Sábado, 15 de Janeiro de 2011
Imprecisões, em Aristóteles, sobre a substância (ousía) e o sujeito (hipokeimenon)

O poderoso intelectual Aristóteles exibe algumas (aparentes) incoerências no que respeita à definição de substância (ousía, em grego) e de sujeito (hipokeimenon, em grego) . Por sujeito, entende o suporte - que sofre sujeição - de uma forma ou de qualidades diversas. A noção de sujeito é relativa, isto é, varia de degrau em degrau ontológico mas o sujeito primeiro é, antes de mais, a matéria prima (hylé, em grego), algo indeterminado, suporte das formas na criação das substâncias primeiras.

 

«Substância, assim chamada com mais propriedade, mais primariamente e em mais alto grau, é aquela que não se diz de um sujeito nem está num sujeito, por exemplo: o homem individual ou o cavalo individual. Chamam-se substâncias segundas as espécies a que pertencem as substâncias primariamente assim chamadas, tanto essas espécies como os seus géneros; por exemplo: o homem individual pertence à espécie homem, e o género da dita espécie é animal; assim, pois, estas substâncias chamam-se segundas, por exemplo: o homem e o animal.»

(Aristóteles, Categorias, in Tratados de Lógica (Órganon) I, pag 37,  Editorial Gredos, Madrid)

 

«É comum a toda a substância o facto de não estar em um sujeito. Pois a substância primeira nem se diz de um sujeito nem está em um sujeito. E das substâncias segundas é igualmente manifesto que não estão em nenhum sujeito: com efeito, homem diz-se do homem individual como do seu sujeito, mas não está num sujeito - homem, com efeito, não está no homem individual -; de igual modo, também animal se diz do homem individual como do seu sujeito, mas animal não está no homem individual.» (...)

«Assim, não haverá substância alguma entre as coisas que estão em um sujeito.» (...)

«Mas isto não é exclusivo da substância, mas também a diferença é das coisas que não estão em um sujeito: com efeito pedestre e bípede dizem-se do homem como do seu sujeito, mas não estão em um sujeito; pois o bípede e o pedestre não estão no homem.»

(Aristóteles, Categorias, in Tratados de Lógica (Órganon) I, pag 37,  Editorial Gredos, Madrid; o negrito é de minha autoria)

 

Um primeiro enigma a decifrar é o seguinte: que diferença há entre o homem individual e o seu sujeito? Será o homem individual uma hipo-essência, uma forma singular, que se distingue dos sujeitos Rosa Mota, Carlos Alves, Vera Tormenta Santana, Manuel Alegre e outros que se moldam, como carne, dentro dessa forma individual? Não parece. Interpretaremos, antes, o homem individual como este composto de forma e matéria e o seu sujeito como sendo a matéria-prima (hylé) porque esta encontra-se abaixo da forma, como massa moldável.  Este primeiro texto diz que a substância não está no sujeito.

 

Afinal, por que razão a substância - por exemplo, este cavalo branco - não está no sujeito, isto é, na matéria prima?   Não está no sujeito - como algo englobado neste - porque a substância primeira transcende o sujeito, que é aquilo que está sob, em baixo da pirâmide das categorias ( espécie, género, universal, etc). Numa comparação algo imperfeita: a  substância primeira é a cúpula da sala em que o sujeito é o chão e as paredes. A cúpula assenta nas paredes e, indirectamente, no chão mas não está contida - parece ser este o sentido da expressão aristotélica «não está em» - no sujeito. Do mesmo modo, a espécie (por exemplo: homem) não está no indivíduo, (no caso: homem individual) porque transcende este e o género ( exemplo: animal) não está contido na espécie (no exemplo: homem). No entanto, na minha opinião, a espécie homem está, de forma reduzida, no homem individual. .

A noção de sujeito é relacional, tem um conteúdo concreto mutável.

 

Vejamos, agora, a seguinte passagem da Metafísica:

 

«Diz-se substância, se não em mais sentidos, pelo menos fundamentalmente em quatro: com efeito, a substância de cada coisa parece ser a essência, o universal, o género e, em quarto lugar, o sujeito.»

«O sujeito, por seu lado, é aquilo do qual se dizem as demais coisas sem que isso mesmo se diga, por sua vez, de nenhuma outra. Por isso devemos fazer, em primeiro lugar, as distinções oportunas àcerca dele: porque parece que substância é, em grau supremo, o sujeito primeiro. E diz-se que é tal, num sentido, a matéria, em outro sentido a forma, e em um terceiro sentido o composto de ambos ( chamo matéria, por exemplo, ao bronze, forma à configuração, e composto de ambos à estátua) de modo que se a forma específica é anterior à matéria e é em maior grau que ela, pela mesma razão será também anterior ao composto.» (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1028 b, 30-35, 1029 a 1-5).

 

Contra o que Aristóteles aqui escreve, não é, de facto, a substância - composto de forma e matéria - o sujeito primeiro. Este é a matéria prima (Hylé) porque é sobre esta que se imprime o cinzel da forma, dando origem à substância primeira (proté ousía).

Por outro lado, Aristóteles degradou, tornou múltiplo e ambíguo, o sentido da palavra substância. Esta é, em rigor, o ente individualizado (por exemplo este automóvel Ford de cor azul cobalto, aquele monte alentejano junto ao rio, esta nuvem, etc).  A passagem da "Metafísica" que acabamos de ler, que refere a atribuição de quatro significados ao termo substância, um deles o de "universal", é corrigida ou clarificada por esta:

outra:

 

«Parece impossível, desde logo, que seja substância qualquer uma das coisas que se predicam universalmente. Em primeiro lugar, a substância de cada coisa é a própria de cada coisa que não se dá em nenhuma outra. Sem embargo, o universal é comum, já que universal se denomina aquilo que por natureza pertence a uma pluralidade. Assim, pois, de que será isto substância? Certamente, ou de todos ou de nenhum. Mas não é possível que o seja de todos e, por outro lado, se o fosse de uma só coisa, as demais coisas se identificariam com ela, posto que as coisas cuja substância é uma e cuja essência é uma são também elas uma só». (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1038 b, 10-15; o negrito é colocado por mim).

 

Aqui se diz, com clareza, que a substância não pode ser um universal, porque é um isto (tóde tí, em grego), determinado, concreto, limitado, individuado.

  

www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 21:36
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Janeiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

Imprecisões, em Aristótel...

arquivos

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

tags

todas as tags

favoritos

Teste de filosofia do 11º...

Suicídios de pilotos de a...

David Icke: a sexualidade...

links
blogs SAPO
subscrever feeds