Heidegger (Meßkirch, 26 de setembro de 1889 – Friburgo em Brisgóvia, 26 de maio de 1976] usa a noção de ser anfibologicamente, isto é, com sentidos diferentes e mesmo contrários entre si.
Heidegger escreveu:
«1. O "ser" é o mais universal dos conceitos (...) Mas a "universalidade" do "ser" não é a do género. O "ser" não atinge a mais alta região dos entes enquanto articulados estes a respeito dos conceitos de género e espécie (...) A universalidade do ser é "superior" a toda a universalidade genérica.»
«2. O conceito de "ser" é indefinível. É o que se concluiu da sua suprema universalidade. (...) O ser não é susceptível de uma definição que o derive de conceitos mais altos ou o explique pelos mais baixos.» (...)
«3. O "ser" é o mais compreensível dos conceitos. Em todo o conhecer, enunciar, em todo o conduzir-se relativamente a um ente, em todo o conduzir-se em relação a si mesmo, se faz uso do termo "ser" e o termo é compreensível "sem mais".»
(Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pp 12-13).
Ao escrever que «A universalidade do ser é "superior" a toda a universalidade genérica.» Heidegger está a repetir a tese de Aristóteles segundo a qual o Ente (Ser) e o Uno são conceitos supragenéricos, designados como universais transgenéricos. O ser, tal como o uno e o bom fazem parte dos seis transcendentais ou qualidades universais ou quase universais definidos na filosofia escolástica: ens (ente), res, unum, aliquid, verum, bonum.
Heidegger utiliza a teologia negativa de Mestre Eckart («Sabemos o que não é Deus, não sabemos como é ou o que é, é um Insondável Infinito») para caracterizar o ser:
«Mas o ser - que é o ser? Ser é o que é mesmo. Experimentar isto e dizê-lo é a aprendizagem pela qual deve passar o pensar futuro - não é Deus, nem o fundamento do mundo. O ser é mais longínquo do que qualquer ente e está mais próximo do homem do que qualquer ente, seja este uma rocha, um animal , uma obra de arte, uma máquina, seja um anjo de Deus. O ser é o mais próximo. E contudo, a proximidade permanece, para o homem, a mais distante. O homem atém-se primeiro e para sempre ao ente.»
(Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães & Cª, Editores, Lisboa, 1980, pág. 67; o destaque a negro é posto por nós).
Ao abordar os modos do ser, Heidegger, por assim dizer, esquarteja o próprio ser: o ser aí, o ser aí com de os outros, o ser com, o ser no mundo, o ser em, o ser junto a, o ser diante dos olhos, o ser para a morte. Afasta-se de Parménides que recusou definir o ser com, o ser em, o ser no mundo, o ser para a morte porque para o grande filósofo grego o ser é «uno, homogéneo, contínuo, eterno, imprincipial, invisível e imperceptível aos sentidos, imóvel, imutável, limitado espacialmente como uma esfera, idêntico ao pensar, exterior ao mundo do devir, da alteração das cores maravilhosas, do nascimento e da morte». O ser no mundo de Heidegger é o não ser de Parménides - ou a mistura de ser e não ser - porque nele estão inscritas a pluralidade e a mudança. Heidegger escreveu:
«O "ser junto" ao mundo, no sentido de absorver-se no mundo, sentido que haverá de interpretar-se ainda melhor, é um existenciário fundado no "ser em".» (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pág 67).
«O ser, tema fundamental da filosofia, não é o género de nenhum ente e, sem embargo, toca a todo o ente. Há que buscar mais alto a sua "universalidade" . O ser e a sua estrutura estão por cima de todo o ente e de toda a possível determinação de um ente que seja ela mesma ente. O ser é o transcendens pura e simplesmente. (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pág 48; o destaque a negro é nosso).
Se o ser é o transcendente puro e simples não pode estar contido no ser-aí, ou seja, em cada sujeito na sua individualidade, vai muito além deste. O ser transcendente não pode desdobrar-se em ser em, ser com, ser no mundo, ser à mão porque é uma totalidade, um Ente universal. O ser com, a que Heidegger chama um existenciário, é uma modalidade do ser-aí (cada sujeito humano) mas não do ser porque este último abarca tudo, não está com nada. Ser como Ente é uma essência universal e ser com, ser em, ser no mundo, ser para a morte, são categorias (Heidegger chama-lhes existenciários) , não são entes, são modalidades do ser aí ou cada homem na sua individualidade e subjectividade. Como se pode falar em ser para a morte se o ser é eterno, imortal?
Os heideggerianos, fascinados pela habilidade sofística do mestre, passam por alto estas diferenças.
NOTA: COMPRA O NOSSO «DICIONÁRIO DE FILOSOFIA E ONTOLOGIA», 520 páginas, 20 euros (portes de correio para Portugal incluídos), CONTACTA-NOS. Apoia a produção filosófica independente. Se neste blog absorves ideias novas e raciocínios luminosos podes retribuir comprando o dicionário.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Toda a filosofia de Heidegger assenta em um paradoxo: na indefinição do ser correlata à definição de entes distintos do ser. Heidegger escreveu:
«1. O "ser" é o mais universal dos conceitos (...) Mas a "universalidade" do "ser" não é a do género. O "ser" não atinge a mais alta região dos entes enquanto articulados estes a respeito dos conceitos de género e espécie (...) A universalidade do ser é "superior" a toda a universalidade genérica.»
