Schopenhauer, que se considerava um kantiano, difere da teoria de Kant ao escrever:
«O espaço só surge quando o sujeito cognoscente olha para fora: é o modo e a maneira como o sujeito capta algo distinto de si. Daqui se deduz que mais além do fenómeno, no ser em si de todas as coisas, que há-de ser alheio ao espaço e ao tempo e também à pluralidade, tão pouco pode haver conhecimento algum».»
(Schopenhauer, El mundo como voluntad y representación, 2º volume, Alianza Editorial, Madrid, pag 361; o destaque a negrito é nosso).
Para Kant, o espaço é inato como forma a priori da sensibilidade, antes de haver casas, árvores, etc, havia espaço vazio mental, o espaço não surge somente quando o sujeito olha fora de si. Aliás, olhar fora de si é impossível na lógica da gnosiologia kantiana porque fora de si só há os númenos (Deus, liberdade , mundo como totalidade) invisíveis e incognoscíveis: o mundo inteiro, visível e palpável, com as montanhas, os rios, os céus, os animais, está dentro do sujeito , na sensibilidade deste exterior ao seu corpo físico, como série de fenómenos, pois a sensibilidade é mente ou espírito impensante onde se aloja a matéria que é pura ilusão (idealismo material). O sujeito, segundo Kant, é espaço, tempo (formas a priori da sensibilidade), entendimento e razão, não há sujeito anterior ao espaço.
No Livro X de Metafísica, capítulo segundo, Aristóteles sustentou que o uno não é substância mas sim um predicado:
«Devemos investigar,,, o que é a unidade e como há-de entender-se: se o uno em si é uma certa substância, como disseram primeiro os Pitagóricos e Platão depois, ou se mais precisamente há alguma natureza que lhe serve de serve de sujeito e como convém explicá-lo para maior clareza, e mais precisamente segundo o parecer dos filósofos da natureza. Alguns destes com efeito, afirmam que o Uno é a Amizade, outro que é o ar, outro que é o Ilimitado. Pois bem, se - como se disse nos tratados sobre a substância e acerca do que é - nenhum universal pode ser substância, se considerado em si mesmo: não pode ser substância a modo de unidade separada da pluralidade (já que é algo comum) é evidente que tão pouco pode sê-lo o uno: com efeito «algo que é» e «uno» são os predicados mais universais. Por conseguinte, nem os géneros são naturezas e substâncias separadas das demais coisas, nem «uno» pode ser um género, pelas mesmas causas pelas quais tão pouco pode sê-lo «o que é» e a substância.»(Aristóteles, Metafísica, Livro X, 1053 b 10-20; o destaque a bold é posto por nós).
Aristóteles equivoca-se: «algo que é» constitui um sujeito, abstrato, não determinado, e não um predicado. Este último seria: «X é algo». Equivoca-se ainda ao dizer que «uno não pode ser género». Há dois sentidos da palavra uno, diferentes na extensão: o uno ou todo universal, de limites inimagináveis ou quase, e o uno ou todo de um género (exemplo: o uno de animal que engloba os leões, as serpentes, os peixes, etc.) o uno ou o todo de uma espécie (exemplo: o uno da espécie homem que engloba Beatriz, Francisco, Kelly, Pedro, etc) e o uno da proté ousía ou substância primeira, singular (exemplo: Lisboa é uma unidade, o mosteiro da Batalha é uma unidade).
Mais adiante, Aristóteles contradiz-se de novo ao transformar o uno em sujeito, em substante, como branco:
«Mais precisamente, nas cores o uno é uma cor, por exemplo, o branco, e os demais parecem gerar-se sucessivamente a partir dele e do negro e o negro é a privação do branco como o é também da luz a obscuridade (esta é, com efeito, privação da luz) de modo que se as coisas que são fossem cores, as coisas que são constituíriam um certo número, de quê?, evidentemente de cores, e o uno seria «algo que é uno» por exemplo o branco.» (Aristóteles, Metafísica, Livro X, 1053 b 25.30; o destaque a bold é de minha autoria).
