No seu livro «Nova Filosofia», publicado em 1990, José Reis, um catedrático de filosofia da universidade de Coimbra, propõe uma «nova concepção do tempo», que fica bastante aquém do que Aristóteles escreveu sobre o tempo na «Física». Escreveu José Reis:
«O tempo é, como já acontece sempre que olhamos para a sucessão das coisas sem qualquer concepção meta-física, essa simples sucessão. »
«Mas,é claro, não basta abstrair - quando efectivamente já abstraímos - das concepções meta-físicas: é preciso destruí-las, vendo por dentro toda a questão. E aqui, no que toca à causalidade, tudo começou pela espacialização do tempo. Porque o imediato é conceber o futuro - o momento temporal que antes de mais nos interessa para a causalidade - como aquilo que ele é no presente, ou seja, como nada, é então esse nada que, na articulação que fazemos entre os momentos temporais, passa ao presente. O presente, porém, é o ser; como se transforma tal nada em ser? Eis que os fenómenos privilegiados da força e do movimento nos trazem a potência; sendo por definição o ser em forma de nada, ela serve-nos à maravilha: as coisas vêm dessa potência. Só que acontece que essa potência é mesmo nada; e admitindo que fosse alguma coisa, nunca seria suficiente para as coisas. E apenas há as coisas. As coisas, no seu tempo próprio e só nele. As coisas que - não derivando da potência de que eram dotadas as coisas anteriores, potência que por sua vez derivava (bem como as primeiríssimas coisas) duma Potência eterna - são o absoluto. (José Reis, Nova Filosofia, pag 77, Edições Afrontamento, Porto; o destaque a negrito é posto por mim).
Comecemos por questionar a definição de tempo como «simples sucessão das coisas». Há a sucessão espacial das coisas - por exemplo, uma fila de peças de dominó encadeadas umas nas outras, em sucessão, mas que eu fotografo no mesmo instante - e a sucessão temporal, em que os momentos se eliminam uns aos outros - por exemplo, as modificações que o meu corpo experimenta dia a dia, mês a mês. José Reis não faz esta distinção, com clareza.
«O ser é o presente» - eis um erro de José Reis, baseado na confusão entre ser-existência (o presente) e ser-essência (o passado, o presente e o futuro de determinada forma ou essência). Quando dizemos, por exemplo, que «o ser na doutrina de Nietzsche é a vontade de poder, movendo-se no círculo do eterno retorno» estamos a perspectivar o ser como passado-presente-futuro, não podemos reduzi-lo apenas ao acto presente.
Se não investigássemos o passado e prevíssemos o futuro, se não possuissemos a visão holística e histórica do que foi e previsivelmente será (por indução), não poderíamos saber o que é o ser. José Reis é um actualista (só o momento actual é real): o seu combate ao essencialismo, à permanência das essências, assemelha-se ao de David Hume, o pai da moderna filosofia analítica, e ao de Wittgenstein. A pretensão de «destruir a meta-física para ver as coisas por dentro» é uma tarefa inglória: o futuro associa-se sempre a uma certa dose de metafísica e ninguém, em bom juízo, se dissocia de pensar o futuro, a potência da sua vida e das vidas de outros.
O passado e o futuro fazem parte da essência do tempo, de qualquer tempo de qualquer ente. A essência do tempo não coincide, pois, com a existência: engloba esta como o momento actual mas engloba também o sido e o porvir, a potência. A essência é o sido, o momento presente, e a potência (o futuro em esboço). Ora o ser é essência: passado, presente, futuro, ainda que destes três momentos só um seja acto (o presente) e outro tenha sido acto (o passado).
Quanto à espacialização do tempo que José Reis aponta como um erro do pensar filosófico, gerador da ideia da causalidade, ela é inevitável e não constitui um erro. Einstein falava do espaço-tempo, não do tempo separado do espaço. O tempo não é, na minha óptica, o espaço globalmente considerado mas as mudanças contínuas de posição (kinésis, em grego) ou de forma (aloiósis, em grego: alteração) dos corpos e figuras que ocupam o vasto espaço. Divergindo da minha conceptualização do tempo, Aristóteles não define o tempo como um movimento mas como um acidente intrínseco ao movimento, o número que marca este :
«É então evidente que não há tempo sem movimento nem mudança. Logo é evidente que o tempo não é um movimento, mas não há tempo sem movimento.» (Aristóteles, Metafísica, Livro IV, 218 b, 25-30)
«Assim pois, quando percebemos o agora como uma unidade, e não como anterior e posterior no movimento, ou como ele mesmo relativamente ao anterior e ao posterior, então não parece que tenha transcorrido algum tempo, já que não houve nenhum movimento. Mas quando percebemos um antes e um depois, então falamos de tempo. Porque o tempo é justamente isto: número do movimento segundo o antes e o depois».(Aristóteles, Metafísica, Livro IV, 219 b, 1-5; o destaque a negrito é da minha autoria).
