Eis um teste de filosofia produzido no Alentejo, palavra que evoca aletheia ou desocultação da verdade, filosofia.
Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA B
29 de Outubro de 2015.
Professor: Francisco Queiroz
I
"A filosofia combina, de um modo particular, metafísica com empiricidade e racionalidade. A doutrina dos arquês de Anaxágoras, de Tales e de Empédocles são subjetivas ou intersubjetivas. Aristóteles defendeu que há dois princípios fundamentais anteriores ao composto (synolon) que produzem este, sendo isto o hilemorfismo.”
1) Explique, concretamente este texto.
2) Relacione, justificando:
A) As três partes da alma e as três partes da pólis na doutrina de Platão.
B) Mundo do Mesmo e reminiscência, em Platão.
C) Unidade e multiplicidade na teoria da participação, em Platão.
D) Essência (eidos), acidente e tó tí em Aristóteles..
CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 20 VALORES
1) A filosofia, interpretação livre e especulativa da vida, do universo e do homem, implica metafísica, isto é, mergulhar no reino do que transcende a natureza física ( deus ou deuses, suposta vida após a morte, reencarnação, partículas subatómicas, origem do universo e da vida, etc) e também empiricidade ( ver, tocar, saborear com os orgãos sensoriais que captam o mundo empírico ou da experiêmcia) e ainda racionalidade, ou ordem lógica no pensamento (VALE TRÊS VALORES). O arquê é a substância ou matéria primordial que originou o universo: para Tales era a água, que estava no caos, e foi modelada por Deus convertendo-se em cosmos, para Anaxágoras o arquê eram os princípios homeoméricos, o infimitamente pequeno que se amplia à escala macrocóspica ( exemplo: uma cenoura é composta por milhares de cenouras invisíveis muito pequenas e por milhares de olhos humanos muito pequenos porque fortalece a vista) e para Empédocles os arquês eram quatro, fogo, ar, terra e água, sendo isto doutrinas subjectivas, isto é, convições íntimas de uma só consciência humana ou intersubjectivas, isto é, crenças não universais mas partilhadas por um grupo de pessoas (VALE TRÊS VALORES). Aristóteles sustentou que o composto, a proté ousía ( por exemplo: esta árvore) resulta da união de dois princípios universais, a hylé ou matéria-prima universal, indeterminada ( não é água, nem ar, nem fogo, nem terra, etc.) que não existe, com as formas das espécies (eidos), neste caso, com a forma comum de árvore. O hilemorfismo é o nome desta teoria que sustenta que as coisas nascem da união da matéria (hylé, matéria indeterminada e abstracta; hylé eskaté, matéria última, determinada, como ferro, madeira, terra, etc) e da forma (morfos).(VALE TRÊS VALORES).
2) A) A alma humana divide-se em três partes: o Nous, o Tumus e a Epithymia. A cidade estado ou pólis divide-se em três estratos. A parte mais alta da alma humana é o Nous ou razão intuitiva que apreende os arquétipos de Bem, Belo, Justo, etc. Equivale na pólis aos filósofos-reis que fazem as leis, vivem em uma casa do Estado, não podem ter ouro nem prata, e trocam de companheiras sexuais de modo a não saber de quem são os filhos e não se corromperem com favoritismos. A parte média da alma é o Tumus ou Tymus ou coragem e honra e brio militar. Equivale aos guerreiros ou arcontes auxiliares que policiam a cidade, cobram os impostos, punem os malfeitores vivem em uma casa do Estado, não podem ter ouro nem prata, e trocam de companheiras sexuais de modo a não saber de quem são os filhos. A parte inferior da alma é a Epithymia ou Concupiscência, isto é, o desejo imoderado de comer, beber, possuir ouro e prata e propriedades fundiárias, entregar-se a orgias, etc. Equivale aos diferentes estratos da população desde os proprietários agrários de escravos até aos escravos, passando pelos comerciantes e artesãos. De um modo geral, podem enriquecer mas não podem eleger os filósofos-reis e os guerreiros para que estes governem de forma exemplar, incorruptível. ( VALE QUATRO VALORES).