«2. O conceito de "ser" é indefinível. É o que se concluiu da sua suprema universalidade. (...) O ser não é susceptível de uma definição que o derive de conceitos mais altos ou o explique pelos mais baixos.» (...)
«3. O "ser" é o mais compreensível dos conceitos. Em todo o conhecer, enunciar, em todo o conduzir-se relativamente a um ente, em todo o conduzir-se em relação a si mesmo, se faz uso do termo "ser" e o termo é compreensível "sem mais".»
(Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pp 12-13).
Se o ser é impossível de definir, é incoerente dizer que «é o mais compreensível». Se é compreensível, tem definição. Para a generalidade dos crentes em Deus ou deuses, estes têm definição ainda que nunca os tenham visto: «espírito universal, criador ou regedor do universo, fonte do bem», «espírito universal, fonte do bem e do mal», «espíritos com poderes sobrenaturais», etc. E prossegue Heidegger:
«O ser, tema fundamental da filosofia, não é o género de nenhum ente e, sem embargo, toca a todo o ente. Há que buscar mais alto a sua "universalidade" . O ser e a sua estrutura estão por cima de todo o ente e de toda a possível determinação de um ente que seja ela mesma ente. O ser é o transcendens pura e simplesmente. (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica de España, Madrid, 2001, pág 48).
Mas enquanto proclama indefinível o ser Heidegger fala da agressão do ente e do afastamento deste relativamente ao ser:
«O esquecimento da verdade do ser, em favor da agressão do ente impensado na sua essência, é o sentido da «decaída» nomeada em Ser e Tempo. » (Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães & Cª, Editores, Lisboa, 1980, pág. 69).
Se o ser é indefinido como se pode definir o esquecimento da verdade do ser? O esquecimento é esquecimento de algo que tem definição porque traça limites. Vamos a casos concretos:
1) Defender a democracia liberal, que comporta liberdades individuais, é esquecer a verdade do ser ou é afirmar esta?
2) Cultivar o olival superintensivo, alimentado com mangueiras de borracha por onde circulam produtos químicos, em vez do olival tradicional é esquecer a verdade do ser ou afirmar esta?
Heidegger não concretiza. Ele é um hábil obscurantista, um dos últimos defensores da metafísica tradicional, ainda que procure demarcar-se desta e ultrapassá-la supostamente. Com a arrogância que o caracteriza afirma:
«A Metafísica, porém, somente conhece a clareira do ser, ou desde o olhar que nos lança aquilo que se nos presenta no aspecto ideia ou criticamente, como o objecto da perspectiva de representação categorial por parte da subjectividade.»
(Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães & Cª, Editores, Lisboa, 1980, pág. 68).
E Heidegger? Conseguiu ir além da clareira do ser? Não, pois nada sabe dizer-nos sobre o ser além da sua universalidade de tocar a todos os entes. Apesar de delinear as modalidades do ser - o ser aí, o ser no mundo, o ser com, o ser junto a, o ser diante dos olhos, etc. - Heidegger nada nos diz sobre o que é o ser. Limita-se a isto:
«Mas o ser - que é o ser? Ser é o que é mesmo. Experimentar isto e dizê-lo é a aprendizagem pela qual deve passar o pensar futuro - não é Deus, nem o fundamento do mundo. O ser é mais longínquo do que qualquer ente e está mais próximo do homem do que qualquer ente, seja este uma rocha, um animal , uma obra de arte, uma máquina, seja um anjo de Deus. O ser é o mais próximo. E contudo, a proximidade permanece, para o homem, a mais distante. O homem atém-se primeiro e para sempre ao ente.»
(Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães & Cª, Editores, Lisboa, 1980, pág. 67).
Para Parménides o Ser é definível: uno, homogèneo, esférico, contínuo, incriado, imóvel, eterno, sempre o mesmo, pensável, situado além da mudança e do movimento, da ilusão do crescimento, declínio e morte e da ilusão da multiplicidade e alteração das cores e das estações do ano. Para Heidegger, não: o ser é indefinível.
E Heidegger acusa a ontologia tradicional de confundir o ser com o tempo. Só ele, Heidegger, seria "o descobridor" de uma nova via para o ser. É uma intrujice porque a frase «Ser é o que é mesmo» foi importada de Parménides e tem implícita em si a noção de tempo: o ser é eterno, incriado e eternidade é o tempo levado ao grau infinito. Não é possível estudar o ser sem o tempo, do mesmo modo que na teoria da relatividade de Einstein o espaço e o tempo são indissociáveis, falando-se do espaço-tempo.
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Contrariamente à nossa posição habitual de não fazer perguntas de escolha múltipla nos testes de filosofia a que se responde com uma simples cruz, construímos, por razões de disciplina comunitária uma matriz comum solicitada pela Inspeção Geral de Ensino, e construímos um teste em que entra este tipo de perguntas.
Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia , Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA A
17 de Maio de 2017. Professor: Francisco Queiroz
GRUPO I (10 pontos x 5)
Em cada questão, indique a única resposta correcta de entre 4 hipóteses
1) O realismo gnoseológico ou ontognoseológico é a corrente que sustenta que…
A) A matéria física está dentro da nossa mente e fora da nossa mente.
B) A ideia e a matéria são uma e a mesma coisa.
C) A matéria física está fora da nossa mente e do nosso corpo.
D) O cepticismo é o mesmo que o realismo.
2) Paul Feyerabend sustentou que
A) A metafísica deve ser abolida.