Sobre a «refutação da causalidade necessária» realizada por Hume e reafirmada por José Reis, basta dizer que as leis da natureza, as leis da física e da astrofísica demonstram que a causalidade existe. Ninguém, de bom senso, se atreveria a beber amoníaco ou a atirar-se de um avião em voo sem páraquedas porque sabe que tais actos seriam causa de morte ou de gravíssimos danos no seu corpo.
A ABOLIÇÃO DO SER ETERNO: PODE PROVAR-SE?
No seu ver anti-metafísico, José Reis sustenta que o absoluto não existe como eternidade mas é apenas o ser temporal, finito. Decreta, pois a abolição do ser eterno. Mas como pode José Reis garantir, com fundamento, que não há um ser-essência eterno? O seu ver anti metafísico é muito limitado. É um empirismo rasteiro, de visão curta. Escreve Reis:
«O ser temporal é, pois, porque só se pode pensar, durante o tempo em que ele existe, como ser e não como nada, tão absoluto como o ser eterno.»
«E mais: ele não é só tão absoluto como o ser eterno, ele é mesmo o único absoluto. Não havendo causalidade, como agora sabemos, e sendo esse ser eterno exigido apenas como causa do ser temporal, este, longe de ser si mesmo um nada sempre à espera da esmola do ser eterno, é que é até o único absoluto. Por muito que custe aos nossos hábitos, é ele agora a medida de tudo. Há só esse ser temporal, tal como ele é na sua temporalidade, isto é, na sua sucessão - o ser temporal, repitamo-lo, não é temporal porque seja de si mesmo o nada mas só porque é uma sucessão - e é tudo.» (José Reis, Nova Filosofia, páginas 78-79, Edições Afrontamento; o destaque a negrito é posto por mim).
O ser temporal é temporal porque é uma sucessão, diz José Reis . Mas o movimento da esfera celeste que acompanha o tempo e de que Aristóteles fala na «Física» é eterno e é sucessão posicional. Eterno não significa necessariamente imóvel, sem sucessão. Por conseguinte, definir o temporal pela sucessão é insuficiente. Há um movimento eterno, intemporal, e movimento é sucessão posicional.
Dizer que o ser temporal - com início e fim no tempo - é tão absoluto como o ser eterno é dizer que o finito é tão absoluto quanto o infinito. É certo que o infinito não existe, em acto, segundo Aristóteles. Há um limite em todas as coisas, até no imenso universo. Mas enquanto essências o eterno é o absoluto e o temporal não é o absoluto mas o relativo. Como existência, o presente é o absoluto, como essência o «agora» não é absoluto porque se relaciona com o sido e o porvir.
Aristóteles distinguiu bem o ser, do tempo, com clareza superior à de Heidegger e de José Reis:
«Todas as coisas se geram e se destroem no tempo. Por isso, enquanto alguns diziam que o tempo era o mais sábio, o pitagórico Paron chamou-o, com clareza, de "o mais néscio", porque no tempo esquecemos. É claro, então, que o tempo tomado em si mesmo é mais precisamente causa de destruição do que de geração, como já se disse antes, porque a mudança é em si mesma, um sair fora de si, e o tempo só indirectamente é causa de geração e de ser. Um indício suficiente disso está no facto de que nada se gera se não se move e actua, enquanto que algo pode ser destruido sem que se mova, e é, sobretudo, de esta destruição que se diz ser obra do tempo. Mas o tempo não é a causa disto, mas dá-se o caso de que a mudança se produz no tempo» .
( Aristóteles, Física, Livro IV, 222 b, 15-20; o destaque a negrito é posto por mim).
O PASSADO SÓ EXISTE ENQUANTO O PENSO AGORA?