Ora se o uno é o branco trata-se de uma substância segunda, de uma espécie, que se sobreleva às outras espécies (amarelo, azul, vermelho, etc) dentro do género cor. O branco tanto pode ser predicado como sujeito e aqui é, claramente, sujeito como no juízo: «O branco é a cor mãe de todas as cores». Assim o uno é simultaneamente sujeito e predicado conforme os juízos como sucede no juízo «O homem (um uno humano) é um animal (um uno não estritamente humano, pois engloba gato, cão, cavalo, etc).». Qualquer substância, isto é, qualquer ente concreto sujeito de um juízo - por exemplo: o mosteiro dos Jerónimos, o Alentejo, a indústria vidreira - é, de per si, um uno. E também cada cor - o amarelo, o laranja, etc - é um uno e pode ser sujeito - exemplo: «O tom amarelo da porta é agradável» - ou predicado - exemplo: «O ouro é amarelo».
www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Em «Caminhos de Bosque», o filósofo alemão Martin Heidegger (26 de Setembro de 1889, Mebkirch- 26 de Maio de 1976, Friburgo) destaca a importância do sujeito, da subjectividade de cada homem, como a base da liberdade, e situa Descartes como o descobridor desse fundamento. Escreveu:
« A tarefa metafísica de Descartes passou a ser a seguinte: criar o fundamento metafísico para a libertação do homem em favor da liberdade como autodeterminação com certeza de si mesma. (...)
«O fundamentum, o fundamento da dita liberdade, o que subjaz na sua base, o subjectum, tem que ser portanto algo certo que satisfaça as citadas exigências essenciais. »(Martin Heidegger, La época en la imagen del mundo, in Caminos de Bosque, pag. 87).
E prossegue Heidegger:
«Na sofística grega qualquer subjectivismo é impossível porque nela o homem nunca pode ser subjectum. Nunca pode chegar a sê-lo porque aqui o ser é presença e a verdade desocultamento».
«No desocultamento, acontece a phantasía, o chegar a aparecer o presente como tal para o homem que está, por sua vez, presente para o que aparece. Sem embargo, como sujeito representador, o homem fantasia, quer dizer, move-se no imaginário, na medida em que a sua capacidade de representação imagina o ente como aquilo objectivo dentro do mundo como imagem.» (Martin Heidegger, La época en la imagen del mundo, in Caminos de Bosque, pag. 88, Alianza Editorial, Madrid; o destaque a negrito é de minha autoria).
Trata-se de um equívoco sério de Heidegger. Na sofística grega, não há subjectivismo? É óbvio que há e já em Platão o havia, em certa medida. Aliás, a fantasia não é um fenómeno somente colectivo da espécie humana: ela tem um veio singular, individualizado, diferente de pessoa para pessoa e isso não é senão o subjectivismo. A grande revolução filosófica da transferência do centro de gravidade do conhecimento, do mundo exterior para o sujeito pensante, é já efectuada pelos sofistas, nomeadamente por Górgias, se atentarmos no que sobre este escreveu Sexto Empírico em «Adversus mathematicos, 65»:
«No livro intitulado «Do Não-Ser, ou da Natureza» Górgias definiu três princípios a saber: primeiro, que nada existe, segundo, se algo existe é incognoscível, e terceiro, se fosse cognoscível, não poderia ser comunicado, nem divulgado. » (citação de Sexto Empírico in Pinharanda Gomes, Filosofia Grega Pré-socrática, pag.273, Guimarães Editores; o destaque a negrito é de minha autoria)..
O cepticismo manejado por Descartes no século XVII já foi usado por Górgias. E o subjectivismo de Górgias é patente: se algo for conhecido, não pode ser comunicado, nem divulgado, fica no interior da consciência de um só sujeito.
Heidegger pensou confusamente: chamou subjectivismo, corrente gnosiológica que se bifurca em subjectivismo realista ou subjectivismo idealista, ao idealismo subjectivo de Descartes que reduz o mundo a um conteúdo imaginário da consciência solipsista («Cogito, ergo sum»).