B) As ciências universitárias estão livres de ideologia e de interesses de lobbies
C) A inteligência do homo sapiens do mito era superior à do homem de hoje.
D) A indução amplificante não vale nada.
3) São ciências hermenêuticas:
A) A matemática e a lógica.
B) A filosofia, a psicologia, a antropologia.
C) A biologia, a geologia, a química.
D) Aquelas que excluem qualquer interpretação e só fazem experiências.
4)O idealismo não solipsista subjectivo sustenta que:
A) A matéria é real em si mesma.
B) A matéria não é real em si mesma e cada um a inventa a seu modo pessoal.
C) Não se sabe se a matéria é real ou irreal e cada um pensa de modo diferente.D) O cepticismo é a única teoria válida.
D) O cepticismo é a única teoria válida.
5)O princípio da falsificabilidade em Popper:
A) Impede que se escolha qualquer teoria como científica.
B) Não impede que se escolha uma teoria em cada ciência na condição de ela ser tida como conjectura.
C) É a mesma coisa que o princípio da incerteza de Heisenberg.
D) Afirma que não há demarcação entre astrologia e astrofísica, valem o mesmo.
GRUPO II (60+40 pontos)
1)Explique concretamente o seguinte texto:
«O positivismo lógico difere do conjecturalismo de Popper na posição face à indução amplificante. A incomensurabilidade dos paradigmas não dá vantagem nem à ciência normal nem à ciência extraordinária segundo Kuhn. O ultra-objecto de Bachelard exige arredar os obstáculos epistemológicos.»
2)Explique os três estádios da existência segundo Kierkegaard e a afirmação «Deus é, não existe, o homem não é, existe».
GRUPO III (50 pontos)
Explique concretamente o seguinte texto:
«O ser-aí de Heidegger equivale ao ser-para-si de Sartre mas o primeiro transporta o ser ao passo que o ser-para-si carrega o nada. Para Heidegger o homem é o pastor do ser e a linguagem é a casa do ser.»
CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 200 PONTOS (20 VALORES)
GRUPO I (50 PONTOS)
1-C)......................................10 PONTOS
2-C).......................................10 PONTOS
3-B).......................................10 PONTOS
4-B)........................................10 PONTOS
5-B).........................................10 PONTOS
GRUPO II (6O PONTOS)
1) O positivismo lógico, doutrina que sustenta que a verdade se limita aos factos empíricos e suas relações lógico-matemáticas, baseia-se no paradigma da indução amplificante: a partir de alguns ou muitos exemplos empíricos pode induzir-se uma lei geral necessária. Isto opõe-se ao paradigma conjecturalista anti-indutivo de Karl Popper pois, segundo este, as teses das ciências empíricas e empírico-formais não passam de conjecturas e é impossível verificar todos os exemplos correspondentes a uma dada lei (exemplo: mesmo que eu só veja milhares de cisnes brancos ninguém garante que não haja cisnes azuis ou verdes), logo a indução amplificante não tem valor dogmático científico. Apenas se pode corroborar isto é tornar verosímil uma tese de base empírica(VALE VINTE PONTOS) . A incomensurabilidade dos paradigmas é a impossibilidade de medir e comparar globalmente dois ou mais paradigmas, de os medir no seu todo. Por exemplo, é incomensurável preferir o heliocentrismo ao geocentrismo e vice-versa. Sendo a ciência normal aquela que é dominante entre a comunidade científica de uma dada época - por exemplo, a teoria do Big Bang na astrofísica é hoje a ciência normal - e a ciência extraordinária é aquela que é marginal - a teoria do universo estacionário, que não nasceu de um ovo infinitamente pequeno, de Fred Hoyle é hoje ciência extraordinária - nenhuma delas se superioriza à outra sob este ponto de vista da incomensurabilidade. (VALE 20 PONTOS). O ultra-objecto em Bachelard, que é um objecto empírico-racional, invisível no todo ou em parte, concebido pela razão (exemplo: os átomos, os quarks e leptões; os buracos negros e a matéria escura do cosmos) só é idealizado ou descoberto se removermos todo e qualquer obstáculo epistemológico, ou seja, todo e qualquer entrave ao conhecimento científico (por exemplo: a primeira experiência, algo enganadora; o preconceito; a falta de microscópios, computadores, telescópios e outros aparelhos necessários, etc)(VALE 20 PONTOS).
