Johannes Hessen sustentou que há diversas formas de realismo e coloca-as todas ao mesmo nível: realismo ingénuo, realismo natural, realismo crítico, realismo volitivo. Escreveu no seu célebre tratado de gnoseologia:
«Entendemos por realismo a posição epistemológica segundo a qual há coisas reais, independentes da consciência. Esta posição admite diversas modalidades. A primeira, tanto histórica como psicologicamente, é o realismo ingénuo. Este realismo não se acha ainda influenciado por nenhuma reflexão crítica acerca do conhecimento.» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, página 93; o bold é posto por nós).
E continua Hessen:
«Diferente do realismo ingénuo é o realismo natural. Este já não é ingénuo mas está influenciado por reflexões críticas sobre o conhecimento. Isto revela-se no facto de que já não identifica o conteúdo da percepção e o objecto, mas sim distingue um do outro.» (...)
«A terceira forma de realismo é o realismo crítico porque assenta em considerações de crítica ao conhecimento. O realismo crítico não acredita que convenham às coisas todas as propriedades inseridas nos conteúdos da percepção mas é, pelo contrário, da opinião que todas as propriedades ou qualidades das coisas que apreendemos só por um sentido, como as cores, os sons, os odores, os sabores, etc, existem unicamente na nossa consciência.» (Hessen, ibid, pag 94; o bold é posto por nós)
Finalmente, apresenta a quarta espécie de realismo, o realismo volitivo, que afirma que há mundo material fora de nós e que o percebemos pela nossa vontade de viver:
«Se fossemos puros seres intelectuais, não teríamos consciência alguma da realidade. Devemos exclusivamente esta à nossa vontade. As coisas opõem resistência às nossas volições e desejos, e nestas resistências vivemos a realidade das coisas. Estas apresentam-se à nossa consciência como reais, justamente porque se fazem sentir como factores adversos na nossa vida volitiva. A esta forma de realismo é costume chamar-se realismo volitivo. »
«O realismo volitivo é um produto da filosofia moderna. Encontramo-lo pela primeira vez no século XIX. Pode-se considerar como seu primeiro representante o filósofo francês MAINE DE BIRAN. O que depois mais se esforçou por o fundamentar e desenvolver foi GUILHERME DILTHEY.» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, página 101; o bold é posto por nós).
Esta seriação horizontal de modalidades do realismo, todas no mesmo plano, como se fossem extrínsecas entre si, contém um erro. O erro de Hessen consiste em misturar o género ontognoseológico, que engloba o realismo natural e o realismo crítico, com o género fonte ou motor do conhecimento ( quinesognoseológico, poderia dizer-se), que engloba volição versus representação (espelhamento). São dois planos, dois géneros diferentes: o do ser-conhecer e o do ser-originar. Na verdade, pode haver um realismo natural voltivo e um realismo natural representativo (que reflecte, como um espelho, a realidade exterior). A volição ou vontade de viver e assimilar o mundo pode estar subjacente às três formas de realismo, ingénuo, natural e crítico. Volitivo opõe-se a não voltivo, a representativo ou perceptivo.
Volição e inteleção só são contrárias como modalidades do género fontes do conhecimento. O nivelamento, isto é, a colocação das diversas entidades ao mesmo nível dentro do mesmo género implica exclusão mútua. A tese de Aristóteles de que cada coisa só tem um contrário é absolutamente errónea. Por exemplo, a espécie homem tem como contrárias as espécies elefante, leão, abelha, cavalo e uma infinidade de outras. Dentro de um mesmo género, as suas componentes (correntes, espécies) são extrínsecas entre si. Volição e inteleção são colaterais na relação com as correntes do realismo - a introdução de um terceiro elemento numa relação pode transformar os contrários em colaterais - isto é, podem coexistir na mesma modalidade de realismo. A classificação de Hessen é mais um exemplo da ignorância da dialética que sempre reinou entre os filósofos, em particular da lei dos géneros e das espécies que o autor deste blog formulou.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Joahnnes Hessen distinguiu entre subjectivismo individual e subjectivismo geral. Quer-nos parecer que caiu no magma da confusão. Escreveu:
«O subjectivismo, como o próprio nome indica, limita a validade da verdade ao sujeito que conhece e julga. Este pode ser tanto o sujeito individual ou o indivíduo humano como o sujeito geral ou o género humano. No primeiro caso, temos um subjectivismo individual; no segundo, um subjectivismo geral. Segundo o primeiro, um juízo é válido unicamente para o sujeito individual que o formula. Se qualquer de nós julga, por exemplo, que 2x2=4, este juízo só é verdadeiro para o próprio segundo o ponto de vista do subjectivismo; para os outros pode ser falso. Para o subjectivismo geral há verdades supra-individuais, mas não verdades universalmente válidas. Nenhum juízo é válido mais do que para o género humano. O juízo 2x2=4 é válido para todos os indivíduos humanos; mas é pelo menos duvidoso que o seja para seres organizados de modo diferente (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 1978, páginas 46-47).