José Reis sustenta que o passado só existe enquanto o pensamos agora. Na linha descontinuísta de David Hume, que combateu as noções de necessidade/ causalidade infalível e de continuidade das coisas em todo o tempo, Reis postula os momentos do tempo como desligados entre si de modo que um nunca é causa do outro. Dando o exemplo de olharmos sucessivamente as seis faces de uma caixa - e cada vez que vemos uma é o ver imediato - escreveu:
«Uma vez que só agora o penso, esse passado só agora existe. Supor que a face, porque ela durante esse tempo não foi vista e,uma vez que estava ocupado em ver as outras faces, nem sequer foi pensada, existiu lá em absoluto desligada do pensamento é precisamente esquecer que ela só existiu lá, e existiu sem ser vista nem pensada, porque agora a penso lá dessa maneira; sem isso pura e simplesmente não haveria lá nada . Por muito que custe aos nossos hábitos, esse passado da face só agora existe, durante o tempo em que o penso. (...) O agora, digamo-lo assim, é só esse passado; mas, se tirarmos o agora, esse passado, seja ele uma duração de segundos ou de milénios, pura e simplesmente desaparece. - É irremediável. Se houvesse causalidade e Deus criasse o mundo, Ele não criaria as coisas que nós depois veríamos de tempos a tempos mas criaria as coisas vistas e vistas durante o tempo e segundo o modo como se vêem: criaria o agora em que a face se vê pela primeira vez, criaria o agora em que ela se vê pela segunda vez e criaria o agora em que ela se pensa no intervalo. Só isso existe.» (José Reis, Nova Filosofia, página 129-130, Edições Afrontamento; o destaque a negrito é posto por mim). )
Refutar estas teses idealistas não é difícil: o passado não existe no agora, nem sequer existe, porque já passou; no agora existem apenas a lembrança ou a idealização ou vestígios físicos do passado, isto é, de uma imensidão de agoras ab-rogados.
José Reis é um exemplo de junção entre filosofia analítica e fenomenologia, ambas nascidas do idealismo de David Hume.
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Em «Caminhos do Bosque», Martin Heidegger escreveu sobre a representação e o ser (em grego: einai):
«Pensar é representar, uma relação representadora com o representado (ideia como perceptio).»
«Representar significa aqui situar algo diante de si a partir de si mesmo e assegurar como tal o elemento situado de este modo. Esse assegurar tem de ser uma forma de cálculo O representar já não é essa captação do presente a cujo desocultamento a própria captação pertence, como um modo próprio da presença, a isso que se apresenta de forma não oculta. O representar já não é o descobrir-se para...é a apreensão e compreensão de.. Já não reina o elemento presente mas sim a apreensão. O representar é agora, em virtude da nova liberdade, um proceder antecipador que parte de si mesmo dentro do âmbito do estabelecido que previamente há que estabelecer. O ente já não é o presente, mas aquilo situado do lado oposto no representar, isto é, o que está em frente. O re-presentar é uma objectivação dominadora que rege à partida. O representar empurra tudo para dentro da unidade do assim objectivado. O representar é uma cogitatio.» (Martin Heidegger, La época de la imagen del mundo, in Caminos de bosque, pag 87, Alianza Editorial; o destaque a negrito é posto por mim).
Mais uma vez Heidegger busca a originalidade subvertendo o significado de termos filosóficos consagrados: Hegel distinguia o pensar, que é próprio da filosofia, geradora de conceitos, do representar, uma espécie de pensamento-imagem, arracional ou pouco racional, próprio da religião, mas Heidegger ignora essa distinção. Fixar o pensamento na imagem do nascimento de Jesus é representação, segundo Hegel, mas raciocinar que a ideia absoluta sai fora de si e transforma-se em natureza física é pensamento, segundo o mesmo Hegel.
No texto acima, Heidegger define o ser como a presença, o pre-sente. Mas no presente há uma dupla faceta que Heidegger, como filósofo não dialético, não explicita: momento temporal, ou seja, instante do «agora», e essência atemporal, ou seja, forma (ou forma preenchida por matéria). A crítica de Heidegger à desocultação do ser-presença opondo-o à apreensão é uma crítica débil, um exercício sofístico: Heidegger coloca o ente (tó ón)- que deveria definir como essência geral - fora do ser, isto é do presente, mas o ente está, de facto, situado no presente no passado e no futuro. Em Parménides, existe apreensão e não mera desocultação da presença, ao contrário do que sugere Heidegger. Parménides escreveu;´«Ser e pensar são um e o mesmo». Ora , o pensamento é o que permite a apreensão do passado e do futuro, portanto o ser sai fora do momento presente e reconstrói as catedrais do sido, do que já ocorreu e não se pode alterar, ou esboça as catedrais do por-vir, daquilo que virá.
