gomes, com supervisão de Alexandre Franco de Sá, inclui alguns erros teóricos que vamos explicitar.
EM KANT, OS DADOS DA SENSIBILIDADE NÃO APARECEM À RAZÃO, E A SENSIBILIDADE NÃO É "POSSIBILITADA" POR UMA FORMA A PRIORI
A gnosiologia de Kant é um dos pontos fracos deste livro cujos autores, como aliás 99% dos autores de manuais de filosofia, não compreendem a fundo o pensamento do filósofo alemão de Konisberg. Que diremos, no entanto, se nem o próprio Bertrand Russell era capaz de perceber o idealismo transcendental de Kant a quem classificava de filósofo "confuso"?
«Para Kant, os conceitos puros do entendimento devem organizar a experiência, tornando possível que os dados da sensibilidade apareçam à razão.» (Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 176).
Há aqui um equívoco: os dados da sensibilidade nunca aparecem à razão (Versnunft) , faculdade metafísica voltada para os númenos incognoscíveis - no sistema ontognosiológico de Kant - mas aparecem apenas ao entendimento (Verstand), faculdade intelectual que pensa o mundo físico com os seus objectos (fenómenos, como por exemplo, cadeiras, nuvens, planícies, corpos animais, etc).
Lê-se ainda no referido manual:
«A sensibilidade é então possibilitada, segundo Kant, pelo facto de a matéria das sensações ser organizada por uma forma a priori que possibilita as próprias sensações. Por exemplo, quando vemos uma mesa e, depois, uma cadeira que esteja perto dela, estes dois objectos não podem ser vistos senão enquadrados numa estrutura que permite o seu aparecimento. Esta estrutura é o espaço comum que eles ocupam...»
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 175).
O equívoco da primeira frase é o seguinte: dizer que a sensibilidade é possibilitada por uma acção da forma a priori que consiste em organizar a matéria das sensações. Não. Há aqui brumas da confusão. A sensibilidade é as duas formas a priori (espaço e tempo puros), não é possibilitada por estas, não é um momento ou estrutura posterior a estas. A sensibilidade pura possibilita, sim, os objectos empíricos, materiais.
O IDEALISMO NÃO ENCERRA, NECESSARIAMENTE, TODA A REALIDADE NA CONSCIÊNCIA
Eis como o manual define idealismo:
«O idealismo: esta posição sustenta que não há coisas reais independentes da consciência. Segundo esta perspectiva, toda a realidade está encerrada na consciência do sujeito; as coisas são somente conteúdos da consciência; apenas os conteúdos da consciência são reais.»
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 182; parte do bold é nosso).
Esta é uma definição parcialmente errónea de idealismo. Senão, vejamos: em Kant, os númenos ou coisas em si são coisas reais independentes da consciência e não são, sequer, conteúdos da consciência. Por outro lado, os conteúdos da consciência designados por fenómenos não são autenticamente reais. A doutrina de Kant é um idealismo transcendental e não encaixa mesmo nada na definição de idealismo dada no manual...
HÁ SUBJECTIVISMO COMPATÍVEL COM OBJECTOS INDEPENDENTES DA CONSCIÊNCIA
A definição de subjectivismo delineada neste manual é:
«O subjectivismo: nesta concepção, o fundamento do conhecimento está no sujeito; os princípios do conhecimento humano residem no sujeito, do qual depende a verdade do conhecimento, uma vez que este conhece de acordo com o conjunto das leis que lhe são inerentes. Nesta concepção, é o sujeito que produz o objecto, não havendo objectos independentes da consciência, pois todos são produto do pensamento.»
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 182; parte do bold é nosso).
As águas sulfurosas da confusão conceptual são borbulhantes, neste texto. Confunde-se subjectivismo (percepção subjectiva da realidade interior ou exterior) com idealismo. A esmagadora maioria dos subjectivistas - Salvador Dali, Picasso, Mozart, e praticamente todos os artistas, escritores e intelectuais, além de muita gente simples do povo eram subjectivistas- acreditam na existência de objectos independentes do pensamento humano, simplesmente interpretam-nos de forma singular e intimista.
HÁ OBJECTIVISMO EM QUE O OBJECTO NÃO DETERMINA O SUJEITO
Eis como o manual define objectivismo:
«O objectivismo: segundo esta concepção, é o objecto que determina o sujeito ; o sujeito apenas recebe as características do objecto, fazendo uma mera reprodução destas em si ».
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 182; parte do bold é nosso).
É uma definição bastante imperfeita e sectorial de objectivismo. Na verdade, existe objectivismo sem existir sujeito ou sujeitos: é a teoria defendida por exemplo por Sartre em "O ser e o nada" ou por Alfredo Reis segundo a qual a consciência é ser material, não constitui um espelho ou uma caixa de ressonância psíquica àparte da matéria. E, segundo a concepção realista, há milhões de anos, antes de haver humanidade, havia objectivismo - realidades objectivas, em si mesmas, como a Terra e o sistema solar - sem haver sujeito.
AO DEFINIR REALISMO, NÃO BASTA DIZER QUE SUPÕE OBJECTOS REAIS FORA DA CONSCIÊNCIA
«O realismo é a posição epistemológica segundo a qual há objectos reais independentes da consciência...»
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 182; parte do bold é nosso).
É uma definição insuficiente, esfumada entre azuis de imprecisão: também o idealismo transcendental de Kant sustenta que há objectos reais - os númenos - fora da consciência....Falta algo mais, de essencial, para definir realismo gnosiológico: a alusão à materialidade dos objectos.
A INCAPACIDADE DE DEFINIR FENOMENOLOGIA
Sobre fenomenologia, diz o manual:
«Para a fenomenologia, conhecer é aquilo que tem lugar quando um sujeito apreende um objecto e cabe-lhe clarificar o que significa ser o objecto de conhecimento, ser sujeito cognoscente, e o que resulta desta relação que é o conhecimento (...) O sujeito desloca-se da sua esfera para a esfera do objecto, de modo a apreender as características do objecto - que está fora do sujeito e possui características diferentes...»
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 163).
Esta é uma interpretação realista, inspirada num texto de Nikolai Hartman, que perverte a essência da fenomenologia. Não explica o que esta é. Aliás, nenhum manual de filosofia para o ensino secundário em Portugal sabe explicar, com clareza, o que é fenomenologia (perdão: o manual que redigi sabe, mas não foi publicado...). As teses de Heidegger da verdade como desocultação do ser, opõem-se àquela definição do manual, que nada mais é que a teoria da verdade como correspondência.
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