E a multidão dos heideggerianos, sejam ou não docentes universitários, não descobre estes erros do mestre, porque a universidade não pensa globalmente nem pormenorizadamente, é uma instituição contra-revolucionária de instalados, de gente doutorada que se arroga possuir o «saber». De facto, cada doutoramento é uma especialização numa área ínfima do saber e é uma falácia indutiva chamar «doutor em filosofia» a alguém que se doutorou em torno de uma obra de um autor como Martin Heidegger, Jean Paul Sartre, Peter Singer ou qualquer outro. Um "doutor" na ética utilitarista ou em Bertrand Russel não é doutor em Aristóteles, ou em Platão, ou em Hegel e em tantas centenas de filósofos consagrados e temas diversos de filosofia...
Heidegger não tinha um pensamento perfeito, ainda que seja superior ao comum dos filósofos. E as universidades ou cátedras que o veneram cheiram a Vaticano, na sua vénia teocrática: olham-no como o Papa da fenomenologia, o representante directo da deusa da Filosofia na Terra. Não é assim. «Ser e tempo» é um livro abundante em confusões, com linguagem razoavelmente obscura. Heidegger nem sequer compreendeu bem a ontognosiologia de Kant, à semelhança de 99% dos catedráticos, como mostrei, neste blog, no artigo «O equívoco de Heidegger ao interpretar a ontognosiologia de Kant» em 9 de Janeiro de 2010.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O poderoso intelectual Aristóteles exibe algumas (aparentes) incoerências no que respeita à definição de substância (ousía, em grego) e de sujeito (hipokeimenon, em grego) . Por sujeito, entende o suporte - que sofre sujeição - de uma forma ou de qualidades diversas. A noção de sujeito é relativa, isto é, varia de degrau em degrau ontológico mas o sujeito primeiro é, antes de mais, a matéria prima (hylé, em grego), algo indeterminado, suporte das formas na criação das substâncias primeiras.
«Substância, assim chamada com mais propriedade, mais primariamente e em mais alto grau, é aquela que não se diz de um sujeito nem está num sujeito, por exemplo: o homem individual ou o cavalo individual. Chamam-se substâncias segundas as espécies a que pertencem as substâncias primariamente assim chamadas, tanto essas espécies como os seus géneros; por exemplo: o homem individual pertence à espécie homem, e o género da dita espécie é animal; assim, pois, estas substâncias chamam-se segundas, por exemplo: o homem e o animal.»
(Aristóteles, Categorias, in Tratados de Lógica (Órganon) I, pag 37, Editorial Gredos, Madrid)
«É comum a toda a substância o facto de não estar em um sujeito. Pois a substância primeira nem se diz de um sujeito nem está em um sujeito. E das substâncias segundas é igualmente manifesto que não estão em nenhum sujeito: com efeito, homem diz-se do homem individual como do seu sujeito, mas não está num sujeito - homem, com efeito, não está no homem individual -; de igual modo, também animal se diz do homem individual como do seu sujeito, mas animal não está no homem individual.» (...)
«Assim, não haverá substância alguma entre as coisas que estão em um sujeito.» (...)
«Mas isto não é exclusivo da substância, mas também a diferença é das coisas que não estão em um sujeito: com efeito pedestre e bípede dizem-se do homem como do seu sujeito, mas não estão em um sujeito; pois o bípede e o pedestre não estão no homem.»
(Aristóteles, Categorias, in Tratados de Lógica (Órganon) I, pag 37, Editorial Gredos, Madrid; o negrito é de minha autoria)
Um primeiro enigma a decifrar é o seguinte: que diferença há entre o homem individual e o seu sujeito? Será o homem individual uma hipo-essência, uma forma singular, que se distingue dos sujeitos Rosa Mota, Carlos Alves, Vera Tormenta Santana, Manuel Alegre e outros que se moldam, como carne, dentro dessa forma individual? Não parece. Interpretaremos, antes, o homem individual como este composto de forma e matéria e o seu sujeito como sendo a matéria-prima (hylé) porque esta encontra-se abaixo da forma, como massa moldável. Este primeiro texto diz que a substância não está no sujeito.
