Bagwan Shree Rajneesh, conhecido como Osho (11 de Dezembro de 1931- 19 de Janeiro de 1990) foi um pensador da consciência e das religiões como ilusões desta, que interpretou, como muitos outros, o tempo. Escreveu numa concepção que lembra Parménides que dizia que «o ser não foi nem será é» anulando assim o tempo como movimento:
«Nas antigas cortes o bobo era uma necessidade, porque dava um equilíbrio. Sua vida é um esforço contínuo para conseguir um equilíbrio. Quando você se move demais em uma direção, o equilíbrio é perdido e há intranquilidade e doença. A intranquilidade indica que o equilíbrio foi perdido. A própria palavra "in-tranquilidade" significa desiquilíbrio. Assim, quando seu passado é feio, é um longo sofrimento, um fenómeno entediante, aborrecido, como você o equilibra? É preciso fazer algo; do contrário, ficará louco. Você o equilibra com um belo futuro; com um quadro romântico do futuro; isso lhe dá um certo equilíbrio. »
Para Platão, o tempo era a «imagem móvel da eternidade» e para Aristóteles era «o número do movimento». Para Osho, o tempo é imóvel e eterno, é o ser de Parménides: imóvel, eterno, homogéneo, incriado, invisível e imperceptível aos sentidos.
«O tempo não está em movimento. Muito pelo contrário é a sua mente que se move, mas você não pode ver isto. É justamente como quando anda de comboio em alta velocidade: você vê as árvores se movendo, correndo depressa, mas é você que está se movendo em direção oposta. Se você puder olhar e observar, terá essa sensação. (...)»
(Baghwan Shree Rajneesh, A semente de mostarda, Editora Parma, Brasília 1979, páginas 202 ).
E prossegue:
«A mesma ilusão existe sobre o tempo. O tempo não está em movimento, é eterno. Apenas sua mente se move e quando ela se move, você tem uma fresta estreita: o que está à sua frente é o presente, o que saiu da frente é o passado, e o que estará à sua frente é o futuro. Mas para onde pode o presente ir?
«Se você pensar, a coisa toda é absurda. Como pode o presente, de repente ir para a não existência? O passado não está em algum lugar que possa ser encontrado, tornou-se não-existencial. Como então, o futuro, que é não-existencial pode vir para a existência? Parece totalmente absurdo. A existência permanece existência, a não-existência permanece não-existência - apenas a mente se move. E não pode ver o todo; é por isso que a divisão é criada». (Baghwan Shree Rajneesh, A semente de mostarda, Editora Parma, Brasília 1979, páginas 205-206).
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Heidegger acusa, sem razão, a ontologia tradicional de confundir o ser com o tempo:.
«O tempo funciona há muito tempo como critério ontológico, ou mais precisamente ôntico, de distinção ingénua das diversas regiões de entes. Deslindam-se os entes “temporais” (os processos da natureza e as gestas da história) dos entes “intemporais” (as relações espaciais e numéricas).(...) Encontra-se, ademais, um abismo entre o ente "temporal" e o eterno "supratemporal" e intenta-se franqueá-lo. "Temporal" aqui quer sempre dizer tanto como sendo "no tempo", uma determinação que, por sua vez, é, sem dúvida, obscura. Mas o facto é este: o tempo, no sentido de "ser no tempo", funciona como critério de distinção das regiões do ser» (Heidegger, El Ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, pag 28).
Pergunta-se: é possível estudar o ser desligando-o do tempo? Não. O ser, na teoria de Tales de Mileto, é a água e a determinação desta como ser deve-se à sua forma omnipresente (espacialidade, materialidade) e à permanência eterna (na sucessão infinita de caos e cosmos, composta de tempos, de ciclos temporais, em que tudo é água).
O ser, na teoria de Platão, é o mundo inteligível, imóvel, supraceleste, o uno, múltiplo na variedade dos seus arquétipos: o Bem, o Belo, o Justo, o Triângulo, o Número Um, etc. Os arquétipos (ser) não se confundem com o tempo, porque estão na eternidade, fora do devir próprio do tempo.
O tempo não é o único critério ontológico mas é um indispensável critério ontológico.
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Com a pretensão de se apresentar como o criador da mais elaborada e filosófica doutrina do tempo, Martin Heidegger falsificou a teoria do tempo de Aristóteles. Também Kant falsificou a posição idealista de George Berkeley para atacar e superar este na opinião pública: Kant usou a frase de Berkeley de que «o espaço é impossível», descontextualizando-a, para ridicularizar o próprio Berkeley e classificá-lo de idealista dogmático, e para se apresentar com uma teoria original, quando ele mesmo, Kant, perfilhou a mesma tese idealista de Berkeley de que «o espaço é impossível em si mesmo», isto é, fora da mente humana. Os filósofos e os aspirantes a filósofos não escapam à vaidade de serem prestigiados, de "ficarem na história" e, com certa frequência, adulteram as ideias dos seus opositores ou apropriam-se delas dando-lhes uma nova roupagem.
Sobre o tempo, Aristóteles é mais claro e mais profundo na Física do que Heidegger em O Ser e o Tempo, livro este que pretende ser uma réplica e uma superação da Física.
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Referindo-se aos que interpretam o tempo a partir do movimento dos ponteiros do relógio,Heidegger escreveu:
«O tempo é o numerado que se mostra no seguir, apresentando e numerando, o ponteiro peregrinante, de tal maneira que o apresentar se temporaliza na sua unidade extática com o reter e o estar na expetativa patentes no horizonte do anteriormente e do posteriormente. Mas isto não é outra coisa que a interpretação ontológico-existenciária a definição que Aristóteles dá do tempo: «Isto, a saber, é o tempo, o numerado no movimento com que se depara no horizonte do anteriormente e do posteriormente.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 219b, 2).(...) A origem do tempo assim patente não constitui para Aristóteles nenhum problema.» (...)
