Andrés Ortiz-Osés (Tardienta, Huesca, Aragón,1943) talvez o melhor filósofo espanhol vivo, cuja hermenêutica simbólica apresenta tonalidades junguianos, desenvolveu o conceito de coimplicação. Escreveu:
«Toda a mitologia trata de coimplicar as diferentes realidades e não de resolvê-las analiticamente: daí o carácter de trama quase novelesca, relatante ou interactiva do texto mitológico, cuja textura ou urdidura confere aferência e coesão a toda a referência e coerência. Por ele os símbolos da mitologia não são meros signos ou representações de ideias ou conceitos, mas autênticos tótens de implicação: poderíamos definir o símbolo como a noção hindu-budista de rasa em Java, cujo significado se corresponde com o latino sensus como significação afectiva ou razão cordial (onde o coração aparece como co/razão da nossa razão). Hermann Hesse pôde escrever a esse respeito que "o que amamos é só um símbolo" - um símbolo redefinido pelo amor dos contrários e a sutura cultural que estabelece na nossa fissura natural, cuja brecha (hiato, cisão) define o animal humano. Com efeito, como diz C. Geertz, a cultura estabelece-se no vazio que se dá no homem entre o corpo (natural) e o que temos de fazer (culturalmente) , assim pois entre o ser (aberto) e o dever ser (compleição). Ora bem, a cultura é tanto ou mais implicação que explicação, afeção que controlo, estados de alma que estados de ánimo: só assim a razão simbólica enquanto razão relacional logra reconhecer ou aparentar (cognoscere) o irreconhecível para a razão pura/puritana. Um tal reconhecimento do irracional ou irracionalizado pela razão pura, não evita decerto o mal e o sofrimento radical, mas torna-o maleável e sofrível ao nomeá-lo, encaixá-lo e anexá-lo ao Sentido».
(Diccionario interdisciplinar de Hermenéutica, dirigido por A.Ortiz-Osés y P.Lanceros, Universidad de Deusto, Bilbao, 2006, pag.382; o destaque a negrito é posto por nós).
Neste texto afirma-se que há uma fissura na natureza humana - por exemplo, o homem bom que de repente se torna mau, homicida - que é suturada ou cosida com "fio" pela cultura - por exemplo, o respeito pela religião aos dez mandamentos como o «Não matarás», «Não cobiçarás a mulher do próximo». A cultura é mais coimplicação - ligação de dois fenómenos sem vínculo marcadamente racional, como por exemplo, à meia noite de 31 de Dezembro abrir as janelas de casa «para fazer sair o ano velho» ou na noite de 23 para 24 de Junho sair ao campo a «colher plantas mágicas»- do que explicação racional.
O que é a coimplicação? É a junção de contrários ou de colaterais ou a geração mútua de contrários. A filosofia oriental do taoísmo e o seu símbolo gráfico - um círculo dividido em duas partes por uma linha em S - baseia-se em coimplicações: em todo o Yang (Sol, Calor, Metade Vermelha do Círculo) há um pouco de Yin (Lua, Frio, Escuridão, pequeno círculo ou bolha na Metade Vermelha); em todo o Yin (Lua, Frio, Metade Azul do Círculo) há um pouco de Yang (Sol, Calor, Luz pequeno círculo ou bolha na Metade Azul).
O amor de Deus a todas as criaturas coimplica a justiça divina, o envio ao ao inferno ou ao purgatório das almas que morreram em pecado mortal ou com penas temporais a expiar. A disciplina do clero católico obrigado à castidade coimplica a pedofilia e a homossexualidade: o bem gera o mal e viceversa. Onde existem os maiores santos existem, por necessidade (coimplicação) os maiores criminosos. O alto coimplica o baixo e viceversa.
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© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
José Gil, filósofo português de matriz francesa, talvez o mais proeminente académico de filosofia dentro da instituição universitária, no Portugal do século XXI, escreveu o seu mais paradigmático ensaio há uns 15 anos, sobre a fenomenologia da percepção ideosensível, a estética e a arte. Aí se pode ler:
«O esqueire - e o equívoco - fazem com que o gesto corporal signifique para além dos movimentos do corpo (em suma, que o corpo fale de outro modo que não simplesmente agindo, confundindo gestos e ações). É então que o espaço de uma massa semântica autónoma, significada pela linguagem, se pode constituir.»
«A tensão entre estes dois vetores - esgueire e equívoco, intervalo e confusão - desemboca num equilíbrio instável: a situação original de um intervalo que põe um "interior" amorfo é acompanhado por um equívoco que impõe aderências tão estreitas entre a expressão e o expresso que um dos temas não consegue desprender-se por completo um do outro: não há "hipocrisia" fora da expressão corporal ou facial da hipocrisia. Mas o sentido de "hipocrisia" não se esgota nesta expressão: permanece o intervalo entre o expresso e a expressão, como persiste entre o fundo informe e a forma que incarna o sentido.» (José Gil, A imagem-nua e as pequenas perceções, pag 297, segunda edição, Relógio de Água; a letra negrita é posta por mim).
