Quarta-feira, 23 de Abril de 2014
Imprecisões no manual «Ser no Mundo, Filosofia 11ºAno» da Areal (Crítica de Manuais Escolares- LIV)

 

Diversas imprecisões pautam o manual do professor da Areal Editores «Ser no mundo, filosofia 11º ano» de André Leonor e Filipe Ribeiro, com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, sem embargo de possuir textos de boa qualidade.

 

OS EMPIRISTAS DIZEM QUE A ÚNICA FONTE DE CONHECIMENTO É OS SENTIDOS?

 

Diz o manual da Areal:

 

« Segundo os empiristas, a única fonte do conhecimento são os sentidos. O conhecimento não pode resultar da razão, dado que esta não possui qualquer informação. » (André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág. 163; o destaque a negrito é de minha autoria).

 

Isto não é, rigorosamente, verdade. Para alguns empiristas, os radicalmente sensualistas ou sensacionistas, anti-intelectualistas, os sentidos são a única fonte de conhecimento. Mas para outros, como David Hume, os sentidos são a principal mas não exclusiva fonte de conhecimento: a razão e a imaginação são também fontes (imateriais) do conhecimento.

 

David Hume escreveu:

 

«Há sete espécies de diferentes de relação filosófica: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. Podem dividir-se estas relações em duas classes: as que dependem inteiramente das ideias que comparamos entre si e as que podem variar sem qualquer mudança de ideias. É da ideia de triângulo que deduzimos a relação de igualdade que existe entre os seus três ângulos e dois rectos; e esta relação é invariável enquanto a nossa ideia permanecer a mesma. As relações de contiguidade e distância entre dois objectos pelo contrário podem variar apenas por uma alteração de lugar, sem qualquer mudança nos objectos ou nas ideias; e o lugar depende de inúmeras circunstâncias diversas, as quais a mente não pode prever. O mesmo se pasa com a identidade e a causação.» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 103, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra negrito é colocada por mim).

 

Afinal estas relações filosóficas vêm dos sentidos? Ou são construções da razão e da imaginação aplicadas aos dados dos sentidos e simultâneas a estes?  São construções da razão, a posteriori. Não se pode limitar o conhecimento ao dado empírico, segundo Hume e outros empiristas.

O DOGMATISMO SÓ DEFENDE QUE O CONHECIMENTO É POSSÍVEL?

 

Lê-se no manual:

 

«Entende-se por dogmatismo a posição que defende que o conhecimento é possível e que a defesa da sua impossibilidade não faz sentido. Para o dogmático, é evidente que há contacto entre sujeito e objecto e que o conhecimento que temos da realidade corresponde à verdade. Por conseguinte, é também evidente a possibilidade de apreensão da realidade por parte do ser humano. Segundo os defensores do dogmatismo, essa confiança resulta da capacidade racional do ser humano.»(André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág 154).

 

Há uma flutuação de imprecisão nesta definição de dogmatismo. Este é a teoria das certezas, do conhecimento real, efectivo e não apenas da possibilidade do conhecimento. O probabilismo, uma síntese entre cepticismo e dogmatismo, estabelece que o conhecimento é provável, possível, - e nesse ponto é dogmatismo - mas recusa-se a determiná-lo em concreto - e aqui é cepticismo. Portanto, o probabilismo defende que o conhecimento é possível tal como o dogmatismo. Não é a possibilidade que os distingue já que é comum a ambos.

 

A frase «Segundo os defensores do dogmatismo, essa confiança resulta da capacidade racional do ser humano.» está parcialmente errada. Há empiristas, dogmáticos, que sustentam que essa confiança na verdade do conhecimento resulta da capacidade perceptiva empírica, e não da razão...

 

SÓ HÁ CONHECIMENTO VERDADEIRO? NÃO HÁ CONHECIMENTO VEROSÍMIL?

 

Vejamos agora uma tese da filosofia analítica que o manual defende:

 

«1- Só existe conhecimento se ele for verdadeiro.»

 

(André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág 147).