«Toda a dilucidação posterior do conceito de tempo atém-se fundamentalmentre à definição aristotélica, quer dizer, faz do tempo um tema naquela forma em que se mostra no "cuidar de" , "olhando em redor". (...) Ao apresentar o móvel no seu movimento, diz-se: "agora aqui", "agora aqui" e assim sucessivamente. O numerado são os agoras. E estes mostram-se "em cada agora" como "em seguida já não"
«O tempo resulta compreendido como "um atrás do outro", como "fluxo" dos agoras, como "curso do tempo". (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, pag 454, Fondo de Cultura Económica; o negrito é posto por mim).
Heidegger falsifica a posição de Aristóteles ao dizer que este descreve o tempo como uma linha contínua feita de agoras em contiguidade uns com os outros e que a sua concepção do tempo não constitui nenhum problema, é ingénua. É falso, como se pode ver pelas citações abaixo da Física de Aristóteles.
ARISTÓTELES NEGA QUE O TEMPO SEJA FORMADO DE "AGORAS", AO CONTRÁRIO DO QUE DELE DIZ HEIDEGGER
Heidegger acusa Aristóteles de nivelar os momentos do tempo, dizendo:
«Na interpretação vulgar do tempo como sequência de agoras falta assim a databilidade como também a a significatividade» :
«A constituição horizontal-extática da temporalidade, em que se fundam a databilidade e a significatividade do agora, resulta nivelada por obra desse encobrimento.» (Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 455).
Não vejo como esta crítica possa atingir a textura da teoria aristotélica do tempo. Sem embargo de alguma oscilação de posição, Aristóteles não inclui o "agora" (nyn) ou instante no tempo: antes concebe o "agora" como um limite, indivisível, entre o passado e o futuro que constituem o fio do tempo. Portanto, Aristóteles defende a descontinuidade entre o agora e o passado e o agora e o futuro. Não se vê com clareza onde está o tal nivelamento do tempo em Aristóteles que Heidegger denuncia. O senso comum possui uma concepção atomística do tempo (este seria uma soma de agoras) mas não é essa a concepção de Aristóteles que torna o tempo semisubjetivo ou fenomenológico:
«Ademais, se o que nos permite dizer que uma coisa se moveu na totalidade do tempo AC, ou em qualquer outro tempo, é o facto de tomar o extremo desse tempo, a saber, um "agora" (pois o "agora" é o que delimita o tempo e o que se encontra entre dois "agoras" é tempo).. (Aristóteles, Fisica, Livro VI, 237a , 1-5).
«Assim, pois, enquanto limite, o agora não é tempo, mas um acidente deste; mas, enquanto numera, é número.» (Física, Livro VI, 220a, 20)»
Se o "agora" é um acidente do tempo, significa que não é a essência deste. Há um movimento não local, não espacial, no tempo que o agora não incorpora, porque é estático. E prossegue Aristóteles:
«O "agora", considerado em si mesmo e primariamente, não em sentido derivado, quer dizer, como um lapso de tempo, é também necessariamente indivisível, e como tal é inerente a todo o tempo. Pois o "agora" é de algum modo o limite extremo do passado e nele não há nada de futuro, e é também o limite extremo do futuro e nele não há nada do passado; justamente por isso dizemos que é o limite de ambos. Quando se tiver demonstrado que é em si tal como o descrevemos, e que é um e o mesmo, ficará claro que o "agora" é indivisível.» (Aristóteles, Física, Livro VI, 233b, 30-35, 234 a, 1-59; o negrito é posto por mim).
O desmentido mais contundente da interpretação falaciosa de Heidegger sobre Aristóteles é dado por esta citação:
«Mas ainda que o tempo seja divisível, algumas das suas partes já foram, outras estão por vir, e nenhuma "é". O agora não é uma parte, pois uma parte é a medida do todo, e o todo tem que estar composto de partes, mas não parece que o tempo esteja composto de agoras. (...) Porque há que admitir que é tão impossível que os agoras sejam contíguos entre si, como um ponto o seja com outro ponto. Então se não se destruísse no seguinte agora, mas sim em outro, existiria simultaneamente com os infinitos agoras que há entre ambos, o que é impossível.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 218 a, 5-10; 15-20; o negrito é posto por mim).
«O tempo não está composto de "agoras", nem uma linha de pontos, nem tampouco um movimento em ato de movimentos já cumpridos, pois quem afirme o anterior não faz senão supor que o movimento está composto de átomos de movimento, como se o tempo estivesse composto de "agoras" ou a magnitude de pontos.» (Aristóteles, Física, Livro VI, 241 a, 1-5; o negrito é posto por mim).
O tempo é contínuo, divisível até ao infinito e é número de movimento. É como uma linha, possui duração - o passado tem uma duração experienciada, enquanto há notícia dela, e o futuro possui uma duração ainda em potência - e o agora é como um ponto que divide a linha do tempo. Ora uma linha não é, em rigor, um conjunto de pontos porque um ponto não possui extensão: do mesmo modo o tempo, que é duração, não é um conjunto de agoras, cada um dos quais não tem duração. Assim para Aristóteles, o tempo é numeração movente entre os agoras - o agora é formalmente sempre o mesmo, o limite, mas substancialmente, no seu conteúdo, altera-se a cada fração de segundo - e não, como diz Heidegger, um fluxo formado de agoras.