Lendo este discurso, simultaneamente barroco e racional, podemos perguntar-nos: até que ponto um escritor de grande qualidade como José Gil - este não é, seguramente, inferior a José Saramago - não dilui o filosofar como exercício de especulação racional na metáfora poética?
José Gil constrói uma arquitetura ontológico-fenomenológica em que o esgueire ou lugar ontológico vazio e o equívoco ou caos «informe» são os motores do conhecimento, em particular da percepção sensível. Todos os filósofos buscam definir dois ou três princípios fundamentais na génese do mundo ou do conhecimento humano: em Tales de Mileto, a água e a inteligência modeladora chamada Deus, em Aristóteles, a forma, a matéria-prima e o composto, em Descartes, a res divina, a res cogitans e a res extensa, em Kant, o sujeito transcendental ou a priori e os númenos, em Heidegger o ser desdobrado essencialmente em ser-aí (cada homem) e ser diante dos olhos (o mundo visível e palpável, "exterior"), etc.
Aparentemente Gil é um antiplatónico: não se vislumbra, ao menos nesta parte da obra, a postulação de arquétipos ou modelos eternos e perfeitos àparte das coisas existentes do quotidiano, uma vez que diz-nos que não há hipocrisia fora do esgar hipócrita do rosto ou do gesto corporal hipócrita, isto é, não separa a essência do ente ou sendo. Começarei por pôr em dúvida que a linguagem se constitua após o esgueire e o equívoco abrirem um além na acção corporal. Não é o equívoco já a linguagem em potência? Não está a linguagem, desde o início, tanto como o metafenómeno ou feixe gerador de energias de que Gil fala adiante, a dirigir e direcionar o devir-outro do homem?
No excerto acima de José Gil, parece-me ambígua a utilização do termo «intervalo»: é usado ora como nada ontológico ou esgueire, ora como diferenciação entre o expresso e a expressão, diferenciação que não é, seguramente, um nada, a meu ver, mas um espaço presente e separador. Gil não escapa ao calcanhar de Aquiles dos filósofos em geral que é a anfibologia, o atribuir a um mesmo termo, sentidos diferentes, no mesmo texto, sem se darem conta disso.
Além disso, pergunta-se: se o intervalo põe um "interior" amorfo ou fundo informe, em que se distingue esse intervalo ou lugar não inscrito do fundo amorfo?
UM LUGAR QUE NÃO É FÍSICO NEM PSÍQUICO, QUE NÃO É SENTIDO NEM SEM-SENTIDO - OU COMO A IMAGEM POÉTICA AFASTA DO RIGOR FILOSÓFICO
E prossegue José Gil:
«Se há intervalo inicial entre o que se vê no corpo do outro e o que ele significa (para além do que significa aquilo que se vê) é porque qualquer coisa de absolutamente irredutível (à presença para a qual remete o signo ou a forma) escapa à significância do visível. Não se trata do que, do sentido, não é signo ou não é significável; mas, mais profundamente, daquilo que não sendo nem indizível nem inefável, cai fora da esfera tanto do signo como do sentido, não é nem coisa a dizer nem coisa a denotar. Isso, que não tem nome, é um lugar não inscrito, lugar do intervalo entre o visível das formas do corpo e o informe que procura tomar forma; a esse lugar, não há símbolo, nem índice, nem forma que o nomeie porque não é nem conteúdo psíquico, nem um lugar físico, nem um pensamento; não é um sentido nem um não-sentido. Mas só ele permite aos pensamentos que se formem e ao sentido tornar-se não-sentido; aos signos significarem e às formas surgirem e combinarem-se.» (José Gil, ibid, pag 297; o negrito é colocado por mim).
Nada há de radicalmente novo em filosofia nestas linhas. Parece estarmos a ler o «Livro do Caminho», de Lao Tse, quando este diz que do não ser, do sem forma, do vazio (Tao) nasce o ser, o que tem forma. O que surpreende é como Gil salta os campos alinhados, de contornos definidos da lógica, e mergulha nos vapores sulfurosos da inconsistência lógica: «o lugar sem nome não é indizível ... mas não é coisa a dizer»; «o lugar não é um sentido nem um não sentido» , aqui afrontando o princípio do terceiro excluído; «não se trata do que, do sentido, não é signo nem significável.. mas (do que) cai fora da esfera tanto do signo como do sentido...», expressão que se afigura algo incoerente uma vez que na esfera do sentido tudo é significável o que a primeira parte da citação nega.
Mas o belo discurso, que inclui o paradoxo, não transcende a filosofia como ciência de rigor? E não se situa no mar do imaginário que é, sobretudo, poesia e literatura surreal?
UM SOLO MOVEDIÇO INTERIOR, EXTERIOR OU INTERNO-EXTERNO?