 

Há conhecimento da Bíblia e da ideia de Paraíso nela contida. Ora, o Paraíso é verdadeiro?  É verosímil: pode existir, de facto, embora não possamos jurar que existe. Há conhecimento mentalmente verdadeiro e potencialmente falso na realidade extra-mental. A este conhecimento chama-se verosímil, provável. A teoria da Terra Oca é um conhecimento especulativo, verosímil sobre a existência do reino de Agartha, onde viveria uma civilização de seres humanos, no interior do núcleo do planeta Terra. Não é um conjunto de proposições sem sentido, como diz o positivismo lógico.

 

Os autores do manual tomam a posição do «ou é preto ou é branco, não há tons intermédios, ou o conhecimento é verdadeiro ou não é conhecimento». É uma falácia de falsa dicotomia. Existe o conhecimento verosímil.

 

INDISTINÇÃO ENTRE DOGMATISMO INGÉNUO E DOGMATISMO CRÍTICO

 

Sobre as duas posições extremas quanto à possibilidade de conhecimento lê-se mo manual:

 

«Originariamente, podem ser identificadas duas posições extremas quanto à possibilidade do conhecimento: dogmatismo ingénuo e cepticismo radical.

Os defensores do dogmatismo ingénuo sustentam que o ser humano é capaz de conhecer. Para os defensores do cepticismo radical o conhecimento não é possível. Estas duas posições radicais contrastam com outras posturas mais moderadas. Alguns pensadores acreditam que é possível conhecer uma parte da realidade (por exemplo, os defensores do dogmatismo metafísico) outros acreditam que o conhecimento do mundo é limitado mas que a verdade existe, apesar de não nos ser acessível (posição defendida, por exemplo, pelo cepticismo moderado).»

 

(André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág 167).

 

Crítica minha: dogmatismo ingénuo está incompletamente definido ao dizer-se que «os defensores do dogmatismo ingénuo sustentam que o ser humano é capaz de conhecer»  quando a definição correcta é: «o dogmatismo ingénuo sustenta que o ser humano conhece a realidade sem duvidar das aparências». O manual não alude a dogmatismo crítico, que é o contraponto do dogmatismo ingénuo,  mas apresenta a noção vaga de dogmatismo metafísico como sendo esse contraponto. Ora o dogmatismo ingénuo inclui, em regra, o dogmatismo metafísico (Exemplo: creio no Paraíso, no Inferno e creio que a erva é verde e o céu é azul e que o Sol e a Lua se deslocam no céu ao longo do dia») ainda que exista dogmatismo metafísico crítico. Ingénuo não se opõe a metafísico mas sim a não ingénuo, crítico.

 

 

AUSÊNCIA DE DEFINIÇÃO CLARA DO BINÓMIO IDEALISMO-REALISMO 

 

Os tratados ou dicionários de filosofia, nas suas classificações das correntes gnosiológicas, fazem sempre referência,ao binómio realismo-idealismo. Este manual «Ser no mundo, 11º ano» quase omite pura e simplesmente o tema, apesar de ter uma ou outra referência transversal:

 

«Platão representa a forma mais antiga de racionalismo, ainda que normalmente seja conhecido como idealista devido à sua teoria das ideias universais.» (André Leonor, Filipe Ribeiro, ibid pág. 161).

 

Há citações de autores para definir realismo como a seguinte, que aponta o «realismo das ideias» em Platão:  

 

«Herdeiro desta tradição, a primeira concepção de um Russel segundo a qual os objectos e as relações matemáticas têm uma existência real e separada do espírito, é também um realismo (...) Através do realismo exprime-se a ideia segundo a qual o espírito não é Todo-Poderoso, que não pode por si próprio atingir ou conduzir ao verdadeiro, que a verdade se impõe sem que possamos dispor dela...» (VVAA, Dicionário Prático de Filosofia, Terramar, pp. 328-329, citado in «Ser no Mundo, Filosofia 11º», Areal Editores, pág 256).

 

Não se fornece, no entanto, a definição, ou as diversas definições, de idealismo. Isto é uma prova de debilidade teórica de autores e revisores do manual, de não dominarem a ontognosiologia, em particular a distinção entre o idealismo -nas suas várias acepções - e o realismo - nas suas várias acepções. Descartes é idealista ou realista? E David Hume? E Kant?  Apesar de abordarem a doutrina destes filósofos em alguns aspectos, os autores do manual nada dizem sobre o assunto. Presume-se que não sabem classificar como realismo ou idealismo estas doutrinas e os seus diferentes degraus.

 

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt

f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

 

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 18:03
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