Ao contrário do que diz Heidegger, apresentando Aristóteles como defensor do tempo como um "fluxo" de "agoras" ou instantes presentes, o tempo é como um segmento de reta entre dois agoras ou uma linha reta lançada para trás a partir do limite que é o agora .
«O tempo é, pois, contínuo pelo agora e divide-se no agora, mas também sob este aspeto segue a deslocação e a coisa deslocada» (Física, Livro IV, 220a, 5-10).
Esta frase, para ser compatível com a tese de que o tempo não se compõe de agoras, pode ser interpretada neste sentido: o tempo é composto de passado e futuro, descontínuos entre si, um já morto (o passado) o outro ainda por nascer (o futuro) separados pelo agora que faz nascer o tempo, incessantemente.
«O agora é a continuidade do tempo, como já dissemos, pois enlaça o tempo passado com o tempo futuro e é o limite do tempo ...(Física, )
Ocorre-me ser possível comparar o agora com as fotografias da fita de celulóide que a máquina de projeção cinematográfica faz correr e o tempo com o filme. As fotos ("agoras") delimitam o filme, que é movimento .
A Física de Aristóteles é rica em definições precisas:
«Entendo por "contínuo" o que é divisível em divisíveis sempre divisíveis; e se temos por assente que isto é a continuidade, então o tempo tem que ser necessariamente contínuo» (Física, Livro VI, 232b, 20-25).
UMA CONCEPÇÃO FENOMENOLÓGICA E UMA CONCEPÇÃO REALISTA EM ARISTÓTELES: TEMPO E ALMA SÃO INDISSOCIÁVEIS E TEMPO É A MEDIDA DO MOVIMENTO DA ESFERA
A meu ver, a concepção do tempo em Heidegger não constitui nenhum passo adiante em relação à concepção aristotélica do tempo, mal compreendida ou intencionalmente falsificada pelo filósofo alemão. Ora Heidegger escreveu:
«O tempo tornado público na medição do mesmo não se converte de maneira alguma em espaço por obra de datá-lo mediante relações métricas espaciais. » (Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, Madrid, pag 450).
Aristóteles não converteu o tempo em espaço. E Heidegger prossegue:
«"O tempo" não está "diante dos olhos" nem no "sujeito" nem no "objeto", nem "dentro" nem "fora", e "é" anterior a toda a subjetividade e objetividade representa a própria condição de possibilidade de este "anterior". Tem em geral "um ser"? E se não tem, é um fantasma ou é mais que todo o ente possível? (...) Antes de tudo, trata-se de compreender que a temporalidade, enquanto horizontal-extática, temporaliza o que chamamos um tempo mundano, que constitui a intratemporalidade do "à mão" e do "diante dos olhos". Mas então estes entes nunca podem chamar-se "temporais" em sentido rigoroso. São intemporais, como todos os entes que não têm a forma de ser do "ser-aí", dêem-se, gerem-se e corrompam-se "realmente" ou subsistam "idealmente" .» (Heidegger, ibid, pag 452),
O que Heidegger nos oferece é uma interpretação do tempo inspirada nas doutrinas de Kant - o tempo é criado pelo sujeito, não existe fora dele - e de Bergson - há um tempo psicológico interno, duração pura, diferente do tempo dos relógios. A temporalidade existenciária, mecanismo oculto, obscuro e profundo do "ser", na doutrina de Heidegger, não é senão a forma a priori do tempo, na doutrina de Kant, que «temporaliza» isto é introduz a "aparência empírica temporal" nos fenómenos: o café de há minutos atrás, a rosa ressequida de há cinco dias, etc.Heidegger admite que os objetos são intemporais, estão fora do tempo à maneira de arquétipos em Platão ou das essências eternas em Aristóteles situadas em nenhum lugar ou de númenos em Kant.
Aristóteles parece ser mais preciso que Heidegger sobre a natureza do tempo. Começa por atribuir-lhe um ser próprio que não é a mudança visto que esta é um sair fora de si e o tempo não sai de si mesmo senão no "agora".
«Todas as coisas se geram e destroem no tempo. Por isso, enquanto alguns diziam que o tempo «era o mais sábio», o pitagórico Parón chamou-lhe com mais propriedade «o mais néscio», porque no tempo esquecemos. É claro, então, que o tempo tomado em si mesmo é mais causa de destruição do que de geração, como já se disse antes, porque a mudança é em si mesmo um sair fora de si, e o tempo só indirectamente é causa de geração e de ser. Um indício suficiente disso está no facto de que nada se gera se não se move de alguma maneira e actua enquanto que algo pode ser destruído sem que se mova e é sobretudo de esta destruição de que se costuma dizer que é obra do tempo. Mas o tempo não é a causa disto, mas dá-se o caso de que a mudança se produz no tempo.» (Física, Livro IV, 22b, 15-25).
A tese «o tempo só indiretamente é causa de geração e ser» é profunda e desafia o senso comum. Heidegger passou em claro isto, apostado que estava em liquidar a doutrina de Aristóteles. A concepção realista do tempo, em Aristóteles, não é um realismo ingénuo mas um realismo crítico nos umbrais da fenomenologia:
«É também digno de estudo o modo segundo o qual o tempo está em relação com a alma e por que razão se pensa que o tempo existe em todas as coisas, na terra, no mar e no céu. Acaso porque o tempo é uma propriedade ou um modo de ser do movimento, já que é o seu número, e todas essas coisas são movíveis, pois todas estão em lugar, e o tempo e o movimento estão juntos tanto em potência como em ato?»