2) B) Em Platão, o Mundo do Mesmo é o Inteligível composto pelos arquétipos de Bem, Belo, Justo, Número Um, Número Dois, Triângulo, Homem, etc. Os arquétipos estão acima do céu visível, por isso são transcendentes, estão além (trans) do universo físico e foram observados pela alma humana, Nous, quando esta esteve no Inteligível. A alma desceu em direção ao Mundo Sensível, banhou-se no rio Letes e aí esqueceu tudo o que vira, à excepção de vagas lembranças chamadas reminiscências. A alma entra no corpo de um bebé e quando o menino vai à escola e aprende que seis mais seis é igual a doze não está a aprender nada de novo mas sim a recordar, pela reminiscência, os arquétipos de Seis e Doze que contemplou no Mundo Inteligível (VALE TRÊS VALORES).
2) C) A teoria da participação, em Platão, refere que os entes de uma mesma espécie do mundo físico da matéria ou mundo do Outro são cópias imperfeitas do respectivo arquétipo ou essência que se encontra no Mundo Inteligível acima do céu visível. Assim, por exemplo, os milhões de cavalos existentes no mundo terrestre (multiplicidade) imitam a forma única de cavalo eterno (unidade) que está no Mundo do Mesmo. (VALE DOIS VALORES)
2) D) A essência (eidos), segundo Aristóteles, é a forma comum de uma dada espécie de entes. Todos os homens possuem a mesma essência, homem. A essência árvore tem um tó tí: os ramos, as folhas, o tronco, etc. O tó tí é o quê-é ou seja a forma, essencial ou acidental, de algo. Exemplo: o tó tí da espiga de trigo é a forma desta e distingue-se do tó tí da espiga de milho e do tó tí do rosto humano. Se Joana se distingue de Mariana e de Francisca isso deve-se aos acidentes, isto é, as particularidades singulares que as distinguem entre si e que são tó tís: o naiz arrebitado de uma e o nariz aquilino de outras, os olhos azuis de uma e os olhos verdes de outra, etc. O tó ón é o ente, o que é, o existente, qualidade que é comum às coisas ou seres com diferentes tó tís. O Mundo do Mesmo ou mundo dos arquétipos ou Ideias ou Modelos perfeitos, acima do céu visível, possui tó on e tó tí no que respeita a cada arquétipo: o tó tí do Triângulo é diferente do tó tí do Círculo e do tó tí do Belo. (VALE DOIS VALORES)
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Kant definiu doze categorias ou conceitos puros do entendimento que permitem modelar e pensar os fenómenos. Como categorias da quantidade colocou:
Unidade.
Pluralidade.
Totalidade.
(Kant, Crítica da Razão Pura, página 110, Fundação Calouste Gulbenkian).
Mas a totalidade é uma categoria da quantidade? Qual é a quantidade que há num todo? Unidade sugere um, pluralidade designa dois, três, quatro, cinco, vinte, mil, um milhão, etc. A totalidade opõe-se à parcialidade, o todo opõe-se à parte. Por que razão o todo não é uma qualidade mas sim uma quantidade? Parece-me que o todo é simultaneamente uma quantidade determinada (um) e uma qualidade (por exemplo: energia; alma; turma de alunos; sabedoria; vitalidade, etc). Note-se que emprego o termo qualidade num sentido distinto, mais vasto, do que o usado em Aristóteles - neste a qualidade é um predicado, um acidente da substância, como por exemplo a cor branca é uma qualidade da substância "este cavalo" - abrangendo as substâncias ou entes individuais (exemplo: esta cidade de Beja, esta região do Alentejo, são qualidades do ente ou «ser» Portugal, etc, etc). Mas, no todo, aquilo que o faz ser todo é a continuidade e contiguidade das suas partes entre si, ou seja, uma qualidade unitária que subjaz à pluralidade das partes, se as houver.
Em suma: se Kant colocou a totalidade como categoria da quantidade, deveria igualmente colocá-la como categoria da qualidade. E deveria emparelhar a totalidade com a parcialidade, visto que estão dialeticamente ligadas.
O todo é uma espécie dentro do género unidade, é uma modalidade de unidade. A parte é outra espécie do género unidade.