2)Segundo Kierkegaard, filósofo existencialista cristão, há três estádios na existência humana: estético, ético e religioso. No estádio estético, o protótipo é o Don Juan, insaciável conquistador de mulheres que vive apenas o prazer do instante, e sente angústia se está apaixonado por uma mulher e teme não a conquistar. O desespero é posterior à angústia: é a frustração sobre algo que já não tem remédio ou que se esgotou. Ao cabo de conquistar e deixar centenas de mulheres, o Don Juan cai no desespero: afinal nada tem, o prazer efémero esvaiu-se. Dá então o salto ao ético: casa-se. No estado ético, o paradigma é do homem casado, fiel à esposa, cumpridor dos seus deveres familiares e sociais. Este estado relaciona-se com o essencialismo, doutrina que afirma que a essência, o modelo do carácter ou do comportamento vem antes da existência e condiciona esta. A monotonia e a necessidade do eterno faz o homem saltar ao estádio religioso, em que Deus é o valor absoluto, apenas importa salvar a alma e os outros pouco ou nada contam. Abraão estava no estádio religioso, de puro misticismo, quando se dispunha a matar o filho Isaac porque «Deus lhe ordenou fazer isso». O estádio religioso é o do puro existencialismo, doutrina que afirma que a existência vive-se em liberdade e angústia sem fórmulas (essências) definidas, buscando um Deus que não está nas igrejas nem nos ritos oficiais. Neste estádio, o homem casado pode abandonar a mulher e os filhos se «Deus lhe exigir» retirar-se para um mosteiro a meditar ou para uma região subdesenvolvida a auxiliar gente esfomeada. A escolha a cada momento ante a alternativa é a pedra de toque do existencialismo. Kierkegaard acentuava a noção de angústia, essa liberdade bloqueada, essa intranquilidade que surge antes ou durante muitos actos decisivos (exemplo: a angústia do aluno antes de saber a nota do teste, a angústia da mãe antes do parto, etc). Kierkegaard situa o paradoxo no interior do estado religioso e diz que se deve amar e seguir a vontade de Deus apesar de não compreendermos esta. (VALE TRINTA PONTOS).a afirmação «Deus é, não existe, o homem não é, existe» significa que Kierkegaard atribui ao termo «ser» e «é» o sentido de eternidade e imutabilidade, própria de um Deus incriado e indestrutível, e ao termo «existe» os sentido de nascimento/crescimento/eclínio/morte e alteração a cada momento, traços da condição humana (VALE 10 PONTOS).
GRUPO III (50 PONTOS)
1) O ser-aí, na teoria de Heidegger, é cada homem na sua subjectividade que carrega dentro de si o ser, isto é, a essência geral do universo e da humanidade e equivale ao ser-para-si que, em Sartre, é a consciência pensante, distinta do ser em si que é o mundo dos corpos (árvores, automóveis, animais, etc ) - que carrega em si o nada porque Sartre afirma que, ao nascer, não somos nada, psíquicamente falando, nem bons nem maus (VALE 30 PONTOS). Para Heidegger, o homem é o pastor do ser significa que o ser, a essência geral humana e inumana, é o patrão do ser-aí, isto é de cada homem: o ser chama uns a ser pintores, outros a ser operários fabris, outros a ser professores, sacerdotes, navegadores, agricultores, obriga todos a respeitar a tradição cultural do seu país, etc. A linguagem é a casa do ser significa que, apesar da sua natureza transcendente e imanente ao homem e ao mundo, a linguagem não é arbitrária, não diz ao acaso, refere-se a uma estrutura ordenada a que chamamos ser e designa as várias modalidades deste: ser-aí, ser com, ser no mundo, ser junto a, ser para a morte, etc. (VALE 20 PONTOS).
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
«O Ser e o Tempo», essa "bíblia" da fenomenologia, escrita por Heidegger, é um livro de dupla face: nele, ideias e raciocínios brilhantes juntam-se a paralogismos e equívocos de que o grande público, e mesmos os especialistas em Heidegger, não se dão conta. Escreveu Heidegger:
« Antes de tudo, há que advertir que Kant usa o termo "existência" para designar a forma de ser que na presente investigação se chama "ser diante dos olhos". (...)
«O simples facto de que Kant peça uma prova da "existência das coisas fora de mim" mostra que põe o ponto de apoio do problema no sujeito, no "em mim". Consequentemente, desenvolve-se a própria prova partindo da mudança dada empíricamente em mim. »
«Pois só em mim é experimentado o tempo que suporta a prova. O tempo é quem dá o apoio para o salto demonstrativo do "fora de mim". (...)
«O que prova Kant - concedida a legitimidade da prova e da sua base - é o necessário "ser diante dos olhos juntamente" um ente mutável e um ente permanente. Mas a coordenação dos entes "diante dos olhos" nem sequer quer dizer já "o ser diante dos olhos juntamente" um sujeito e um objeto. E uma vez provado isto, continuaria encoberto o ontologicamente decisivo: a estrutura fundamental do "sujeito", do "ser aí" como "ser no mundo". O "ser diante dos olhos juntamente" o físico e o psíquico é ôntica e ontologicamente em toda a linha distinto do fenómeno do "ser no mundo"».
(Heidegger, El Ser y el tiempo, pag. 224-225, Fondo de Cultura Económica)
Contrariamente ao que Heidegger afirma, Kant não ocultou a estrutura do sujeito como "ser no mundo". Kant sustentou que o sujeito é o criador ou co-criador do mundo fenoménico, das paisagens terrestres e celestes e seus objetos materiais, e que não existe um dualismo ontológico rigoroso entre sujeito e objeto fenoménico:
«Esta hipótese de união entre duas substâncias, a pensante e a extensa, tem por fundamento um dualismo grosseiro e transforma estas substâncias, que são meras representações do sujeito pensante, em coisas subsistindo por si. Pode-se, pois, demolir a falsa concepção da influência física, mostrando que o fundamento da sua prova é nulo e fictício.»
«O famoso problema do que pensa e do que é extenso acabaria assim, se fizermos abstração de tudo o que é imaginário, simplesmente em saber como é possível num sujeito pensante em geral, uma intuição externa, ou seja, a intuição do espaço ( do que o preenche, a figura e o movimento). A esta questão não é possível a homem algum encontrar uma resposta e nunca se poderá preencher essa lacuna do nosso saber, mas somente indicar que se atribuem os fenómenos externos a um objeto transcendental...» (Kant, Crítica da Razão Pura, páginas 367-368, nota de rodapé, Fundação Calouste Gulbenkian; o destaque a negrito é posto por mim).