«Quanto à primeira dificuldade, existiria ou não o tempo se existisse a alma? Porque se não puder haver alguém que numere tão pouco poderia haver algo que fosse numerado, e por consequência não poderia existir nenhum número, pois o número é o numerado ou o numerável. Mas se nada que não seja a alma, ou a inteligência da alma, pode numerar por natureza, resulta impossível a existência do tempo sem a existência da alma, a menos que seja aquilo que quando existe o tempo existe, como seria o caso se existisse se existisse um movimento sem que exista a alma; haveria, então, um antes e um depois no movimento, e o tempo seria estes enquanto numeráveis.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 223 a, 15-30; o negrito é colocado por mim).
Neste pensamento acima Aristóteles esboçou as duas hipóteses: a fenomenológica, isto é, o tempo só existe se existir a alma que o concebe; a realista, o tempo existe como número do movimento (circular), isto é, objetivamente, sem que exista a alma humana, a mente.
«Em sentido absoluto, o tempo é número de um movimento contínuo, não de uma qualquer classe de movimento.» (Física, 223 b, 1-5)
«.. então o movimento circular uniforme é a medida por excelência, porque o seu número é o mais conhecido. Nem a alteração nem o aumento nem a geração são uniformes, só a deslocação o é. Por isso pensa-se que o tempo é o movimento da esfera, porque por este são medidos os outros movimentos, e o tempo por este movimento.» (Física, 223 b, 15-25).
Aristóteles definiu o tempo como o número do movimento circular - e note-se que há números finitos e infinitos, pelo que a definição é muito rica - mas Heidegger nem isso conseguiu, remetendo a noção de tempo para o mecanismo obscuro do tempo originário situado no ser-aí (cada homem, na sua existência) - que equivale à alma, em Aristóteles, potência que numera - ou no ser em geral. A vaidade de Heidegger, plasmada, ademais, na construção de um discurso difícil de perceber, e com ambiguidades importantes, impediu-o de reconhecer a inteligência e a criatividade superiores de um filósofo que, vinte e três séculos antes, foi maior que ele: Aristóteles, talvez a maior inteligência de toda a história da filosofia.
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No seu «Tratado da Natureza Humana», David Hume revela a sua agudeza dialéctica ao escrever:
«As ideias de espaço e de tempo não são portanto ideias separadas ou distintas; são unicamente as ideias da maneira ou ordem na qual os objectos existem; ou, por outras palavras, é impossível conceber um vácuo ou uma extensão sem matéria, ou um tempo em que não haja sucessão ou mudança em qualquer existência real. »(David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 72, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra negrito é colocada por mim).
Isto distingue-se da concepção abstracionista de Kant que concebe um espaço a priori sem nada de objectos empíricos e um tempo a priori sem existências reais e objectos. A lei do uno, pedra angular da dialéctica, postula que tudo se relaciona e não é possivel separar hermeticamente as dimensões da realidade, e os seus objectos, umas das outras. No espaço há sempre a componente tempo e no tempo há sempre a componente espacial.
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Aristóteles afirmou, na linha do seu mestre Platão, que as coisas eternas, imóveis e imutáveis, escapam ao tempo. Este segundo Platão, era a "imagem móvel da eternidade" mas, segundo Aristóteles, é o "número do movimento". É o movimento que faz envelhecer as coisas e não o tempo, que é apenas o «cronómetro» desse movimento.
«Por outro lado, "ser no tempo" é ser afectado pelo tempo, e assim costuma-se dizer que o tempo deteriora as coisas, que tudo envelhece pelo tempo, e que o tempo faz esquecer, mas não se diz que se aprende pelo tempo, nem que pelo tempo se chega a ser jovem e belo; porque o tempo é, por si mesmo, mais precisamente, causa de destruição, já que é o número do movimento, e o movimento faz sair de si o que existe.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 221 a, 30; 221 b, 5; o negrito é de minha autoria).
Note-se a expressão «o movimento faz sair de si o que existe». Como não ver nela uma inspiração para a filosofia de Hegel que abundantemente falou do «sair de si» e do «ser fora de si»? Não é por acaso que Hegel nutria uma manifesta admiração por Aristóteles.
Assim, o tempo é, de certo modo, subjectivo ou intersubjectivo. É o medidor intelectual do movimento mas não é este. E ao referir-se, num tom platónico, às coisas que são sempre, isto é aos arquétipos, na concepção de Platão, ou às formas eternas e imóveis incorporadas no mundo material, segundo Aristóteles, este escreveu:
«É evidente que as coisas que são sempre, enquanto são sempre, não são no tempo, já que não estão contidas no tempo, nem o seu ser é medido pelo tempo. Um sinal disto é o facto de que o tempo não as afecta, já que não existem no tempo.»
«E posto que o tempo é a medida do movimento, será também a medida do repouso, já que todo o repouso está no tempo. Porque ainda que o que está em movimento tem que mover-se, nem tudo o que está no tempo se tem de mover, já que o tempo não é um movimento, mas o número do movimento, e o que está em repouso pode ser também no número do movimento; porque nem tudo o que está imóvel existe em repouso, mas somente o que está privado de movimento mas pode ser movido por natureza, como se disse antes.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 221 b, 5-10; o negrito é posto por mim)
Aristóteles admite, habilmente, que o tempo mede o movimento e o repouso mas erra, aparentemente, ao dizer que todo o repouso está no tempo. As formas imóveis e eternas transcendem o tempo e estão em repouso (êremía, stásis), - a menos que este último termo só se aplique às coisas da .natureza dotadas de movimento e haja outro termo para designar a imobilidade absoluta, como será o caso na terminologia aristotélica.