O passado e o futuro imaginado estão dentro do presente eterno. Há de facto duas noções de ser: presença eterna e presença efémera no agora. O passado está, enquanto representação, no presente actual e o futuro previsível ou idealizável idem. O passado só é passado em relação ao presente e o futuro só é futuro em relação ao presente. Portanto, o ser no sentido de Parménides engloba passado, presente e futuro do mundo em devir. Não é meramente o presente, como Heidegger sustentou.
Heidegger não está aqui para responder ao licenciado em filosofia autor deste blog, que despreza os mestrados e doutoramentos por não reconhecer nestes, em regra, mais do que um trabalho de quantidade, de acumulação de dados, raramente dotado de brilhantismo e clareza superior. Mas os heidegerianos não respondem: são um rebanho obediente ao pensamento, ora brilhante ora medíocre, do mestre falecido em 26 de Maio de 1976.
As universidades não passam de escolas de formação de professores do ensino secundário. É o seu único mérito. Nelas vivem os professores que constroem obtusos exames nacionais de filosofia com perguntas de escolha múltipla, frequentemente com respostas erradas na grelha de correção oficial. Não há nelas, salvo uma ou outra excepção, os mais altos picos do pensamento, a que só os pensadores grandes e isolados ascendem, sem medo de vertigens. Há uma cultura de submissão interesseira dos doutorandos ao catedrático, impera o espírito de rebanho: os catedráticos analíticos, os catedráticos hegelianos, os catedráticos heideggerianos, etc...O rebanho não pensa: imita o pastor ou o carneiro que vai à frente.
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Heidegger chamou a atenção para o facto de o passado de cada ser humano ser um presente designado por sido e neste campo, está em posição similar à de Freud ou Max Scheler. Múltiplos factos do nosso passado, da nossa infância, continuam vivos no nosso inconsciente ou no subconsciente. Não passaram, apenas foram armazenados na «cave» do eu, ocultos por força do devir.
«Enquanto o ser aí (Dasein) existe facticamente, não é nunca passado, mas sim é sempre já sido, no sentido de eu sou sido. E só pode ser sido enquanto é. Passado, chamamos pelo contrário, ao ente que já não é diante dos olhos. Daqui que o ser aí existindo não possa nunca capturar-se a si mesmo como um facto diante dos olhosque com o tempo surge e passa e parcialmente já é passado. O ser aí nunca se encontra a não ser como factum lançado. No encontrar-se o ser aí surpreende-se a si mesmo como o ente que, ainda sendo, já era, quer dizer, é constantemente sido. O sentido primário da facticidade reside no sido. (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 355).
Assim, por exemplo, o meu avô, que morreu há décadas, é passado: o seu corpo desapareceu nas entranhas da Terra. Mas a imagem que conservo de o meu avô me levar ao café, quando eu tinha oito anos de idade, e me pôr a conversar com os seus amigos, é sido e não passado porque está viva, em minha memória.
A facticidade é, por conseguinte, o passado, hereditário ou não, biológico, social, profissional, emocional, etc, vertido na taça do presente. Estritamente confinado na sua facticidade, o ser aí, ou seja, cada homem, não tem liberdade, recebe como um destino aquilo que foi. Decerto, a liberdade existe a partir da facticidade - porque há mais ser além desta - mas não no interior desta, tal como a liberdade da planta enraizada no solo não está nas raízes mas sim nas folhas e no caule. A liberdade encontra-se ligada à existenciaridade - ou existencialidade ou existentividade, conforme as traduções-, um dos ingredientes da cura ou cuidado, que Heidegger define assim:
«O projectar-se sobre ele (o advir) "por mor de si mesmo", que se funda no advir, é uma nota essencial da existenciaridade. O sentido primário desta é o advir.» (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 355).
«A unidade dos ingredientes constitutivos da cura, existenciaridade, facticidade e queda, tornou possível circunscrever ontologicamente pela primeira vez a totalidade do todo estrutural do ser aí. A estrutura da cura ficou resumida na fórmula existenciária pré-ser-já-em (um mundo) como ser-junto (aos entes que estão diante dentro do mundo). (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 344).
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