Como este excerto denota, Kant não considerou o sujeito como um espectador do mundo entendido como "ser diante dos olhos" (concepção realista, dualista) mas antes como um criador do mundo, um "ser no mundo" em sentido heideggeriano.
Também não parece que a existência da mudança - da sucessão e dos seus correlatos duração e da simultaneidade, características do tempo, segundo Kant - constituissem, para Kant, meios de prova de um mundo exterior, como sustenta Heidegger. O facto de, na concepção de Kant, o tempo ser o sentido interno e o espaço o sentido externo não faz com que o tempo seja o trampolim de prova do "mundo exterior". Este, como mundo exterior ao corpo físico - distinção que Heidegger, Russel e outros não fazem, o que prova a inépcia destes ao estudar a gnosiologia de Kant - está dado automaticamente na intuição pura de espaço e não carece de prova. Quanto ao verdadeiro mundo exterior ao espaço e ao espírito humano em geral, é impossível de demonstrar a sua existência ainda que a razão o idealize composto de númenos (Deus, alma imortal, mundo como totalidade).
Heidegger nunca compreendeu integralmente Kant, tal como a generalidade dos filósofos contemporâneos. Excetuarei Hegel e Schopenhauer e algum outro. Nem Heidegger, nem Bertrand Russel, nem Witgenstein, nem os catedráticos que hoje lecionam nas universidades mais prestigiadas entenderam, a fundo, o pensamento kantiano. Nenhum destes, nem mesmo Heidegger, clarificou o duplo sentido que Kant atribui às expressões análogas "fora de nós" e "mundo exterior":
1) O espaço está fora do nosso corpo mas dentro do nosso espírito, do vasto sector deste denominado sensibilidade, um «salão» imenso onde cabe a natureza visível, audível e palpável, feita de montanhas, céus, árvores, corpos de animais e humanos, isto é, fenómenos.
2) Os númenos ou coisas em si estão, presumivelmente, fora do nosso corpo e do nosso espírito envolvente e constituem o verdadeiro mundo exterior. ,
O «Ser e o Tempo» de Heidegger é, por conseguinte, um livro com erros importantes no plano da ontognosiologia, em especial da ontognosiologia de Kant, mas o estilo retórico e emaranhado de Heidegger, sem embargo da originalidade intelectual deste, subjuga o público vulgar e os académicos, que, mais ou menos acríticos, fingem compreender os paralogismos do grande filósofo alemão do século XX. Sou, presumivelmente, um dos únicos a gritar:«O rei (Heidegger), supostamente vestido com um fato invisível (de sapiência retórica), vai nú!».
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Heidegger escreveu:
«Os entes são independentes da experiência, do saber e dos conceitos que os abrem e definem. » (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 203, Fondo de cultura económica; o negrito é colocado por mim).
Na doutrina de Kant, os entes cognoscíveis, isto é, os fenómenos - como por exemplo, árvore, mesa, corpo humano - não são independentes da experiência, nascem e vivem no seio desta, são construção da sujectividade. É o idealismo material de Kant. Mas Heidegger posiciona-se de maneira diferente. Os entes são independentes do conhecer humano. Mas este é barrado por um reposteiro e isso é a fenomenologia.
«Um cético não pode ser refutado, como tampouco pode ser "provado" o ser da verdade. O cético, se é facticamente, no modo de negação da verdade, tampouco necessita de ser refutado. Na medida em que é e compreende este seu ser, extinguiu no desespero do suicídio o "ser aí" (Dasein) e com ele a verdade. A verdade e a sua necessidade não podem provar-se, porque o "ser aí" não pode ser para si mesmo "objecto" de prova. Como não se provou que haja "verdades eternas", tampouco se provou que alguma vez tenha havido um céptico real - como crêem no fundo as refutações do ceptismo, apesar da tarefa que se propõem levar a cabo. « (Heidegger, ibid, pag 230).
Heidegger assegura que afirmar o ser (caso do dogmático) ou negar o ser (caso do cético) possui, em certo sentido, o mesmo grau de veracidade porque a verdade não se prova, não é objectiva, já que passa pelo crivo do "ser-aí" que é cada homem na sua circunstância. As Torres Gémeas de Nova Iorque, destruídas faticamente por aviões e bombas em 11 de Setembro de 2001, eram entes independentes do saber humano, entes diante dos olhos, mas nunca se saberá se poderiam existir sem haver humanidade, mentes humanas (realismo ontológico) ou se só podem existir indissociavelmente ligadas às mentes humanas (fenomenologia).
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Em um dos seus mais belos textos filosóficos, datado de 1942, Heidegger escreveu:
«A expressão óntico, inspirada no grego tò ón, o ente, significa aquilo que se cinge ao ente. Mas o grego "ón", ente, encerra dentro de si uma essência própria de entidade (ousía) que no transcurso da sua história nunca permanece igual.(...) Como ón significa tanto "ente" como "o quê é" ( 1) on enquanto "ente" pode ser reunido (legéin) em direcção a "o quê é" ( 2) . Até se pode dizer que, de acordo com a sua ambiguidade, ón já está reunido como ente por mor da sua entidade. É ontológico. Mas com a essência do ón e a partir de ela, esse reunir que é, o lógos, transforma-se em cada caso e com ela, a ontologia. Desde que ón, o que se apresenta, se abriu como físis, a presença do que se apresenta reside, para os pensadores gregos, no fainestaí, na manifestação do não oculto que se mostra a si mesma. De acordo com isto, a multiplicidade do que se apresenta, tà onta, é pensada como aquilo que na sua manifestação é simplesmente aceite como o que se apresenta. A aceitação (dékestai) fica sem continuidade. Efectivamente, não continua a pensar mais além, na presença daquilo que se apresenta. Fica na dóxa. Pelo contrário, o noein é aquele perceber que percebe o presente na sua presença e a partir de aí abarca-a com ele.»( Martin Heidegger, Caminos de Bosque, El concepto de experiencia de Hegel, pag 133, Alianza Editorial, Madrid; o negrito é posto por mim).