E de facto, numa passagem mais adiante, Aristóteles mostra que circunscreve o termo repouso aos entes da natureza física:
«Portanto, tudo o que não existe nem em movimento nem em repouso não existe no tempo, porque « ser no tempo» é «ser medido pelo tempo», e o tempo é a medida do movimento e do repouso.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 221 b, 20-23; o negrito é posto por mim)
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Ao dizer «tenho tempo para isto ou para aquilo» significo: posso efectuar tal ou tal acção ou deixar que tal coisa actue sobre mim toda a acção é criação ou transformação de uma forma material, vital, social ou espiritual. Dar uma aula é uma sucessão de formas mentais e verbais o discurso do professor e dos alunos, as definições, as correlações entre estas que exige tempo, isto é, duração dessas formas. Portanto, ter tempo é criar, em potência, ou deixar desenvolverem-se formas, em potência: produzir ideias, raciocínios, imagens ou deixar que aconteçam, e no plano material e social, é manipular ou fabricar objectos, movimentar-se, fazer discursos, interpelar ou abraçar pessoas, etc. O tempo de que se dispõe é a duração da execução de uma tal acção ou seja o acto de plasmação de uma tal forma. O tempo é actualização do ser, passagem da potência ao acto. É manifestação do ser.
O tempo de trabalho na produção de ideias, serviços ou bens culturais e materiais determina, em princípio, ou deveria determinar, o nível de remuneração do trabalhador. Essas ideias, serviços ou bens culturais e materiais, são formas, minimamente estáveis, executadas e vigentes no tempo. Uma cadeira ou um automóvel são pensados automaticamente na sua coisidade, no ser das suas formas essenciais, e, secundariamente, são também pensados em termos de tempo de trabalho que exigiu a produção das suas formas.
HEIDEGGER NÃO CONCEBEU O TEMPO COMO PROPRIEDADE DA FORMA ESPACIAL
Heidegger esforçou-se por retirar o tempo do campo dos instrumentos de análise ontológica:
«O "tempo" funciona há muito como critério ontológico, ou melhor ôntico, da distinção ingénua entre as diversas regiões dos entes. Deslindam-se os entes "temporais" (os processos da natureza e a gesta da história) dos entes "intratemporais" (as relações espaciais e numéricas). Costuma-se destacar o sentido "intemporal" das proposições em relação ao curso "temporal" das orações que as enunciam. Encontra-se ademais um "abismo" entre o ente "temporal" e o eterno "supratemporal" e tenta-se franqueá-lo.» (Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 27).
Mas toda a crítica de Heidegger, de que «a ontologia tradicional confundiu o ser com o tempo», passa por alto a natureza do tempo como propriedade das formas, isto é, permanência destas, passa por ignorar o carácter intrinsecamente temporal do ser. Heidegger continua prisioneiro do dualismo de Kant que postula o espaço, como sentido externo, e o tempo como sentido interno. Por isso, a concepção heideggeriana do ser é estática, imobilista como seria a de Platão se circunscrevesse rigorosamente o ser ao mundo do Mesmo. E a sua distinção entre ôntico-existente - por exemplo: «o tempo é infinito onticamente» - e ontológico-existencial ou existenciário - no exemplo: «o tempo real é finito ontologicamente» - é algo artificial porque o ôntico é a manifestação do ontológico que transporta dentro de si.
É por isso que, ao caracterizar a ontologia de Nietzschze, Heidegger distingue como ser a vontade de poder e como sua modalidade o eterno retorno que seria a existentia, a manifestação temporal externa. O equívoco heideggeriano está em que o ser é tanto a vontade de poder (ser em si) como o eterno retorno (ser por si e para si). Como seria possível conhecer o ser como vontade de poder, que, na teoria de Nietzschze, tem duas faces - a vontade de poder dos aristocratas esclavagistas ou feudais, antiliberais até à medula, e a vontade de poder da plebe, incluido a burguesia liberal e a populaça democrática ou mesmo anarquista e comunista na sua forma extrema - se na serpente circular do tempo não se manifestassem, alternadamente, estas duas faces? O ser inclui o tempo, desdobra-se neste.
O vínculo entre tempo e forma é indissociável: o tempo é a permanência, mais ou menos efémera, das formas das coisas, formas que são o ser. Como a permanência ou duração pertence às formas das coisas, ao ser, o tempo pertence ao ser, constitui a camada periférica deste.
Faz sentido distinguir um tempo psicológico de um tempo extra animam, objectivo, pois as formas psíquicas gozam de grande autonomia em relação às formas físicas.
Max Scheler falou na existência de uma duração sem sucessão. Tal só é possível na duração eterna ou eternidade, fora do tempo mutável, sinuoso. Porque a eternidade é da mesma natureza - ou seja duração - que o tempo historicamente delimitado: é a infinitude deste. Aliás, um dos problemas centrais da filosofia é justamente o de saber se a eternidade é real em acto ou apenas uma fantasia, uma potência ilusória.
A duração é a característica essencial do tempo.
