Alguns equívocos subsistem nos manuais do professor «50 lições de filosofia, 11º ano» e «50 lições de filosofia, 10º ano» da Didáctica Editora, de Aires Almeida, Célia Teixeira e Desidério Murcho.
HÁ CONHECIMENTO SEM CRENÇA , AO CONTRÁRIO DO QUE SUSTENTA O MANUAL DO 11º
Sobre a definição da filosofia analítica àcerca do conhecimento como «crença verdadeira justificada» diz o manual:
«A crença é condição necessária do conhecimento.»
«Acreditar é um estado mental ou psicológico de convicção ou de adesão a algo. A crença ocorre, portanto, na mente de alguém. Mesmo que as crenças sejam acerca de objectos exteriores, nem por isso elas deixam de se encontrar apenas na mente do sujeito que acredita. Se digo que acredito que o Benfica será campeão no próximo ano, estou apenas a exprimir o que vai na minha cabeça, até porque aquilo que o Benfica conseguirá no próximo ano é algo que ainda nem sequer aconteceu.» (Aires Almeida e Desidério Murcho, «50 lições de filosofia, 11º ano » Didáctica Editora, pág. 108). .
Há conhecimento sem crença, ao contrário do que afirmam Aires Almeida e Desidério Murcho: o conhecimento sensorial, por exemplo. O cão, tal como o homem, conhece o calor do verão ou o frio do inverno sem acreditar - sente apenas. A crença pressupõe um pensamento ou um princípio de pensamento - disto não se apercebem os filósofos analíticos e a grande massa amorfa dos docentes que os seguem. Kant cometeu grossa asneira ao sustentar que o conhecimento só existe no entendimento, em resultado da união deste com a sensibilidade. Intelectualizou o conhecimento, o que é uma visão parcelar.
Ora os dois tipos extremos de conhecimento que se tocam no fechar do círculo - a sensação e a intuição inteligível - não pressupõem nenhuma crença, são involuntários, irracionais, ocorrem simplesmente. Excluem a crença: ambos são certeza «totalitária». Não preciso de crença no vermelho do sol poente que neste momento desfruto: sinto-o na minha retina. Não tenho crença na bondade dos vírus das vacinas a «prevenir» doenças: sei, por intuição inteligível, que são nocivos ao corpo humano.
A crença implica pensamento, um certo distanciamento entre o sujeito e o objecto - daí o «ver para crer» - ao passo que o conhecimento pleno é a pura adesão do sujeito ao objecto, acto no qual a crença se dissipa.
Em Platão, a crença é a pistis, que faz parte da doxa ou opinião. Ao nível da episteme (raciocínio científico) ou da noese (apreensão intuitiva do arquétipo) não há crença, há certeza. A certeza é inimiga da crença. Crer em Deus é não ter a certeza absoluta da Sua existência ou dos Seus predicados. Conhecer é estar com as coisas sem crença, é ter intimidade intelectual ou sensorial com essas coisas, materiais ou espirituais, sem duvidar, sem o biombo da crença.
Quando se diz que o conhecimento é crença verdadeira comete-se um erro de paralaxe filosófica.
UMA NOÇÃO CONFUSA DE ESSENCIALISMO
Sobre essencialismo, lê-se no manual do 11º ano:
«Essencialismo contemporâneo
«Poderia Kant não ter sido um filósofo? É natural pensar que sim, pois ele poderia ter-se dedicado à pintura, por exemplo, ou a qualquer outra actividade. Mas poderia Kant ter sido mais do que ele mesmo? A resposta, também natural, é que não, pois isso viola as leis da lógica.»
«O que dizer, contudo, da hipótese de Kant não ter sido humano? Se defendermos que as únicas verdades necessárias são as verdades que podemos conhecer a priori, estamos obrigados a dizer que não é uma verdade necessária que Kant era humano,ou seja, estamos obrigados a dizer que ele poderia não ter sido humano.Porquê? Porque não podemos saber a priori que ele era realmente humano:só a posteriori podemos saber disso.»
«Os filósofos essencialistas contemporâneos consideram que do facto de não podermos saber a priori que Kant não poderia não ter sido humano não se conclui correctamente que ele poderia não tê-lo sido. De modo que precisamos de outras razões a favor da ideia de que poderia tê-lo sido. Os essencialistas defendem que não há bons argumentos a favor dessa ideia e que é mais natural pensar que ele não poderia não ter sido humano. E esse será outro exemplo de uma verdade necessária a posteriori.»(Aires Almeida, Célia Teixeira e Desidério Murcho, «50 lições de filosofia, 11º ano » Didáctica Editora, pág. 244). .