1) Nota minha: A tradução espanhola desta passagem diz: "Como ón significa tanto "ente" como "lo que es". Atrevi-me a alterá-la, substituindo "o que é" por o "quê é" porque me parece absurda a versão espanhola: o ente é "o que é", "algo que é" , e não "o quê é" , tò tí, isto é o quid, a forma específica ou individual.
2) Nota minha: de novo corrijo aqui a tradução espanhola de "lo que es" substituindo-a por "lo qué-es" ( o quê é).
Ser possui na língua grega, o significado de presença, conforme sublinha Heidegger. Mas a essência não é, em rigor, presença, mas forma, estrutura. A essência delimita, especifica ou individualiza o ente, como a forma da estátua de mármore delimita ou individualiza o mármore em bruto. No texto acima, a presença designa o "ser" e o presente indica o "ente".
A acusação de Heidegger à tradição filosófica é a de esta esquecer o ser, que subjaz ao ente e o transcende, em favor do ente. Por exemplo: a metafísica cristã, confundiu o "ser", qualidade totalizante, com o ente "Deus", um espírito omnipotente, benéfico e autor do mundo.
A minha crítica a Heidegger, pensador brilhante da ontologia e, em certa medida, da filosofia analítica, reside na sua ambígua interpretação do termo "ser", nomeadamente expressa na seguinte passagem de Sein und Zeit:
«2. O conceito de "ser" é indefinível. É o que se concluiu da sua suprema universalidade. E com razão - si definitio fit per genus proximum et differentiam specificam. O "ser" não pode, com efeito, conceber-se como um ente; enti non additur aliqua natura; o "ser" não pode ser objecto de determinação predicando dele um ente.» (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, pag 13, Fondo de cultura económica de España, Madrid; o negrito é colocado por mim).
Penso que o conceito de ser é definivel. A sua definição é dupla:
A) É o existir universal (presença).
B) É a essência geral de todos os entes, incluindo do ser-aí (cada homem, na sua singularidade).
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Em uma passagem fundamental de "O Ser e o Tempo" Heidegger caracteriza assim a essência e a existentia do "ser aí" (Dasein), isto é, cada homem na sua singularidade:
«Desta caracterização do "ser aí" resultam duas coisas:
«1. A essência de este ente está no seu "ser relativamente a". O "quê é" (essentia) de este ente, até onde se pode falar dele, tem que conceber-se partindo do seu ser (existentia). (...) este termo não tem nem pode ter a significação ontológica do termo existentia: existentia quer dizer ontológicamente "ser diante dos olhos" , uma forma de ser que, por essência não convèm ao ente do carácter do "ser aí". Evitamos a confusão usando sempre em vez do termo "existentia a expressão exegética "ser diante dos olhos" e reservando o termo de existencia como determinação do ser, para o "ser aí".
«A essência do "ser aí" está na sua existência. As características que se pode pôr em evidência neste ente não são, portanto, "peculiaridades" "diante dos olhos" de um ente "diante dos olhos" de tal ou qual "aspecto", mas sim modos de ser possíveis para ele em cada caso e só isto. Todo o "ser tal" de este ente é primariamente "ser". Daí que o termo "ser aí", com que designamos este ente não expresse o seu «quê é», como mesa, casa, árvore, mas o ser.» (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 54, Fondo de Cultura Económica).
Por conseguinte, existência, em Heidegger, significa não a realidade ôntica, visível e palpável, de cada ente mas antes o "ser", na sua dupla faceta de existir universal e essência/estrutura geral que atravessa os entes (o homem, o céu, o cavalo, a casa, etc).
Que significa o "ser relativamente a"? É o "ser" universal que podemos imaginar como o centro do círculo e a totalidade deste, isto é, os raios que emana até à circunferência cujos pontos (desta) seriam os entes (o "ser aí" ou homem, as árvores, os rios, as casas, etc).
A essência de cada ente foi extraída da existentia - ou existir universal e estrutura geral do "ser" - do mesmo modo que a figura da estátua (essência, quê é) foi extraída do bloco de mármore ("ser", existência transcendente e imanente à estátua). O mármore, que uso como imagem do "ser", transcende a estátua, é mais vasto que ela e, ao mesmo tempo, é imanente a ela. As leis da estrutura do mármore, a coesão entre as moléculas dos seus componentes ´físico-químicos, é o modo do "ser" relativamente à estátua.
Em vez de usar o termo existência, que confunde muitos dos seus leitores, Heidegger deveria ter usado in-sistência e dizer que «a essência do "ser aí" está na sua in-sistência», na interioridade do "ser" . A frase «a essência do homem está na sua existência» é interpretada, na filosofia de Sartre, de forma inversa à de Heidegger: como acidentalismo, construtivismo da essência, sempre incompleta, esboçada, através da acção objectiva. Para Sartre, a essência do homem não existe a priori, nasce da acção. Mas para Heidegger a essência do homem existe a priori, nasce, não da acção mas do "ser" transcendental e, obviamente, tempera-se e consolida-se na acção.