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Para Heidegger, el modo esencial del ser-ahí (cada hombre) es la cura o cuidado, es decir, la ocupación, el deseo de llegar a algo o de llegar a ser algo y la preocupación en todas sus dimensiones (ejemplos: el mantener su salud comiendo y trabajando, el conservar o ampliar su circulo de amigos, el ayudar a su cónyuge, hijos y padres, el conducir el coche en la carretera, el acumular dinero en la cuenta bancaria, el asistir el partido de fútbol o la sesión de cine, el tomar los medicamentos o acorrer a la consulta del médico, el votar en las elecciones, etc, etc)
Se diría que la temporalidad - subjetiva y objetiva a la vez, o, mejor, algo diferente, en cuanto síntesis de ambos estadios - determina la cura, todo el comportamiento del ser-ahí. El tiempo es como el muelle de un viejo reloj que hace mover las manecillas y se detiene en el momento de la muerte. Se compara a la voluntad de vivir en la filosofía de Schopenhauer. El tiempo originario es una fuerza propulsora que se extingue con la muerte de uno, una causa eficiente permanente. La noción de tiempo no como sustancia, sino como fuerza, parece ser una clave del pensamiento heideggeriano.
«La temporalidad hace posible la unidad de la existencia, la facticidad y la caída, constituyendo así originalmente la estructura de la cura. Los elementos de la cura no están simplemente amontonados, como tampoco la temporalidad misma va "con el tiempo", componiéndose de advenir, sido y presente. La temporalidad no "es", en general, un ente. No es, sino que se "temporacía". Por qué, sin embargo, no podemos menos de decir: "la temporalidad es´ el sentido de la cura", "la temporalidad es de tal o cual forma", sólo puede hacerse comprensible por medio de la idea aclarada del ser y del "es" en general. La temporalidad temporacía, y temporacía posibles modos de ella misma. ( )»
«La temporalidad es el original "fuera de si" en y para sí mismo. Llamamos, por ende, a los caracterizados fenómenos del advenir, el sido y el presente los éxtasis de la temporalidad. Ésta no empieza por ser un ente que luego sale de sí, sino que su esencia es la temporación en la unidad de los éxtasis. Lo característico del "tiempo" accesible a la comprensión vulgar consiste entre otras cosas justamente en que en él, en cuanto pura secuencia de ahoras sin principio ni fin, resulta nivelado el carácter extático de la temporalidad original.»
(Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, pag 356)
Si volvemos a nuestro ejemplo del reloj, ejemplo imperfecto aunque importante, ahí distinguimos muy bien la temporalidad el muelle del reloj del tiempo vulgarmente comprendido, impropio, que parece continuo los números del disco y del ente ser-ahí y otros las manecillas- y del ser el aparato del reloj en su globalidad. Pero la temporalidad es una estructura que articula dos polos opuestos, el del ente y el del tiempo. Así la temporalidad temporacía, fabrica el tiempo, desde el telón de fondo del ser. En cuanto muelle, simbólicamente hablando, en cuanto pieza de metal que goza de elasticidad, la temporalidad engendra directamente el verdadero tiempo, ontológico, es decir, el movimiento del muelle que genera la progresión de las manecillas sobre los números enmarcados en el disco. Este movimiento del muelle se va ralentizando gradualmente y tiene un término, simbolizado por la muerte del ser-ahí, lo que prueba que el tiempo no puede ser nivelado en toda su extensión.
Además Heidegger resaltó el carácter preeminente del advenir en el tiempo original, es decir, en el tiempo del sujeto (ser-ahí) el futuro es más importante que el pasado y sobrepuja incluso al momento presente aunque invade este. Pero el advenir o tiempo originario del ser-ahí es finito:
«El fenómeno primario de la temporalidad original y propia es el advenir. ( ) La cura es ser relativamente a la muerte. ( ) En semejante ser relativamente a su fin existe el ser ahí total y propiamente como el ente que puede ser yecto en la muerte. El ser-ahí no tiene un fin al llegar al cual pura y simplemente cesa, sino que existe finitamente.»
(Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, pag 357)
El tiempo originario es el del ser-ahí. Y hay un tiempo derivado, de los entes intramundanos, que sobrepasa el de este o aquel ser-ahí que onticamente (en apariencia) muere, pero no es cierto que sea independiente de todo ser ahí si lo fuera, tendríamos el realismo gnoseológico, lo que Heidegger rehuye.
En apariencia, el ser preexiste al tiempo, en un modo algo similar al de Platón: el mundo del Mismo, ser eterno, es anterior al mundo del Semejante, es decir, al mundo del Tiempo y los Movimientos de los cuerpos celestes que le expresan. Quizás Heidegger sustituyó el Mundo del Mismo del «Timeo» platónico por el "ser-ahí" que es creador o co-creador del tiempo originario.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Na «Estética», Hegel deixa claro que o tempo não é uniforme mas, tal como o som, é medido de forma uniforme por um compasso. O que é uniforme é o tempo oficial cronometrado pelos relógios, não a essência do tempo, que é multiforme, irregular.
«Mas a música não pode deixar o tempo nesta indeterminação e indiferenciação; deve, pelo contrário, dar-lhe uma determinação precisa, submetê-lo a um compasso e ordenar a sua sequência segundo as regras deste compasso. ( )
«Podemos deduzir a necessidade de extensões de tempo determinadas pelo facto de o tempo se encontrar nas mais estreitas relações com o simples eu que percebe e deve perceber nos sons um eco da sua interioridade, repousando o tempo como exterioridade, sobre o mesmo princípio que o que anima o eu como base abstracta de toda a interioridade e espiritualidade. Se, portanto, é o eu simples que, como interioridade, se deve objectivar na música, o elemento geral desta objectividade deve ser tratado em conformidade com o princípio desta interioridade. Mas o eu não é a persistência indeterminada e a duração sem base: só consegue ser o que é graças à concentração e ao retorno a si. Depois de se ter extinguido para se recolher em si mesmo, recupera a sua liberdade e é então somente que se torna sentimento de si, etc. ( )
«Mas então intervém um outro regulamento, o do compasso. ( )»
«Mas a satisfação que, graças ao compasso, o eu sente em se encontrar a si mesmo é tanto mais completa quanto a unidade e a uniformidade não são as do tempo nem dos sons como tais, mas pertencem ao eu que as introduz no tempo em vista da sua própria satisfação. Porque, efectivamente, esta abstracta identidade não existe na natureza. Nos seus movimentos, os próprios corpos celestes não observam um compasso uniforme, mas aceleram ou retardam o seu curso, de modo que não percorrem a mesma distância no mesmo intervalo de tempo. O mesmo acontece com a queda dos corpos, os movimentos dos projécteis, e até o animal, no seu andar, correr, saltar, pular, etc, ainda menos calcula o regresso exacto da mesma medida em tempo determinado. Nos casos deste género, o compasso é ainda um produto do espírito, muito mais do que as relações de grandezas de que a arquitectura se serve e nas quais encontraríamos antes analogias da natureza. »(Hegel, Estética, Pintura e Música, Guimarães Editores, pags 220-225; o bold é nosso).