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No riquíssimo livro, no plano filosófico, que é a "Metafísica", Aristóteles distingue as figuras da predicação do acto e da potência delas, revelando, pelo menos aparentemente, alguma falta de clareza. Escreveu o Estagirita:
« Posto que "o que é" e "o que não é" se dizem, em um sentido segundo as figuras da predicação, em outro sentido segundo a potência ou o acto de estas, ou os seus contrários, e em outro sentido o que é verdadeiro ou é falso no sentido mais fundamental, o qual tem lugar nas coisas segundo estejam unidas ou separadas, de modo que diz a verdade o que julga que o separado está separado e o que sendo unido está unido, e diz falsidade aquele cujo juízo está articulado ao contrário das coisas, (...) Desde logo, tu não és branco porque seja verdadeiro o nosso juízo de que és branco, mas, pelo contrário, porque tu és branco, dizemos algo verdadeiro ao afirmá-lo.»
(Aristóteles, Metafísica, Livro IX, 1051a 30-35, 1051 b, 1-10; in pags 389-390 da versão espanhola de "Metafísica" de Editorial Gredos, tradução de Tomás Calvo Martínez; o negrito é posto por mim).
Qual é a diferença entre as figuras de predicação e a potência ou o acto de estas? Não existe diferença. Fora do acto -realidade actual- e da potência - realidade virtual futura- não há outro modo de as coisas, entre estas as figuras de predicação, serem. O acto e a potência incluem ambos a figura de predicação, esta ora está num, de certo modo, ora está noutro, não subsiste fora deles. Portanto, a formulação desta questão, por Aristóteles, no texto acima, é equivoca.
Um primeiro problema hermenêutico no texto acima é o de saber o que Aristóteles entende por figura de predicação (schêma tês kategorías). Se se tratasse das figuras do silogismo, teorizadas em «Analíticos Primeiros», estruturaria a resposta do modo que exponho a seguir.
Vejamos a primeira figura de predicação, classificada, como as outras três, em função da posição do termo médio nas duas permissas do silogismo regular( sendo P o termo maior ou primeiro, M o termo médio, que está contido no primeiro, S o termo último ou menor).
P-M
M-S
P-S
Todos os europeus não são asiáticos.
Alguns asiáticos são chineses de Macau.
Alguns europeus não são chineses de Macau.
(Nesta figura de predicação, Europeu é o termo maior, Asiático o termo médio e Chinês de Macau o termo menor)
Esta figura de predicação corresponde a uma realidade em acto. E a figura está em acto enquanto inferência lógica concreta, com referentes. A figura está em potência enquanto esquema abstracto P-M, M-S, P-S.
No entanto, por figura de predicação pode entender-se outra coisa distinta da figura do silogismo, como se depreende das seguinte passagens da "Metafísica":
«Enfim, certas coisas são um numericamente, outras especificamente, outras genericamente e outras por analogia: numericamente são-no aquelas coisas cuja matéria é una, especificamente aquelas cuja definição é una, genericamente aquelas cuja figura de predicação é a mesma e, por fim, por analogia as que guardam entre si a mesma proporção que guardam entre si.» (Aristóteles, Metafísica, Livro V, 1016-b, 30-35).
«Assim, a forma e a matéria são heterogéneas e também o são os predicados que correspondem às diversas figuras de predicação de "o que é" ( uns, com efeito, significam quê-é ; outros que é de certa qualidade e outros segundo as distinções expostas anteriormente.»
(Aristóteles, Metafísica, Livro V, 1024-b, 10-15).
Neste caso, figura de predicação significa o género, a substância primeira ( o quê-é) e os seus acidentes, ou seja, as categorias do ente. Por exemplo, animal é o género de António Damásio (substância primeira).
Aliás, Tomás Calvo Martínez, tradutor da Metafísica, escreveu em nota:
«27. A expressão "figura da predicação" (schêma tês kategoría) refere-se usual e tecnicamente às distintas categorias (géneros supremos). BONITZ (238-39) propõe que nesta ocasião se interprete no sentido mais amplo e menos técnico de "predicado", a fim de integrar na doutrina proposta a unidade genérica correspondente aos géneros intermédios. Pelo contrário, Ross (I, 304-305) propõe interpretar a expressão no seu sentido usual e técnico, o que nos daria uma referência à unidade genérica entendida como pertença à mesma categoria.» ( Aristóteles, Metafísica, pag 222, nota do tradutor, Editorial Gredos).