Eis um texto extraordinariamente confuso: não se define essência, nem essencialismo. Não se sabe o que os autores entendem por filósofos essencialistas. O exemplo é razoavelmente obscuro. Aires Almeida e Desidério Murcho revelam-se aqui obscurantistas. É uma insensatez dizer que Kant poderia ser não humano se, à partida, ligamos o nome de Kant a famílias, a um cidadão prussiano do século XVIII. É uma contradição nos termos: Kant, nome humano, suscitaria a suspeita de que a pessoa que o usa é não humana. É confundir o terminológico, a ordem da linguagem, com o ontológico, a ordem do ser - um velho truque dessa sofística contemporânea que dá pelo nome de filosofia analítica...
É similar a dizer: «O quartzo poderá ser um não mineral» ou «a galinha poderá não ser um animal». São «habilidades» retóricas, argumentação vazia, dissociando artificialmente o significante do significado, do referente Só a Kaballah estabelece a ligação necessária entre o nome e a coisa, ao contrário da linguística de Saussure que postula o «laço arbitrário», casual, entre significante e significado.
Os autores do manual exaltam a «descoberta» de Saul Kripke segundo a qual há verdades necessárias a posteriori e alegam que «Hume concluía que as verdades científicas eram contingentes só porque eram conhecidas a posteriori.» ( 50 lições de Filosofia, 11º ano Filosofia, pag 243). Ora isto não é verdade em toda a sua extensão: Hume considerava a matemática como um conjunto de verdades científicas, não contingentes, necessárias, a posteriori. O número ou proporção de quantidade,´que fundamenta a matemática, é uma das sete relações filosóficas - poderíamos dizer: categorias - inscritas na mente do sujeito, segundo Hume. Ora, não há contingência nas operações matemáticas, em geral.
Hume escreveu, reafirmando o carácter necessário das verdades da álgebra e da aritmética:
«Restam portanto a álgebra e a aritmética como as únicas ciências das quais podemos levar uma cadeia de raciocínios até um certo grau de complicação, conservando contudo uma perfeita exactidão e certeza. Estamos de posse de um critério preciso que nos permite ajuizar da igualdade e proporção dos números; e, conforme estes correspondem ou não ao critério, determinamos-lhes as relações sem qualquer possibilidade de erro» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág. 105; o destaque a negrito é posto por mim).
Não foi, pois, Saul Kripke o primeiro a posttular verdades científicas universais e necessárias a posteriori. Hume já o fizera. E muitos outros, como por exemplo, os materialistas dialéticos vinculados ao empirismo. Acontece que Desidério Murcho e Aires Almeida não abordam nos seus manuais as filosofias de esquerda como o marxismo, o anarquismo, o socialismo revolucionário - só vêem o lado pragmático norte-americano e britânico da filosofia institucional, filosofias «apolíticas» de direita ou centro, e nem tudo vêem- e não conhecem as posições ontognosiológicas de outras correntes. Por isso não admira que errem ao escrever que Saul Kripke foi o primeiro a teorizar as verdades universais a posteriori...
OS SUBJECTIVISTAS NEGAM QUE A BELEZA ESTEJA NOS PRÓPRIOS OBJECTOS?
Sobre subjectivismo e objectivismo, diz o manual do 11º ano:
«Chama-se subjectivistas àqueles que respondem que apenas conta o que cada sujeiro sente: a justificação dos juízos estéticos tem um carácter subjectivo. Quando perguntam a um subjectivista: «Por que razão dizes que aquele objecto é bonito?» ele responde «Digo que aquele objecto é bonito porque eu sinto prazer a olhar para ele».
«Por sua vez, chamam-se objectivistas aos que respondem que tudo o que conta são as características dos próprios objectos: afirmamos que um objecto é bonito ou feio porque tem certas propriedades que o tornam realmente bonito ou que o tornam realmente feio.» (50 lições de Filosofia, 11º ano Filosofia, pag 125).
Os subjectivistas negam que a beleza esteja nos objectos? Não, necessariamente. Apenas afirmam que cada mente possui uma forma única, singular de captar a beleza objectiva dos objectos. Portanto, para os subjectivistas a beleza pode estar simultaneanente no objecto exterior e na mente humana que o apreende. Não é isto o que os autores deste manual afirmam.