De salientar que é o eu quem impõe o compasso ao tempo e à música para se reconhecer no seu percurso triádico: estar-em-si, sair-de-si e regressar-a-si consciente.
«Em termos mais precisos, podemos dizer que o próprio eu real faz parte do tempo com o qual se confunde, se abstrairmos do conteúdo concreto da consciência; e isto porque na realidade não é mais do que tal movimento vazio que consiste em apresentar-se como um «Outro» e em suprimir essa mudança, conservando-se unicamente a si próprio, em suma, como o eu. O eu existe no tempo e o tempo é o modo de ser do sujeito. Ora, dado que é o tempo, e não a espacialidade, o elemento essencial ao qual o som, do ponto de vista do seu valor musical, deve a sua existência, e que o tempo do som é também o do sujeito, o som, em virtude deste princípio, penetra no eu, apreende-o na sua existência simples e põe-no em movimento pela sucessão rítmica dos instantes do tempo, enquanto que as outras figurações dos sons, como expressão dos sentimentos, completam o efeito produzido pela simples sucessão rítmica no tempo, levando a emoção ao seu mais alto grau e destruindo as últimas resistências que o indivíduo podia ainda opor em se deixar seduzir.» (Hegel, Estética -Pintura e Música, Guimarães Editores, 1962, pag. 211; o bold é nosso).
O eu executa um movimento que sai de si para voltar a si, . É a sua existência dinâmica, no tempo. Podemos dar razão a Heidegger que acusa Hegel «de que se move com a sua exegese do tempo inteiramente na direcção da compreensão vulgar do mesmo.» (Heideger, O Ser e o Tempo, edição espanhola, pag 464)? Não. Para Hegel, o tempo é simultaneamente subjectivo e objectivo. Cremos que não é a concepção vulgar do tempo...
Esta conexão, discernida por Hegel, entre os sons e o tempo, ambos participantes na interioridade do eu, é, deveras, enigmática. Há correntes esotéricas que ligam o ouvido a Saturno, suposto Senhor do Tempo. Será o ouvido o sentido que melhor nos dá a noção do tempo, e não a visão como parece ser crença generalizada?
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Na «Estética» Hegel desenvolve pensamentos de grande profundidade sobre a relação íntima do espaço com a pintura e a escultura, por um lado, e sobre a relação íntima do tempo com a música, por outro lado.
«As figuras da escultura e da pintura estão justapostas no espaço e formam por essa justaposição uma totalidade real ou aparente. Mas a música não pode produzir sons senão provocando um movimento vibratório em corpos dispostos no espaço. Essas vibrações só dizem respeito à música pela sua sucessão, de maneira que os corpos sensíveis participam da música, não pela sua forma espacial, mas pelos seus movimentos no tempo e pela duração desses movimentos. Ora todo o movimento de um corpo se efectua no espaço, de modo que as figuras da escultura e da pintura, mesmo estando aparentemente em estado de repouso, conservam o direito de representar o movimento; porém, a música não utiliza esta espacialidade para exprimir o movimento, mas serve-se para as suas produções unicamente do tempo durante o qual se efectuam as vibrações de um corpo.
Mas o tempo, como vimos já, não é como o espaço, um lado a lado positivo; é, pelo contrário, uma exterioridade negativa; como supressão do lado a lado, da esquerda e da direita, é punctiforme e, como actividade negativa, é a supressão de tal ponto no tempo e a sua substituição por um outro, que por sua vez é suprimido, para dar lugar a um outro ainda, e assim seguidamente. Na sucessão destes momentos do tempo, cada som particular deixa-se fixar em parte como uma unidade, mas pode também ser posto em relações quantitativas com outros momentos, o que torna o tempo numerável. Por outro lado, no entanto, como o tempo representa o aparecimento e a desaparição ininterrupta destes momentos que, tomados como simples momentos, são abstracções não particularizadas, não diferindo umas das outras, o tempo surge também como uma sequência regular e uma duração indiferenciada.» (Hegel, Estética, Pintura e Música, Guimarães Editores, pags 220-221; o bold é nosso)
Entre as muitas reflexões profundas do grande Hegel, note-se a do tempo punctiforme: o tempo pode representar-se por um único ponto, cujo conteúdo vai, presumivelmente, mudando a cada fracção de segundo, ao passo que o espaço se representa por linhas, figuras, volumes. Assim, o tempo parece ser a dimensão oculta da realidade que percebemos visualmente.
De salientar a noção do tempo como o suprimir do lado a lado, da relação direita-esquerda. E o facto de, ao contrário de São Tomás de Aquino que define o tempo como o número do movimento - concepção de certo modo irrealista, matemática do tempo, como se a essência deste fosse a numeração Hegel afirma a autonomia do tempo face à numeração, o que significa que a essência do tempo não é número, mas sucessão e duração.
