Heidegger (Meßkirch, 26 de setembro de 1889 – Friburgo em Brisgóvia, 26 de maio de 1976] usa a noção de ser anfibologicamente, isto é, com sentidos diferentes e mesmo contrários entre si.
Heidegger escreveu:
«1. O "ser" é o mais universal dos conceitos (...) Mas a "universalidade" do "ser" não é a do género. O "ser" não atinge a mais alta região dos entes enquanto articulados estes a respeito dos conceitos de género e espécie (...) A universalidade do ser é "superior" a toda a universalidade genérica.»
«2. O conceito de "ser" é indefinível. É o que se concluiu da sua suprema universalidade. (...) O ser não é susceptível de uma definição que o derive de conceitos mais altos ou o explique pelos mais baixos.» (...)
«3. O "ser" é o mais compreensível dos conceitos. Em todo o conhecer, enunciar, em todo o conduzir-se relativamente a um ente, em todo o conduzir-se em relação a si mesmo, se faz uso do termo "ser" e o termo é compreensível "sem mais".»
(Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pp 12-13).
Ao escrever que «A universalidade do ser é "superior" a toda a universalidade genérica.» Heidegger está a repetir a tese de Aristóteles segundo a qual o Ente (Ser) e o Uno são conceitos supragenéricos, designados como universais transgenéricos. O ser, tal como o uno e o bom fazem parte dos seis transcendentais ou qualidades universais ou quase universais definidos na filosofia escolástica: ens (ente), res, unum, aliquid, verum, bonum.
Heidegger utiliza a teologia negativa de Mestre Eckart («Sabemos o que não é Deus, não sabemos como é ou o que é, é um Insondável Infinito») para caracterizar o ser:
«Mas o ser - que é o ser? Ser é o que é mesmo. Experimentar isto e dizê-lo é a aprendizagem pela qual deve passar o pensar futuro - não é Deus, nem o fundamento do mundo. O ser é mais longínquo do que qualquer ente e está mais próximo do homem do que qualquer ente, seja este uma rocha, um animal , uma obra de arte, uma máquina, seja um anjo de Deus. O ser é o mais próximo. E contudo, a proximidade permanece, para o homem, a mais distante. O homem atém-se primeiro e para sempre ao ente.»
(Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães & Cª, Editores, Lisboa, 1980, pág. 67; o destaque a negro é posto por nós).
Ao abordar os modos do ser, Heidegger, por assim dizer, esquarteja o próprio ser: o ser aí, o ser aí com de os outros, o ser com, o ser no mundo, o ser em, o ser junto a, o ser diante dos olhos, o ser para a morte. Afasta-se de Parménides que recusou definir o ser com, o ser em, o ser no mundo, o ser para a morte porque para o grande filósofo grego o ser é «uno, homogéneo, contínuo, eterno, imprincipial, invisível e imperceptível aos sentidos, imóvel, imutável, limitado espacialmente como uma esfera, idêntico ao pensar, exterior ao mundo do devir, da alteração das cores maravilhosas, do nascimento e da morte». O ser no mundo de Heidegger é o não ser de Parménides - ou a mistura de ser e não ser - porque nele estão inscritas a pluralidade e a mudança. Heidegger escreveu:
«O "ser junto" ao mundo, no sentido de absorver-se no mundo, sentido que haverá de interpretar-se ainda melhor, é um existenciário fundado no "ser em".» (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pág 67).
«O ser, tema fundamental da filosofia, não é o género de nenhum ente e, sem embargo, toca a todo o ente. Há que buscar mais alto a sua "universalidade" . O ser e a sua estrutura estão por cima de todo o ente e de toda a possível determinação de um ente que seja ela mesma ente. O ser é o transcendens pura e simplesmente. (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pág 48; o destaque a negro é nosso).
Se o ser é o transcendente puro e simples não pode estar contido no ser-aí, ou seja, em cada sujeito na sua individualidade, vai muito além deste. O ser transcendente não pode desdobrar-se em ser em, ser com, ser no mundo, ser à mão porque é uma totalidade, um Ente universal. O ser com, a que Heidegger chama um existenciário, é uma modalidade do ser-aí (cada sujeito humano) mas não do ser porque este último abarca tudo, não está com nada. Ser como Ente é uma essência universal e ser com, ser em, ser no mundo, ser para a morte, são categorias (Heidegger chama-lhes existenciários) , não são entes, são modalidades do ser aí ou cada homem na sua individualidade e subjectividade. Como se pode falar em ser para a morte se o ser é eterno, imortal?
Os heideggerianos, fascinados pela habilidade sofística do mestre, passam por alto estas diferenças.