Não há subjectivismo geral, ao contrário do que Hessen faz crer. Há, sim, uma multidão infinita de subjectivismos, cada um ligeira ou radicalmente diferente do outro. Quando o subjectivismo se universaliza deixa de ser subjectivismo: passa a ser intersubjectivismo ou objectivismo intra anima. Se o juízo 2+2=4 é válido para todos os seres humanos não pode chamar-se a isso subjectivismo. É objectivismo. É um juízo objectivo porque é universal no que se refere ao universo dos homens. Hessen confere um duplo sentido ao termo subjectivismo adulterando a sua significação original que é o de teoria que afirma que a verdade é íntima a cada consciência singular, intransmissível em certa medida e variável de pessoa a pessoa.
www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Em «Introdução à Teoria do Conhecimento» o filósofo analítico Dan O´Brien, da Oxford Brookes University, explana uma visão algo equívoca sobre a teoria do conhecimento, que divide em cinco correntes essenciais: realismo directo, realismo indirecto, idealismo, fenomenismo, intencionalismo.
O REALISMO CRÍTICO (QUALIDADES PRIMÁRIAS E SECUNDÁRIAS) É REALISMO DIRECTO?
O´Brien considera o realismo directo divisível em realismo natural e realismo crítico.
«1. Realismo directo.
«O realismo perceptual é a visão do senso comum de que mesas, molas para papel existem independentemente dos sujeitos que as percepcionam. Os realistas directos também afirmam que são esses objectos que percepcionamos directamente, podemos ver, cheirar, tocar, provar e ouvir estas coisas que nos são familiares. Há, no entanto, duas versões do realismo directo: o realismo directo ingénuo e o realismo directo científico. Estas concepções diferem quanto às propriedades que se admite que os objectos da percepção possuem quando não estão a ser percepcionados. Os realistas ingénuos afirmam que esses objectos podem continuar a ter todas as propriedades que normalmente percepcionamos, tais como a vermelhidão, a macieza e a tepidez. Os realistas científicos defendem que algumas das propriedades que um objecto possui quando percepcionado dependem do sujeito perceptual, e que os objectos não percepcionados não devem ser concebidos como se conservassem essas propriedades (...) O realismo científico é muitas vezes considerado nos termos da distinção lockeana entre qualidades secundárias e primárias (...) A chávena em si mesma não é vermelha mas a concepção física da sua superfície e a forma particular como esta superfície reflecte os raios de luz nos nossos olhos provoca em nós a experiência de ver vermelho (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 80-81; o destaque a negrito é colocado por mim).
E sobre o realismo indirecto escreve:
«Os realistas indirectos aceitam que a minha chávena de café existe independentemente de mim. Consideram, no entanto, que eu não tenho uma percepção directa desta chávena. O realismo indirecto afirma que a percepção envolve imagens mediadoras. Quando olhamos para um objecto não é esse objecto que vemos directamente mas um intermediário perceptual. Estes intermediários têm recebido várias designações: "dados dos sentidos", "sensa", "ideia", "sensibilia", "perceptos", "aparências" (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 82).
É evidente que há uma duplicação falaciosa nestas definições: como se pode chamar "realismo directo" à teoria das qualidades primárias e secundárias de Descartes e Locke se, em parte, não vemos directamente os objectos como são e lhes atribuímos cores, sons, cheiros, graus de dureza que não possuem mas que apenas são modos subjectivos de os percepcionarmos? Neste caso a cor vermelha que atribuo à chávena não existe nesta mas apenas nos meus olhos, na minha imaginação, e constitui um «sensa», «sensibilia», um «percepto» - e estamos dentro da definição de realismo indirecto, facto de que O´Brien não se dá conta.
O erro de Dan O´Brien consiste em classificar o realismo científico ou crítico como um realismo directo quando se trata, sobretudo, ou na totalidade de um realismo indirecto que salienta nitidamente a ruptura, a não correspondência exacta entre o objecto material exterior e a representação (percepção, ideia) que dele fazemos. Assim o conceito de realismo directo deveria limitar-se ao realismo natural ou ingénuo que afirma que o céu é azul, a erva é verde, o mármore é frio, a lã em quente, isto é, à corrente que, de um modo geral, não duvida da veracidade das percepções empíricas. Se há um realismo que declara que o mármore não é frio e a lã não é quente e que o quente e o frio não existem fora de nós mas são apenas sensações subjectivas, "sensibilia" então isso é realismo indirecto.