Por isso existencialismo, em Heidegger, é essencialismo. E em Sartre, é acidentalismo, libertismo.
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Heidegger chamou a atenção para o facto de o passado de cada ser humano ser um presente designado por sido e neste campo, está em posição similar à de Freud ou Max Scheler. Múltiplos factos do nosso passado, da nossa infância, continuam vivos no nosso inconsciente ou no subconsciente. Não passaram, apenas foram armazenados na «cave» do eu, ocultos por força do devir.
«Enquanto o ser aí (Dasein) existe facticamente, não é nunca passado, mas sim é sempre já sido, no sentido de eu sou sido. E só pode ser sido enquanto é. Passado, chamamos pelo contrário, ao ente que já não é diante dos olhos. Daqui que o ser aí existindo não possa nunca capturar-se a si mesmo como um facto diante dos olhosque com o tempo surge e passa e parcialmente já é passado. O ser aí nunca se encontra a não ser como factum lançado. No encontrar-se o ser aí surpreende-se a si mesmo como o ente que, ainda sendo, já era, quer dizer, é constantemente sido. O sentido primário da facticidade reside no sido. (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 355).
Assim, por exemplo, o meu avô, que morreu há décadas, é passado: o seu corpo desapareceu nas entranhas da Terra. Mas a imagem que conservo de o meu avô me levar ao café, quando eu tinha oito anos de idade, e me pôr a conversar com os seus amigos, é sido e não passado porque está viva, em minha memória.
A facticidade é, por conseguinte, o passado, hereditário ou não, biológico, social, profissional, emocional, etc, vertido na taça do presente. Estritamente confinado na sua facticidade, o ser aí, ou seja, cada homem, não tem liberdade, recebe como um destino aquilo que foi. Decerto, a liberdade existe a partir da facticidade - porque há mais ser além desta - mas não no interior desta, tal como a liberdade da planta enraizada no solo não está nas raízes mas sim nas folhas e no caule. A liberdade encontra-se ligada à existenciaridade - ou existencialidade ou existentividade, conforme as traduções-, um dos ingredientes da cura ou cuidado, que Heidegger define assim:
«O projectar-se sobre ele (o advir) "por mor de si mesmo", que se funda no advir, é uma nota essencial da existenciaridade. O sentido primário desta é o advir.» (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 355).
«A unidade dos ingredientes constitutivos da cura, existenciaridade, facticidade e queda, tornou possível circunscrever ontologicamente pela primeira vez a totalidade do todo estrutural do ser aí. A estrutura da cura ficou resumida na fórmula existenciária pré-ser-já-em (um mundo) como ser-junto (aos entes que estão diante dentro do mundo). (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 344).
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Uma das linhas de força da filosofia de Heidegger é a tentativa de destruição ou de rectificação da linguagem que foi sedimentando, ao longo dos séculos, no leito do rio da ontologia e da filosofia. Muitos méritos cabem a Heidegger nesta tarefa hermenêutico-etimológica. Recuperou a tradição que Platão expusera no «Crátilo» - as letras e as palavras como «pinturas», imagens, com fundamento analógico, das ideias e objectos físicos e que Aristóteles prosseguiu na «Metafísica» . Mas há esforços de Heidegger que, a meu ver, resultaram inúteis: é o caso, por exemplo, da tentativa de atribuir à palavra mundo um significado distinto do de «meio ou ambiente envolvente de numerosas entidades físicas ou espirituais».
«Mundo, todavia, na expressão «ser-no-mundo», não significa, de modo algum, o ente terreno, em oposição ao celeste, nem mesmo o mundano em oposição ao "espiritual". "Mundo", naquela expressão, não significa de modo algum, um ente e nenhum âmbito do ente, mas a abertura do ser. O homem é e é homem enquanto é o ex-sistente. Ele está postado, num processo de ultrapassagem, na abertura de ser, que é o modo como o próprio ser é; este projectou a essência do homem, como um lance, no cuidado de si. Projectado desta maneira, o homem está postado "na abertura do ser". Mundo é a clareira do ser na qual o homem penetrou a partir da condição de ser-projectado de sua essência. O "ser-no-mundo" nomeia a essência da ek-sistência, com vista à dimensão iluminada, desde a qual desdobra o seu ser o ex da ex-sistência. Pensada a partir da ex-sistência, mundo é, justamente, de certa maneira, o outro lado no seio da e para a ex-sistência.» ((Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães Editores, Págs 99-100; a letra; a letra negrita é posta por mim ).
Em termos simples, o ser compara-se a uma floresta densa da qual é projectada a essência do homem numa clareira da floresta designada por mundo. Mas a clareira é, simultaneamente, interior e exterior ao eu humano. Interior, em parte: o mundo entra dentro do homem, na medida em que só este tem a percepção sensorial-intelectual da totalidade dos seres que o povoam; o mundo está fora do homem porque, como rede, se estende sobre e engloba os "entes diante dos olhos" (exemplo: nuvens, mares, florestas) , os «entes à mão» (exemplo: automóveis, talheres, computadores, utensílios à mão») e até o «ser aí» - cada homem - em certa medida.