Afinal, por que razão a substância - por exemplo, este cavalo branco - não está no sujeito, isto é, na matéria prima? Não está no sujeito - como algo englobado neste - porque a substância primeira transcende o sujeito, que é aquilo que está sob, em baixo da pirâmide das categorias ( espécie, género, universal, etc). Numa comparação algo imperfeita: a substância primeira é a cúpula da sala em que o sujeito é o chão e as paredes. A cúpula assenta nas paredes e, indirectamente, no chão mas não está contida - parece ser este o sentido da expressão aristotélica «não está em» - no sujeito. Do mesmo modo, a espécie (por exemplo: homem) não está no indivíduo, (no caso: homem individual) porque transcende este e o género ( exemplo: animal) não está contido na espécie (no exemplo: homem). No entanto, na minha opinião, a espécie homem está, de forma reduzida, no homem individual. .
A noção de sujeito é relacional, tem um conteúdo concreto mutável.
Vejamos, agora, a seguinte passagem da Metafísica:
«Diz-se substância, se não em mais sentidos, pelo menos fundamentalmente em quatro: com efeito, a substância de cada coisa parece ser a essência, o universal, o género e, em quarto lugar, o sujeito.»
«O sujeito, por seu lado, é aquilo do qual se dizem as demais coisas sem que isso mesmo se diga, por sua vez, de nenhuma outra. Por isso devemos fazer, em primeiro lugar, as distinções oportunas àcerca dele: porque parece que substância é, em grau supremo, o sujeito primeiro. E diz-se que é tal, num sentido, a matéria, em outro sentido a forma, e em um terceiro sentido o composto de ambos ( chamo matéria, por exemplo, ao bronze, forma à configuração, e composto de ambos à estátua) de modo que se a forma específica é anterior à matéria e é em maior grau que ela, pela mesma razão será também anterior ao composto.» (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1028 b, 30-35, 1029 a 1-5).
Contra o que Aristóteles aqui escreve, não é, de facto, a substância - composto de forma e matéria - o sujeito primeiro. Este é a matéria prima (Hylé) porque é sobre esta que se imprime o cinzel da forma, dando origem à substância primeira (proté ousía).
Por outro lado, Aristóteles degradou, tornou múltiplo e ambíguo, o sentido da palavra substância. Esta é, em rigor, o ente individualizado (por exemplo este automóvel Ford de cor azul cobalto, aquele monte alentejano junto ao rio, esta nuvem, etc). A passagem da "Metafísica" que acabamos de ler, que refere a atribuição de quatro significados ao termo substância, um deles o de "universal", é corrigida ou clarificada por esta:
outra:
«Parece impossível, desde logo, que seja substância qualquer uma das coisas que se predicam universalmente. Em primeiro lugar, a substância de cada coisa é a própria de cada coisa que não se dá em nenhuma outra. Sem embargo, o universal é comum, já que universal se denomina aquilo que por natureza pertence a uma pluralidade. Assim, pois, de que será isto substância? Certamente, ou de todos ou de nenhum. Mas não é possível que o seja de todos e, por outro lado, se o fosse de uma só coisa, as demais coisas se identificariam com ela, posto que as coisas cuja substância é uma e cuja essência é uma são também elas uma só». (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1038 b, 10-15; o negrito é colocado por mim).
Aqui se diz, com clareza, que a substância não pode ser um universal, porque é um isto (tóde tí, em grego), determinado, concreto, limitado, individuado.
www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Se o ser é mais extenso e transcendental, isto é, mais universal, que qualquer género, então é uma matéria, a matéria indeterminada que se divide em sensível e inteligível. Logo o ser puro - ou existência pura, destituída de forma - é uma matéria especial, a proto matéria, ontologicamente anterior à matéria prima sensível de Aristóteles (hylé).
Toda a determinação ou talidade é a impressão, cunhagem ou instalação de uma forma na massa infinita e absolutamente indeterminada que é o ser. Este não é somente um predicado universal de todas as coisas - exemplo: "A Torre de Pisa é (ser)", " Os oceanos são (ser; existem)" - é também o sujeito (hypokeimenon) mais universal de todos. A existência é, portanto, uma matéria - mesmo a existência do pensamento ou de um Nous (espírito universal) independente de toda a matéria física.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Livraria online de Filosofia e Astrologia Histórica