O INTENCIONALISMO É AUTÓNOMO FACE AO REALISMO E AO IDEALISMO?OU É UMA CARACTERÍSTICA GERAL DESTES?
Dan O´Brien escreve ainda sobre o intencionalismo, uma posição que, confusamente, situa no mesmo plano que o idealismo, o realismo e o fenomenismo:
«4. A teoria intencionalista da percepção.
«A última posição que iremos examinar nega que os dados dos sentidos estejam envolvidos na percepção e afirma, ao invés, que estamos em contacto perceptual directo com o mundo. Voltamos assim ao realismo directo com que este capítulo começou.» (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 92).
«Os intencionalistas acentuam certos paralelos entre a experiência perceptual e as crenças. As crenças são representações do mundo. A intencionalidade é uma característica essencial da mente e descreve a propriedade que têm certos estados mentais de representarem - ou de serem acerca de - certos aspectos do mundo(...) O intencionalista defende que a percepção também envolve estados representacionais (o intencionalismo é por vezes designado "representacionismo"). (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 93-94; o destaque a negrito é colocado por mim).
Mais uma vez a nuvem da confusão intelectual impede O´Brien de situar correctamente, espacio-mentalmente, os conceitos. O´Brien separa o intencionalismo. como se fosse autónomo, do realismo, do fenomenismo e do realismo, pondo todos ao mesmo nível, ignorando que todo o realismo é um intencionalismo ou representacionismo: a intentio ou representação, imagem ou conceito, espelha, de certo modo, um mundo de objectos exteriores. O´Brien confunde género e espécies distintos: intencionalismo é género que engloba os realismos, o idealismo e o fenomenismo. Em todas estas correntes se postula haver imagens ou ideias que representam algo. Intencionalismo pertence ao género gnosiológico (modo de conhecer) mas realismo, idealismo e fenomenismo pertencem ao género ontológico ou ontognosiológico (modos de ser).
UMA CONFUSÃO INTITULADA ADVERBIALISMO
Escreve O´Brien, introduzindo o conceito de adverbialismo:
«4.1 Adverbialismo
«Uma maneira de rejeitar o pressuposto de que temos de estar cientes de algum objecto é fazer a chamada "manobra adverbial". Esta estratégia pode ser ilustrada virando-nos para outros exemplos onde não se apliquem tais pressupostos ontológicos. "David Beckham tem um magnífico pontapé de livre" não implica que ele possua um certo tipo de objecto - um pontapé - como coisa que ele pudesse dar ou vender como o seu magnífico carro. Em vez disso, compreendemos que esta frase significa que ele executa os pontapés magnificamente. "Magnífico" não deve ser tomado como um adjectivo que descreve a propriedade de um objecto; deve ser visto como um adjectivo que desempenha a função de um advérbio, descrevendo como uma dada acção é executada (...) O argumento dos adverbialistas no que concerne à percepção é que quando percepcionamos o vermelho estamos a percepcionar de modo vermelho ou vermelhamente (...) Ao levar a chávena de café à boca, vejo de modo castanho (castanhamente); não tenho a percepção dos dados dos sentidos castanhos e amargos, que são os análogos internos das propriedades do café debaixo do meu nariz.»
(Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 92-93; o destaque a negrito é colocado por mim).
Adverbialismo (ponto 4.1) misturado com intencionalismo (ponto 4)? Como se relacionam? O´Brien é confuso, não hierarquiza estas noções entre si de maneira clara. Não está o adverbialismo - subjectivismo ou intersubjectivismo, assim o deveria caracterizar O´Brien - contido no realismo crítico ou científico das qualidades secundárias e primárias (exemplo: o perfume não existe fora do nosso nariz e da nossa mente, perfumadamente é um modo adverbial de captação subjectiva da realidade exterior que nos dá a ilusão do perfume da rosa ou do odor do café)? É óbvio que está mas Dan O´Brien não percebe essa inclusão e considera «adverbialismo» um modo de percepção aparte do realismo...
Como é típico dos medíocres filósofos analíticos eruditos (Nigel Warburton, John Searle, Simon Blackburn, etc.) O´Brien multiplica os «ismos» (adverbialismo, intencionalismo, realismo, etc) sem distinguir o que é ontológico do que é meramente gnoseológico e sociológico. Estas definições são grosseiramente justapostas - lembremos o quadrado em que, no seu livro "A Guide for the Perplexed", Penguin Books, página 113, Simon Blackburn mistura, nivelando-as, quatro teorias de géneros diferentes: realismo, eliminativismo, construtivismo, quietismo) e assim se ergue um desconexo edifício de definições filosóficas que mantém numa relativa escuridão os estudantes e os amantes da filosofia.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Livraria online de Filosofia e Astrologia Histórica