UMA TAUTOLOGIA NA DEFINIÇÃO DE OBJETIVISMO
Este manual do 10º ano define objetivismo do seguinte modo: `
« A tese central da teoria objetivista é que alguns juízos de valor são objetivos. Isto significa que quando uma pessoa ou uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor pode estar enganada, tal como acontece com os juízos de facto. » (...)
«Por exemplo, nos finais do século XIX, na Europa, discutia-se se as mulheres tinham o direito de votar. Mas hoje acreditamos que o juízo de valor de que as mulheres devem ter o direito de votar é objectivamente verdadeiro»
(Aires Almeida, Célia Teixeira e Desidério Murcho, «50 lições de filosofia, 10º ano » Manual do Professor, Didáctica Editora, pág. 57).
Objetivismo é alguns juízos de valor serem objetivos? Isto é uma tautologia. O que significa serem objetivos? Desidério, Aires e Célia não sabem explicar. Objectivo significa duas coisas: que está fora das mentes humanas e é visível ou patente a todas ou quase todas (exemplo: as mulheres votam em eleições gerais em quase todos os países no século XXI, o rio Tejo separa Lisboa de Almada e do Barreiro); que está dentro das mentes humanas mas é compreendido de igual modo por todas ou quase todas (exemplo: É objectivo que 7 adicionado de 5 tem como resultado 12).
A AUSÊNCIA DO CONCEITO DE INTERSUBJECTIVISMO
Para os autores, as correntes de valores têm dois níveis de verdade: subjectivismo e objectivismo. Como não introduzem o conceito de intersubjectivismo deslizam para o pensamento imperfeito. Diz o manual:
«A segunda objeção põe em causa a ideia de que se um juízo não for subjectivo, não há discordância. Pelo contrário, há muitos casos en que estamos perante juízos que não são subjectivos e no entanto há discordância. Por exemplo, há quem pense que os seres humanos foram directamente criados por Deus como é descrito na Bíblia e quem pense que os seres humanos surgiram de outras espécies por meio de processos naturais. Contudo, não se trata de juízos subjectivos. Acontece apenas que as pessoas não conseguem chegar a um consenso».
(Aires Almeida, Célia Teixeira e Desidério Murcho, «50 lições de filosofia, 10º ano » Manual do Professor, Didáctica Editora, pág. 52).
Se não são juízos subjectivos, o que são? Juízos intersubjectivos, isto é, comuns a uma grande quantidade de pessoas. Mas o manual carece deste conceito. A intersubjectividade é um degrau intermédio entre a subjectividade, a consciência isolada, e a objectividade, isto é, a realidade em si ou a opinião unânime de toda a humanidade.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
João Miguel Branquinho, catedrático de filosofia da Universidade de Lisboa, doutorado em Oxford, mergulha em confusões ao reproduzir as confusas teses de Saul Kripke sobre materialismo . No seu ensaio «Contra o materialismo» escrito no âmbito do projecto de investigação Atitudes Proposicionais e Dinâmica Cognitiva, financiado pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa de que uma versão abreviada foi apresentada no 1º Encontro Nacional de Filosofia Analítica (ENFA) realizado em Coimbra em 17-18 de Maio de 2002, escreve Branquinho:
«As seguintes teses acerca de três formas de identidade psicofísica dão-nos três formas relativamente independentes de materialismo acerca do mental: a) identidade de substâncias. A substância que tem atributos mentais, a mente, aquilo que satisfaz frases abertas como ‘x está a pensar no Ser’, é identificada com a substância que tem atributos físicos, o corpo, aquilo que satisfaz frases abertas como ‘x tem 1m 80 cm de altura’. b) identidade de propriedades (identidade tipo-tipo). Cada propriedade mental ou tipo de estado mental, a propriedade expressa por frases abertas como ‘x é uma dor’, é idêntica a uma certa propriedade física ou tipo de estado do cérebro, a propriedade expressa por frases abertas como ‘x é um disparar de tais e tais neurónios’. Tipos mentais são objectos repetíveis, exemplificáveis. c) identidade de particulares (identidade especimen- especimen). Cada estado ou evento mental particular,aquilo que satisfaz frases abertas como ‘x é uma dor’, é idêntico a um certo estado ou evento físico no cérebro, aquilo que satisfaz frases abertas como ‘x é um disparar de tais e tais neurónios’. Eventos mentais particulares são objectos irrepetíveis, não exemplificáveis.»