Gil escreve ainda a propósito do Esgueire ou intervalo-primordial, a «zona zero» da "Manhattan" das duas torres gémeas da sua filosofia, a Torre do Equívoco e a Torre das Formas realizadas:
«É o lugar-zero a partir do qual o corpo-imagem de outros se cobre de infinitas vibrações, de movimentos intervalos: se a esquematização do sentido do corpo se continua a prestar à subjetivização, é porque o solo sobre o qual se ergue a imagem do corpo está em incessante movimento de diferenciação, de dissolução e de apagamento desse mesmo solo. A "superfície" de inscrição, a pele-nua, do corpo percebido são afetados de um não-lugar, de uma não-inscrição eventual. É o não-lugar do absolutamente possível. Porque o intervalo de Esgueire é absoluto e ao Equívoco corresponde o Possível. Os possíveis do devir-outro partem de um zero de atualidade que é muito simplesmente nulo (comparável decerto ao caos de Klee; ao abismo-caos de Guaugin, ao abismo-branco de Malevitch). »
«O branco da inscrição é o que não teve lugar. É um não acontecimento. Duplo paradoxo: o de poder haver produção de um não acontecimento e o de esse acontecimento poder produzir acontecimentos (a não-inscrição pode levar um homem a inscrever, encetando por exemplo um devir-artista). »(José Gil, A imagem-nua e as pequenas perceções, pag 298; a letra a negrito é posta por mim).
Note-se que o termo "não-inscrição" usado por Deleuze e outros filósofos franceses significa o que não existe ou o que existe mas permanece invisível e indetetado. Passemos por alto, o facto de Gil definir o Esgueire de forma oscilante, ora como um não-lugar, ora como intervalo espacial- neste último caso é um lugar porque o espaço se compõe de lugares.
Em Gil, o Esgueire é o lugar-zero e o não-lugar do absolutamente possível ao passo que o Equívoco corresponde ao Possível. Há uma diferença de grau, no mínimo. Dir-se-ia que o Esgueire é o ser em potência mas esta definição aplicar-se-ia igualmente ao Equívoco...E, afinal, o que é o solo movente, em transformação, sobre o qual se ergue a imagem-nua do corpo? É algo interior ao eu psico-corporal, exterior a este ou ambas as coisas? O texto não nos esclarece.
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O que é o sentido (em grego: ennoia) de algo ? Na língua grega actual, a expressão o sentido das coisas diz-se "ennóia (sentido) tós pragmáton (coisas) (την έννοια των πραγμάτων). A expressão "sentido de" significa, não a capacidade sensorial humana, mas uma ordem, imanente ou transcendente a cada coisa. Sentido tem várias acepções, entre as quais:
A) Finalidade (télos) ou causa final . Por exemplo, na cosmologia de Aristóteles, o sentido do movimento dos corpos no mundo sub-lunar é o do retorno à fonte primordial: uma maçã cai da árvore em direcção à esfera da terra no centro do mundo porque a sua finalidade é voltar ao lugar de origem. O sentido de uma chama subir no ar é o desejo de regressar à esfera do fogo, de onde é originária, esfera essa que se situa acima das esferas da terra, água e ar.
B) Proporção (logos), que é o sentido imanente a algo, por comparação entre as diferentes partes.
C) Inteligência (nous).
D) Direcção (tésis).
E) Inerência de uma qualidade à respectiva substância.
F) Necessidade (ananké), isto é, lei infalível de causa-efeito, que estrutura não só a natureza biofísica - a físis, ou seja, o nascimento, crescimento, declínio e morte ou desagregação dos entes - mas também a lógica e a matemática.
G) Ordem (táxis).
O sentido é, pois, um nexo ou elo de ligação do ponto de vista da coerência interna - o que se exprime sobretudo na táxis, ananké, logos e no nous- mas também do ponto de vista da referência ou correspondência externa - o que se traduz sobretudo na direcção, na necessidade e na finalidade, e também no logos universal, no nous. Há sentido no monismo e sentido no dualismo. O positivismo lógico reduziu o termo sentido ao binómio ideação-comprovação: só tem sentido algo que se pense e se formule por palavras e se comprove empiricamente, de forma directa ou indirecta. É uma definição insuficiente, falseadora. É exactamente o oposto da ideia de "sentido-nexo" da filosofia grega antiga e da posterior tradição filosófica.
O que é interessante é notar a tonalidade intelectual do conceito de "sentido" na língua grega, em oposição a outras línguas como o português, o espanhol, o francês, o inglês em que o termo "sentido" designa também a capacidade de percepção sensorial (aistésis, em grego): em português, fala-se, por exemplo, no "sentido da vista" e no "sentido da vida"; em espanhol usa-se o termo "sentido" para "la visión, audición, olor, etc" e para o nexo inteligente da vida, el «sentido de la vida»; em francês, les "sens des organes sensorielles" são de natureza diferente do "sens de ce mot ou de cette phrase, uns sens intelectuel"; em inglês, "the five senses of the body" e "the sense of life" possuem significados muito distintos.
Na língua grega, não se confunde, no plano vocabular, a ideia de sentido como nexo ou ordem inteligível das coisas com a ideia de sentido como faculdade de percepção empírica, sensorial.
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