Toda a filosofia de Heidegger assenta em um paradoxo: na indefinição do ser correlata à definição de entes distintos do ser. Heidegger escreveu:
«1. O "ser" é o mais universal dos conceitos (...) Mas a "universalidade" do "ser" não é a do género. O "ser" não atinge a mais alta região dos entes enquanto articulados estes a respeito dos conceitos de género e espécie (...) A universalidade do ser é "superior" a toda a universalidade genérica.»
«2. O conceito de "ser" é indefinível. É o que se concluiu da sua suprema universalidade. (...) O ser não é susceptível de uma definição que o derive de conceitos mais altos ou o explique pelos mais baixos.» (...)
«3. O "ser" é o mais compreensível dos conceitos. Em todo o conhecer, enunciar, em todo o conduzir-se relativamente a um ente, em todo o conduzir-se em relação a si mesmo, se faz uso do termo "ser" e o termo é compreensível "sem mais".»
(Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pp 12-13).
Se o ser é impossível de definir, é incoerente dizer que «é o mais compreensível». Se é compreensível, tem definição. Para a generalidade dos crentes em Deus ou deuses, estes têm definição ainda que nunca os tenham visto: «espírito universal, criador ou regedor do universo, fonte do bem», «espírito universal, fonte do bem e do mal», «espíritos com poderes sobrenaturais», etc. E prossegue Heidegger:
«O ser, tema fundamental da filosofia, não é o género de nenhum ente e, sem embargo, toca a todo o ente. Há que buscar mais alto a sua "universalidade" . O ser e a sua estrutura estão por cima de todo o ente e de toda a possível determinação de um ente que seja ela mesma ente. O ser é o transcendens pura e simplesmente. (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pág 48).
Mas enquanto proclama indefinível o ser Heidegger fala da agressão do ente e do afastamento deste relativamente ao ser:
«O esquecimento da verdade do ser, em favor da agressão do ente impensado na sua essência, é o sentido da «decaída» nomeada em Ser e Tempo. » (Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães & Cª, Editores, Lisboa, 1980, pág. 69).
Se o ser é indefinido como se pode definir o esquecimento da verdade do ser? O esquecimento é esquecimento de algo que tem definição porque traça limites. Vamos a casos concretos:
1) Defender a democracia liberal, que comporta liberdades individuais, é esquecer a verdade do ser ou é afirmar esta?
2) Cultivar o olival superintensivo, alimentado com mangueiras de borracha por onde circulam produtos químicos, em vez do olival tradicional é esquecer a verdade do ser ou afirmar esta?
Heidegger não concretiza. Ele é um hábil obscurantista, um dos últimos defensores da metafísica tradicional, ainda que procure demarcar-se desta e ultrapassá-la supostamente. Com a arrogância que o caracteriza afirma:
«A Metafísica, porém, somente conhece a clareira do ser, ou desde o olhar que nos lança aquilo que se nos presenta no aspecto ideia ou criticamente, como o objecto da perspectiva de representação categorial por parte da subjectividade.»
(Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães & Cª, Editores, Lisboa, 1980, pág. 68).
E Heidegger? Conseguiu ir além da clareira do ser? Não, pois nada sabe dizer-nos sobre o ser além da sua universalidade de tocar a todos os entes. Apesar de delinear as modalidades do ser - o ser aí, o ser no mundo, o ser com, o ser junto a, o ser diante dos olhos, etc. - Heidegger nada nos diz sobre o que é o ser. Limita-se a isto:
«Mas o ser - que é o ser? Ser é o que é mesmo. Experimentar isto e dizê-lo é a aprendizagem pela qual deve passar o pensar futuro - não é Deus, nem o fundamento do mundo. O ser é mais longínquo do que qualquer ente e está mais próximo do homem do que qualquer ente, seja este uma rocha, um animal , uma obra de arte, uma máquina, seja um anjo de Deus. O ser é o mais próximo. E contudo, a proximidade permanece, para o homem, a mais distante. O homem atém-se primeiro e para sempre ao ente.»
(Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães & Cª, Editores, Lisboa, 1980, pág. 67).
Para Parménides o Ser é definível: uno, homogèneo, esférico, contínuo, incriado, imóvel, eterno, sempre o mesmo, pensável, situado além da mudança e do movimento, da ilusão do crescimento, declínio e morte e da ilusão da multiplicidade e alteração das cores e das estações do ano. Para Heidegger, não: o ser é indefinível.
E Heidegger acusa a ontologia tradicional de confundir o ser com o tempo. Só ele, Heidegger, seria "o descobridor" de uma nova via para o ser. É uma intrujice porque a frase «Ser é o que é mesmo» foi importada de Parménides e tem implícita em si a noção de tempo: o ser é eterno, incriado e eternidade é o tempo levado ao grau infinito. Não é possível estudar o ser sem o tempo, do mesmo modo que na teoria da relatividade de Einstein o espaço e o tempo são indissociáveis, falando-se do espaço-tempo.
NOTA: COMPRA O NOSSO «DICIONÁRIO DE FILOSOFIA E ONTOLOGIA», 520 páginas, 20 euros (portes de correio para Portugal incluídos), CONTACTA-NOS.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz
Heidegger intitulou o seu livro mais famoso de «Ser e tempo.» Implicitamente, estreitou o conceito de «Ser». Porque «Ser» significa duas coisas distintas o que Heidegger não explicita, em regra:
A) Existir.
B) Essência geral, isto é, forma ou estrutura geral.
São duas coisas diferentes embora interligadas. O tempo não é uma essência geral mas é a contínua alteração (alloíosís, em grego) dessa essência: é o puro movimento interno das formas, a mudança destas. É o movimento dentro da imobilidade. O tempo é pois uma modalidade do ser. Ou é o ser entendido como existir, não como forma ou essência geral. O movimento é a transição entre duas essências - uma forma e a forma que lhe sucede no mesmo lugar ou entre dois lugares diferentes.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Livraria online de Filosofia e Astrologia Histórica