Nesta outra interpretação de figura da predicação, como género (exemplo: animal) ou como substância primeira (exemplo: António Damásio), o argumento é o mesmo que expus acima: o género e a substância primeira, como outras figuras da predicação, não são distintos do acto e da potência de si mesmos, ou são acto ou potência.
Portanto a frase de Aristóteles « Posto que "o que é" e "o que não é" se dizem, em um sentido segundo as figuras da predicação, em outro sentido segundo a potência ou o acto de estas, ou os seus contrários» encerra, em si, uma equívoca duplicação de entidades.
Aristóteles coloca, no texto citado no início deste artigo, um terceiro sentido da dicotomia «o que é/ o que não é»: o de as coisas estarem unidas na realidade - isso seria o verdadeiro - ou de estarem desunidas - isso seria o falso. Mas esse terceiro sentido não é afinal o segundo, o acto e a potência da figura de predicação na realidade exterior ou os seus contrários? A meu ver, é.
A unidade não tem mais realidade que a pluralidade ou desunião. Ao dizer que "o que é" se exprime no que está unido, Aristóteles visava, talvez inconscientemente, dizer que a verdade é a unidade entre o captado ou inteligido e a realidade externa. Mas, na realidade exterior, no mundo das coisas, estar unido ou desunido possui, em ambos os casos, realidade ontológica, carácter de "o que é".
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Aristóteles procedeu à seguinte Divisão de contrários em duas colunas, num escrito perdido, que se supõe denominando Peri enantiön na lista de Diógenes Laercio:
O que é O que não é
Unidade Pluralidade
Mesmo Diverso
Semelhante Dissemelhante
Igual Desigual
Repouso Movimento
Escreveu o Estagirita:
«Además, la segunda columna de los contrários es privación y todos ellos se reducen a Lo que es y Lo que no es, Unidad y Pluralidad, por ejemplo, el Reposo pertenece a la Unidad y el Movimiento a la Pluralidad. » (Aristóteles, Metafísica, Libro IV, 1004b, Editorial Gredos, Madrid, pag 169).
«Como expusimos gráficamente en la División de los contrarios, a lo Uno pertenecen lo Mismo, lo Semejante y lo Igual, mientras que lo Diverso, lo Desemejante y lo Desigual pertenecen a la Pluralidad.» (Aristóteles, Metafísica, Libro X, 1054a, Editorial Gredos, Madrid, pag 402).
A primeira coluna corresponde ao ser o que é, o uno, na concepção de Aristóteles a segunda coluna corresponde ao não ser o que não é, o múltiplo, na visão do filósofo grego.
«Ora bem, se certas coisas estão sempre unidas e não podem separar-se, enquanto que outras estão sempre separadas e não podem dar-se unidas, e enfim, outras podem dar-se de estes dois modos contrários, «ser» consiste em dar-se unido, enquanto que «não ser» consiste em não se dar unido, mas sim em ser uma pluralidade. E a respeito das coisas que têm esta (dupla) possibilidade, a mesma opinião e o mesmo enunciado vem a ser verdadeiro ou falso, quer dizer, pode às vezes dizer a verdade, e às vezes uma falsidade.»(Aristóteles, Metafísica, Livro IX, 1051b; o bold é nosso).
Por que razão o ser é o uno e não o múltiplo e este é o não ser, como pretende Aristóteles? Em que é que o uno possui mais ser do que o múltiplo? Uma esfera feita de peças diferentes, cada uma de sua cor, simbolizando o múltiplo, tem menos ser do que uma esfera idêntica no tamanho feita de uma só peça e de uma só cor, simbolizando o uno?
