A «Metafísica» de Aristóteles, fonte inesgotável de saber filosófico, encerra a seguinte passagem:
«Enfim, certas coisas são um numéricamente, outras especificamente, outras genericamente, e outras por analogia; numericamente são-no aquelas coisas cuja matéria é uma, especificamente são-no aquelas cuja definição é uma, genericamente aquela cuja figura de predicação é a mesma e, por fim, por analogia as que guardam entre si a mesma proporção que guardam entre si outras duas. Por outro lado, as modalidades posteriores acompanham sempre as anteriores; assim, as coisas que são um numericamente são-no também especificamente, mas nem todas as coisas que o são especificamente são-no também numericamente; por sua vez, todas as que o são especificamente são-no também genericamente, mas nem todas as que o são genericamente o são ademais especificamente, ainda que o são, sim, por analogia; por seu lado, nem todas as que o são por analogia o são também genericamente.» (Aristóteles, Metafísica, Livro V, 1036 b, 30-35, 1037 a 1-5; o negrito é posto por mim).
Quais são as coisas que são um, numericamente? São os indivíduos, considerados um a um. Cada indivíduo, integrado numa determinada espécie, é um e uno, porque a matéria só é uma e una em cada individuo. O coração de Sócrates não é um só com o de Cleoptara ou o de Platão porque são materialmente distintos entre si e estão alojados em corpos diferentes. Sócrates é um numericamente porque as suas partes, a cabeça, o tronco, as pernas, os braços, a alma são uma só coisa. Mas não é um especificamente nem genericamente porque não existem a espécie Sócrates nem o género Sócrates.
A frase "nem todas as (coisas) que o são genericamente o são ademais especificamente" não é inteiramente clara: o que Aristóteles pretendeu dizer, aparentemente, é que numa dada espécie, que é a parte, não cabe o género todo, isto é, as espécies que constituem o género. Exemplo: as galinhas são do género animal tal como os homens mas as galinhas, parte do género animal, não são a espécie homem. A frase de Aristóteles pode suscitar a equívoca interpretação de que há um resíduo do género que não comporta espécies quando, de facto, o género não é senão o conjunto das espécies que o integram. A mesma crítica se aplica à frase " nem todas as (coisas) que o são por analogia são-no também genericamente."
Resta notar que a analogia é uma aproximação ainda mais ténue e elevada do que o género. Aristóteles não a define como uma forma una ou uma figura de predicação una (uma forma unida a uma «trans»-forma, o género) mas como uma semelhança de proporções entre dois pares de coisas ( exemplo: os pés estão para o homem, como as raízes estão para a árvore, é a mesma proporção). A espécie homem pertence ao género animal e a espécie árvore ao género vegetal mas ambos guardam entre si uma analogia de forma: os pés são análogos às raízes, as pernas e o tronco humano são análogos ao tronco da árvore, os braços são análogos aos ramos da árvore. A analogia entre homem e árvore é acompanhada por uma unidade de género entre ambos: o género (ou supra-género) ser vivo.
Assim, tanto o nível inferior do numericamente - o da individuação - como o nível superior do analogicamente - o da dissolução dos géneros - são caracterizados, em forte tonalidade, pela marca do número, individuador de um ente singular ou de dois pares de coisas. É como se a zona central desta hierarquia - a espécie e o género - fosse essencialmente qualitativa e os extremos - o singular, a prote ousía; o universal, a analogia - fossem essencialmente quantitativos, números.
Pensar com Aristóteles é desenvolver, de facto, a nossa capacidade e erudição filosófica.
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