Para Heidegger, o mundo não é o universo físico (mundo terreno) nem o espaço metafísico (mundo espiritual divino). Não é o âmbito do ente. O que é então? É a abertura do ser, a clareira do ser.
Mas isto é, de facto, algo incoerente. A abertura e a clareira são, apesar de Heidegger o negar, um âmbito, um espaço, físico ou meramente psíquico, onde são dispostos os entes (árvores, cães, planícies, casas, mares,etc) . Seja intra anima ou extra anima ou ambas a coisas de facto, é ambas as coisas - o mundo é sempre um âmbito, um vasto «círculo» ou «esfera» no seio do qual se plantam os entes.
O mundo pertence ao ser e ao homem, que é o ser-aí. Em O ser e o tempo, Heidegger disse expressamente:
«El mundo no es ontologicamente una determinación de aquellos entes que el ser ahí, por esencia, no es, sino un carácter del "ser-ahí" mismo.» ( Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pag 77).
O mundo é, por conseguinte, um campo sensorial-conceptual que só o homem ( ser aí) possui e no qual se projectam os objectos "físicos" ou "entes diante dos olhos". Idealidade do mundo mas não necessariamente dos objectos que o povoam, pois Heidegger diz:
«Los entes intramundanos son proyectados sin excepción sobre el fondo del mundo, es decir, sobre un todo de significatividad a cuyas relaciones de referencia se ha fijado por anticipado el curarse de en cuanto ser en el mundo. Cuando los entes intramundanos son descubiertos a una con el ser del "ser ahí", es decir, han venido a ser comprendidos, decimos que tienen "sentido"). .» ( Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pag 77; a letra negrita é nossa).
Isto significa que os entes intramundanos rios, campos, animais não fazem parte do ser do homem (ser aí) são-lhe exteriores ou, no mínimo, correlatos (exteriores-imanentes como gémeos siameses). Não sabemos, pois, se a matéria existe em si mesma. Sabemos, sim, que, na óptica de Heidegger, os objectos são exteriores ao ser-aí - mas serão ideias autobsistentes ou corpos físicos reais? Ou algo indeterminado? Na imagem heideggeriana do ser como floresta e do ser-aí (homem) como colocado na abertura ou clareira do ser (mundo) não se esclarece o lugar dos entes intramundanos: estão na clareira mas foram projectados. A partir de onde? Heidegger não o diz. Parece-me lógico que os entes intramundanos (exemplo: a nuvem, a pedra, a montanha) sejam projectados desde o interior da floresta densa onde subsistem, presumivelmente, como «árvores», algo comparáveis aos arquétipos platónicos.
Na passagem abaixo, Heidegger rejeita o realismo e a própria fenomenologia como corrente intermédia dos correlativos para afirmar um ontologismo ´- a realidade, nem material nem espiritual, fora do sujeito, é o ser - que tem, sem dúvida, a influência do idealismo kantiano, fazendo corresponder o ser ao númeno kantiano exterior ( objecto incognoscível, exterior, como Deus e mundo metafísico) e o ser-aí (Dasein) ao númeno kantiano interior (objecto interior, como alma imortal e liberdade).
«O homem jamais é primeiramente do lado de cá do mundo como um «sujeito», pense-se este como «eu» ou como «nós». Nunca é também primeiramente e apenas sujeito, que, na verdade, sempre se refere, ao mesmo tempo, a objectos, de tal maneira que a sua essência consistiria na relação sujeito-objecto. Ao contrário, o homem primeiro é, em sua essência, ex-sistente na abertura do ser, cuja aberta ilumina o «entre» em cujo seio pode «ser» uma «relação» de sujeito e objecto. » (Heidegger, Carta sobre o Humanismo,Págs 99-100).
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Heidegger não é o gigante do pensamento filosófico que muitos pensam. Sem dúvida, é um filósofo acima do comum, mas a sua hábil manipulação da linguagem no vazio do imaginário (o símbolo sem referentes reais), sem correspondência no ser, fez também dele o maior dos
sofistas do século XX da filosofia.
Heidegger escreveu:
«O "tempo" não está "diante dos olhos", nem no "sujeito", nem no "objecto", nem "dentro", nem "fora" e "é" anterior a toda a subjectividade e objectividade porque representa a própria possibilidade de este «anterior»...»
«..a temporalidade, enquanto horizontal-extática, temporaliza o que chamamos um tempo mundano, que constitui a intratemporalidade do «à mão» e do «diante dos olhos». Mas então estes entes não podem chamar-se "temporais" em sentido rigoroso. São intemporais, como todos os entes que não têm a forma do ser do "ser aí", dêem-se, gerem-se e corrompam-se "realmente" ou subsistam "idealmente" (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, Madrid, pag 452).
Esta não é senão a posição de Platão. As árvores, os rios, os cavalos e outros objectos são intemporais em si mesmos, embora sejam apreendidos no tempo pelo ser-aí (cada homem, em cada caso). As essências (eidos) são intemporais e o tempo «mergulha-as», aparentemente, no «banho» da ek-sistência.
Heidegger não sai da concepção platónica do tempo como «imagem móvel da eternidade». Mas a sua presunção de se apresentar como um agente de ruptura com a tradição ontológica impede-o de reconhecer isso nos seus textos. E a multidão dos professores universitários heideggerianos, que o louvam sem compreender a real natureza do seu pensamento, faz de Heidegger um mito que, graças à obscuridade de alguns dos seus conceitos capitais, permanece isento de crítica.
f.limpo.queiroz
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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