Aristóteles, crítico de Parménides, desliza para a concepção ontológica deste: concebe o uno como ser homogéneo, contínuo, sem fissuras; e o múltiplo como não ser, heterogéneo, descontínuo. É um pensamento anti dialéctico neste ponto: de facto, o uno não pode dar-se sem o múltiplo, não preexiste a este, são coetâneos, «nasceram» se assim é possível exprimir-nos ao mesmo tempo. Parménides opõe o ser ao não ser de forma não dialéctica, como géneros, extrínsecos entre si, sem lhes reconhecer a unidade mútua. Acha o não ser impensável - o que só é verdade do ponto de vista da essência (exemplo: É impensável um círculo não circular, um círculo-quadrado).
Mas, na dialéctica, os contrários primigénios são espécies do mesmo género, isto é, são pólos internos da mesma contradição. Por exemplo: bem e mal são espécies do género ética, pólos da mesma contradição interna; ser e não ser são espécies do género supremo ontologia, pólos da mesma contradição interna ao Todo e a cada coisa.
Uno e múltiplo são universais mas subordinam-se à dualidade ser-não ser: há o ser, uno e múltiplo; há o não-ser, uno e múltiplo. O ser é uno e múltiplo. O não ser é uno e múltiplo. Não é pela unidade e pela multiplicidade que se distingue o ser do não ser : é pela realidade ou existência e pela irrealidade ou inexistência.
"O QUE É" DIFERE DE "UNO", AO CONTRÁRIO DA TESE DE ARISTÓTELES
Está errado o pensamento aristotélico, que atravessa a Metafísica, de que «o que é e uno são o mesmo e uma natureza na medida em que entre ambos se dá a mesma correlação que entre causa e princípio ( ): com efeito, «um homem», «alguém que é homem», e «homem» significam o mesmo, e nada distinto se dá a conhecer reduplicando a expressão «um homem» e «um que é homem» (é evidente que não se dão separados nem ao gerar-se nem ao destruir-se); e o mesmo no caso de "uno".»
(Aristóteles, Metafísica, Livro IV, 1003b; o bold é nosso).
Não: o uno é um princípio formal, um contorno com conteúdo indeterminado, e o é ou o ser algo é um princípio conteudal, determinante do género, da espécie, do indivíduo-substância , do acidente.
Está errado Aristóteles porque um homem designa, prioritariamente, o uno como número um mas homem designa uno e múltiplo como essência. O uno de um, meramente quantitativo, é diferente do uno da essência homem, qualitativo. Uno designa um ente formal mas algo que é designa uno e múltiplo, um género, uma essência, uma substância individual. Assim a expressão «um homem» designa duplamente o uno - como um e como homem - mas o substantivo «homem» indica "uno" apenas uma vez, como essência ou espécie. Aristóteles confundiu uno e ser, não entendendo que o primeiro subordina-se ao segundo. Não podem hierarquizar-se no mesmo plano. Inversamente confundiu múltiplo e não ser - apesar de na citação inicial acima dizer que «não ser consiste em..ser pluralidade» - ignorando que a multiplicidade possui o mesmo grau de realidade (ser) que a unidade.
Razão tinha Heraclito de Éfeso, o «pai» da dialéctica entendida como ontologia, não como retórica ao postular:
«As coisas em conjunto são todo e não todo, idêntico e não idêntico, harmónico e não harmónico, o uno nasce do todo e do uno nascem todas as coisas.» (Fragmento 10, Aristóteles, De mundo 5, 396 b20, citado em Kirk y Raven, Los filósofos presocráticos, Editorial Gredos, Madrid, pag 271; o bold é nosso
Dizer que o uno nasce do todo é dizer que nasce do múltiplo e dizer que do uno nascem todas as coisas é sustentar o inverso, que o múltiplo nasce do uno.
«Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, fartura-fome (todos os opostos, este é o seu significado); muda como o fogo ao qual, quando se mistura com perfumes, denomina-se de acordo com a fragância de cada um deles.» (Fragmento 67, Hipólito, Ref IX 10, 8 citado em Kirk y Raven, Los filósofos presocráticos, Editorial Gredos, Madrid, pag 271; o bold é nosso).
Ao contrário de Aristóteles, que identificava o ser com o uno e o não ser com o múltiplo, Heráclito identificou o ser e o não-ser com o uno e o ser e o não-ser com o múltiplo e afirmou a identidade diacrónica de ser e não ser - convertem-se um no outro, infinitas vezes, no rio do tempo.
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