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© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Toda a filosofia de Heidegger assenta em um paradoxo: na indefinição do ser correlata à definição de entes distintos do ser. Heidegger escreveu:
«1. O "ser" é o mais universal dos conceitos (...) Mas a "universalidade" do "ser" não é a do género. O "ser" não atinge a mais alta região dos entes enquanto articulados estes a respeito dos conceitos de género e espécie (...) A universalidade do ser é "superior" a toda a universalidade genérica.»
«2. O conceito de "ser" é indefinível. É o que se concluiu da sua suprema universalidade. (...) O ser não é susceptível de uma definição que o derive de conceitos mais altos ou o explique pelos mais baixos.» (...)
«3. O "ser" é o mais compreensível dos conceitos. Em todo o conhecer, enunciar, em todo o conduzir-se relativamente a um ente, em todo o conduzir-se em relação a si mesmo, se faz uso do termo "ser" e o termo é compreensível "sem mais".»
(Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pp 12-13).
Se o ser é impossível de definir, é incoerente dizer que «é o mais compreensível». Se é compreensível, tem definição. Para a generalidade dos crentes em Deus ou deuses, estes têm definição ainda que nunca os tenham visto: «espírito universal, criador ou regedor do universo, fonte do bem», «espírito universal, fonte do bem e do mal», «espíritos com poderes sobrenaturais», etc. E prossegue Heidegger:
«O ser, tema fundamental da filosofia, não é o género de nenhum ente e, sem embargo, toca a todo o ente. Há que buscar mais alto a sua "universalidade" . O ser e a sua estrutura estão por cima de todo o ente e de toda a possível determinação de um ente que seja ela mesma ente. O ser é o transcendens pura e simplesmente. (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pág 48).
Mas enquanto proclama indefinível o ser Heidegger fala da agressão do ente e do afastamento deste relativamente ao ser:
«O esquecimento da verdade do ser, em favor da agressão do ente impensado na sua essência, é o sentido da «decaída» nomeada em Ser e Tempo. » (Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães & Cª, Editores, Lisboa, 1980, pág. 69).
Se o ser é indefinido como se pode definir o esquecimento da verdade do ser? O esquecimento é esquecimento de algo que tem definição porque traça limites. Vamos a casos concretos:
1) Defender a democracia liberal, que comporta liberdades individuais, é esquecer a verdade do ser ou é afirmar esta?
2) Cultivar o olival superintensivo, alimentado com mangueiras de borracha por onde circulam produtos químicos, em vez do olival tradicional é esquecer a verdade do ser ou afirmar esta?
Heidegger não concretiza. Ele é um hábil obscurantista, um dos últimos defensores da metafísica tradicional, ainda que procure demarcar-se desta e ultrapassá-la supostamente. Com a arrogância que o caracteriza afirma:
«A Metafísica, porém, somente conhece a clareira do ser, ou desde o olhar que nos lança aquilo que se nos presenta no aspecto ideia ou criticamente, como o objecto da perspectiva de representação categorial por parte da subjectividade.»
(Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães & Cª, Editores, Lisboa, 1980, pág. 68).
E Heidegger? Conseguiu ir além da clareira do ser? Não, pois nada sabe dizer-nos sobre o ser além da sua universalidade de tocar a todos os entes. Apesar de delinear as modalidades do ser - o ser aí, o ser no mundo, o ser com, o ser junto a, o ser diante dos olhos, etc. - Heidegger nada nos diz sobre o que é o ser. Limita-se a isto:
«Mas o ser - que é o ser? Ser é o que é mesmo. Experimentar isto e dizê-lo é a aprendizagem pela qual deve passar o pensar futuro - não é Deus, nem o fundamento do mundo. O ser é mais longínquo do que qualquer ente e está mais próximo do homem do que qualquer ente, seja este uma rocha, um animal , uma obra de arte, uma máquina, seja um anjo de Deus. O ser é o mais próximo. E contudo, a proximidade permanece, para o homem, a mais distante. O homem atém-se primeiro e para sempre ao ente.»
(Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães & Cª, Editores, Lisboa, 1980, pág. 67).
Para Parménides o Ser é definível: uno, homogèneo, esférico, contínuo, incriado, imóvel, eterno, sempre o mesmo, pensável, situado além da mudança e do movimento, da ilusão do crescimento, declínio e morte e da ilusão da multiplicidade e alteração das cores e das estações do ano. Para Heidegger, não: o ser é indefinível.
E Heidegger acusa a ontologia tradicional de confundir o ser com o tempo. Só ele, Heidegger, seria "o descobridor" de uma nova via para o ser. É uma intrujice porque a frase «Ser é o que é mesmo» foi importada de Parménides e tem implícita em si a noção de tempo: o ser é eterno, incriado e eternidade é o tempo levado ao grau infinito. Não é possível estudar o ser sem o tempo, do mesmo modo que na teoria da relatividade de Einstein o espaço e o tempo são indissociáveis, falando-se do espaço-tempo.
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