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Aristóteles definiu Deus como um pensamento activo, perfeito, imutável, imóvel, fonte do bem e causa indirecta, passiva, de todo o movimento no universo. E esse pensamento vivo é substância, isto é, a substância primeira imaterial, princípio da perfeição. Todavia, o neoaristotélico medieval SãoTomás de Aquino recusou atribuir a Deus a condição de substância.
Escreveu Aristóteles:
«E posto que há algo que move sendo ele mesmo imóvel, estando em acto, esse não pode mudar em nenhum sentido. ( ) Trata-se de algo que existe necessariamente. E enquanto existe necessariamente é perfeito, e deste modo é princípio. ( )
«De um tal princípio pendem o Universo e a Natureza. E a sua actividade é como a mais perfeita que somos capazes de realizar por um breve intervalo de tempo (ele está sempre em tal estado, o que para nós é impossível), pois a sua actividade é prazer (por isso o estar desperto, a sensação e o pensamento são sumamente prazenteiros e em virtude disto são-no também as esperanças e as recordações). »
«Do que foi dito, resulta evidente, por conseguinte, que há uma certa substância (ousía) eterna e imóvel, e separada das coisas sensíveis. Foi igualmente demonstrado que tal substância não tem em absoluto, tamanho, mas carece de partes e é indivisível.» (Aristóteles, Metafísica, Livro 12, capítulo VII, 1072b-1073a; o bold é nosso).»
São Tomás de Aquino nega que Deus pertença a qualquer género, inclusive ao género substância:
«Artigo 5º
Deus pertence ou não pertence a algum género?
Objecções pelas quais parece que Deus pertence a algum género:
1. Substância é o ser que subsiste por si mesmo. Isto corresponde sobretudo a Deus. Portanto, Deus pertence ao género da substância. ( )
Resposta às objecções: À primeira há que dizer: A palavra substância não significa somente o que subsiste por si mesmo, pois o que é ser enquanto tal não é género, como se demonstrou. Mas significa a essência a que lhe corresponde ser assim, isto é, ser por si mesma. Sem embargo, o ser não é a sua própria essência. Deste modo, é claro que Deus não pertence ao género da substância.» (Santo Tomás de Aquino, Suma de Teologia, I, Parte I, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, pags 119-120; o bold sem itálico é nosso).
Não é claro, a meu ver, este texto do doutor angélico: a frase «o ser não é a sua própria essência» é equívoca, como equívoca é a consequência «Deste modo, é claro que Deus não pertence ao género da substância». São Tomás joga com um duplo sentido da palavra ser: existência em geral; ente supremo, princípio criador. É certo que a substância é um ser-aí, um ser-algo, além de ser (existir em geral). Mas para fazer Deus escapar da redoma do género substância, que identifica com essência, o doutor angélico afirma, em contradição com outras passagens da Suma, que o ser (Deus) «não é a sua própria essência».
São Tomás usa nos dois sentidos conferidos por Aristóteles, com alguma ambiguidade, a palavra substância (ousía): objecto ou ente singular, único; essência, ou seja, forma comum (eidos), colectiva, a diversas substâncias individuais.
Deus, ser singular, é uma substância espiritual, imóvel e eterna, no dizer de Aristóteles; mas não é substância e não pertence ao género substância para São Tomás . Parece que o erro reside neste último.
Aliás, São Tomás admitiu que o Filho - uma das pessoas constituintes de Deus - é engendrado substancialmente do Pai, isto é, a substância (essência individualizada) do Filho nasce do Pai:
«Segundo o Damasceno, ingénito significa o mesmo que incriado, em um sentido: o substancial. E nisto se diferencia a substância criada da incriada.(...) É assim que não se pode deduzir que o Pai ingénito se distinga do Filho engendrado substancialmente, mas que só há distinção de relação, isto é, enquanto a relação filial não se dá no Pai.» (Santo Tomás de Aquino, Suma de Teología, Tomo I, pag 353).
Não pode haver dúvidas de que o Filho, parte integrante de Deus, possui substância. Como seria possível, pois, que Deus não pertencesse ao género substância?
Afinal, o que é substância, em sentido pleno do termo, isto é, de substância primeira (proté ousía), na doutrina aristotélica? É uma forma individualizada: pela matéria ou não. Deus é a substância incriada (a proté ousía), a forma pura sem matéria, a única substância em que a essência é a sua própria existência.
Pertence pois à espécie substância, sendo embora absolutamente singular e distinto, em grau superior, de todas as outras substâncias.O problema central da divergência entre Aristóteles e São Tomás está no conceito de substância. Para Aristóteles, a substância primeira (prote ousia) resulta da fusão entre a essência ( exemplo: cavalo) e uma porção de matéria prima que individualiza ( e assim a substância é, por exemplo, «este cavalo chamado Pégaso de cor branca»).
David Icke é uma substância, um homem individualizado, Eduardo Aroso é outra substância, outro homem individualizado distinto de Icke: só têm a mesma essência, isto é, a forma comum «homem». Diferenciam-nos os acidentes, isto é, os pormenores.
Ora São Tomás pretende que Deus não seja uma substância, neste caso um Deus individualizado, julgo, porque isso implicaria a partição de Deus: o Deus dos católicos, o Deus dos cátaros, o Deus dos judeus, Allah, etc. Substância primeira é individualização mas Aristóteles não recusa que Deus seja a substância, o ente, anterior ao universo e regente deste.
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