Sábado, 6 de Fevereiro de 2010
Ter tempo para algo: A gestação das formas do intelecto, da acção interpessoal, dos objectos

Ao dizer «tenho tempo para isto ou para aquilo» significo: posso efectuar tal ou tal acção ou deixar que tal coisa actue sobre mim– toda a acção é criação ou transformação de uma forma material, vital, social ou espiritual. Dar uma aula é uma sucessão de formas mentais e verbais – o discurso do professor e dos alunos, as definições, as correlações entre estas – que exige tempo, isto é, duração dessas formas. Portanto, ter tempo é criar, em potência, ou deixar desenvolverem-se formas, em potência: produzir ideias, raciocínios, imagens ou deixar que aconteçam, e no plano material e social, é manipular ou fabricar objectos, movimentar-se, fazer discursos, interpelar ou abraçar pessoas, etc. O tempo de que se dispõe é a duração da execução de uma tal acção ou seja o acto de plasmação de uma tal forma. O tempo é actualização do ser, passagem da potência ao acto. É manifestação do ser.

 

 

O tempo de trabalho na produção de ideias, serviços ou bens culturais e materiais determina, em princípio, ou deveria determinar, o nível de remuneração do trabalhador. Essas ideias, serviços ou bens culturais e materiais, são formas, minimamente estáveis, executadas e vigentes no tempo. Uma cadeira ou um automóvel são pensados automaticamente na sua coisidade, no ser das suas formas essenciais, e, secundariamente, são também pensados em termos de tempo de trabalho que exigiu a produção das suas formas.

 

  

 

HEIDEGGER NÃO CONCEBEU O TEMPO COMO PROPRIEDADE DA FORMA ESPACIAL

 

  

 

Heidegger esforçou-se por retirar o tempo do campo dos instrumentos de análise ontológica:

 

 

«O "tempo" funciona há muito como critério ontológico, ou melhor ôntico, da distinção ingénua entre as diversas regiões dos entes. Deslindam-se os entes "temporais" (os processos da natureza e a gesta da história) dos entes "intratemporais" (as relações espaciais e numéricas). Costuma-se destacar o sentido "intemporal" das proposições  em relação  ao curso "temporal" das orações que as enunciam. Encontra-se ademais um "abismo" entre o ente "temporal" e o eterno "supratemporal" e tenta-se franqueá-lo.»  (Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 27).

 

 

Mas toda a crítica de Heidegger, de que «a ontologia tradicional confundiu o ser com o tempo», passa por alto a natureza do tempo como propriedade das formas, isto é, permanência destas, passa por ignorar o carácter intrinsecamente temporal do ser. Heidegger continua prisioneiro do dualismo de Kant que postula o  espaço, como sentido externo, e o tempo como sentido interno. Por isso, a concepção heideggeriana do ser é estática, imobilista como seria a de Platão se circunscrevesse rigorosamente o ser ao mundo do Mesmo. E a sua distinção entre ôntico-existente - por exemplo: «o tempo é infinito onticamente» - e ontológico-existencial ou existenciário - no exemplo: «o tempo real é finito ontologicamente» - é algo artificial porque o ôntico é a manifestação do ontológico que transporta dentro de si.

 

É por isso que, ao caracterizar a ontologia de Nietzschze, Heidegger distingue como ser a vontade de poder e como sua modalidade o eterno retorno que seria a existentia, a manifestação temporal externa. O equívoco heideggeriano está em que o ser é tanto a vontade de poder (ser em si) como o eterno retorno (ser por si e para si). Como seria possível conhecer o ser como vontade de poder, que, na teoria de Nietzschze, tem duas faces - a vontade de poder dos aristocratas esclavagistas ou feudais, antiliberais até à medula, e a vontade de poder da plebe, incluido a burguesia liberal e a populaça democrática ou mesmo anarquista e comunista na sua forma extrema - se na serpente circular do tempo não se manifestassem, alternadamente, estas duas faces? O ser inclui o tempo, desdobra-se neste.

 

O vínculo entre tempo e forma é indissociável: o tempo é a permanência, mais ou menos efémera, das formas das coisas, formas que são o ser. Como a permanência ou duração pertence às formas das coisas, ao ser, o tempo pertence ao ser, constitui a camada periférica deste.

 

Faz sentido distinguir um tempo psicológico de um tempo extra animam, objectivo, pois as formas psíquicas gozam de grande autonomia em relação às formas físicas.

 

Max Scheler falou na existência de uma duração sem sucessão. Tal só é possível na duração eterna ou eternidade, fora do tempo mutável, sinuoso. Porque a eternidade é da mesma natureza - ou seja duração - que o tempo historicamente delimitado: é a infinitude deste. Aliás, um dos problemas centrais da filosofia é justamente o de saber se a eternidade é real em acto ou apenas uma fantasia, uma potência ilusória.

 

A duração é a característica essencial do tempo.

 

 

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt

 

f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 08:50
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Janeiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

Ter tempo para algo: A ge...

arquivos

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

tags

todas as tags

favoritos

Teste de filosofia do 11º...

Suicídios de pilotos de a...

David Icke: a sexualidade...

links
blogs SAPO
subscrever feeds