(http://www.joaomiguelbranquinho.com/uploads/9/5/3/8/9538249/materialismo.pdf, excerto extraído em 3 de Setembro de 2015)
Seria interessante começar por definir identidade, coisa que Branquinho não faz com clareza: há identidade-mesmidade (uma coisa é idêntica a si mesma, um género é idêntico a si mesmo; exemplo: a Torre de Belém é idêntica a si mesmo, o género humano é idêntico a si mesmo e não ao género elefante ou ao género planeta) há identidade inclusiva (exemplo: o espírito é uma modalidade da matéria, isto é, os pensamentos são formas muito subtis de matéria, incluem-se nesta, tal como a madeira, a carne, a pedra) e há identidade exclusiva, de contrários( exemplo: saúde e doença são idênticas, isto é, formam uma unidade que é o estado e o grau de vitalidade de um organismo).
Ora, as três definições de materialismo aqui expostas não são «relativamente independentes entre si», pecam por falta de hierarquização. É o clássico erro da filosofia analítica que multiplica horizontalmente as definições sem as conseguir seriar, hierarquizar, reduzir o múltiplo ao uno, o que implicaria verticalização de conceitos (espécie, género, universal supra-genérico). Há uma só definição de materialismo: é a doutrina segundo a qual a matéria - algo que ocupa espaço, é dotado de diversos graus de impenetrabilidade e é composta de átomos e partículas infinitamente pequenas- é a essência de tudo, sendo o próprio espírito humano uma forma subtil de matéria. Portanto, só há um materialismo, definido como identidade de substâncias reduzidas a matéria ( a matéria é todas as coisas inclusive o espírito) Dividir materialismo em três espécies, isto é, pôr no mesmo plano que o materialismo em geral o chamado materialismo tipo-tipo e o materialismo especimen-especimen é um erro teórico de Kripke e do seu seguidor João Branquinho. A primeira definição de materialismo no texto acima subsume as outras duas.
O conceito de especimen-especimen ou a particularização inimitável ou nominalismo não é intrínseco ao conceito de materialismo, pode ser igualmente aplicado ao conceito de idealismo: é uma categoria do género numerológico (um só, muitos, todos) ao passo que materialismo é uma categoria do género ontológico (matéria como princípio do ser, espírito como essência do ser, etc). Kripke e Branquinho não possuem suficiente capacidade de visualização filosófica que lhes permita ver que estão a interligar géneros diferentes e a perder de vista o essencial, o conceito de materialismo que nem sequer conseguem definir de forma absolutamente clara.
UMA DEFICIENTE ANALOGIA ENTRE A DOR E A ESTÁTUA DE GOLIAS
Demarcando-se ,em certa medida, de Kripke, prossegue João Branquinho:
«Proponho-me explorar a analogia existente entre o caso dos objectos materiais comuns e o caso dos particulares mentais, e defender a ideia de que o padrão de explicação deve ser o mesmo para ambos os casos.»
«Para recorrer a um exemplo clássico, considere-se a estátua de bronze que tenho à minha frente e que representa o gigante Golias. Chamemos a esse objecto material ESTÁTUA. Consideremos agora a matéria particular, o pedaço específico de bronze, da qual esse objecto é composto. Chamemos-lhe BRONZE. Para dramatizar a situação, imaginemos que ambos ESTÁTUA e BRONZE começam a existir na mesma ocasião e cessam de existir na mesma ocasião (e ignoremos complicações derivadas das alterações e daa deteriorização a que o material está sujeito ao longo da sua existência). Tudo indica que ESTÁTUA não é nada mais do que BRONZE, que são objectos numericamente idênticos. Afinal, ocupam a mesma porção do espaço no decorrer de toda a sua existência, e têm em comum todas as propriedades que lhes estamos inclinados a atribuir. Todavia, argumentos modais poderosos podem ser construídos demodo a obter a conclusão contra-intuitiva de que ESTÁTUA e BRONZE são objectos distintos.Considere-se, por exemplo, a propriedade modal que uma coisa x tem quando satisfaz a seguinte condição contrafactual: se o bronze se derretesse então x deixaria de existir. BRONZE não tem esta propriedade, mas ESTÁTUA tem-na; ou seja, uma situação possível na qual o bronze se derrete é uma situação possível onde BRONZE continua a existir, mas ESTÁTUA não. Logo, BRONZE e ESTÁTUA não são idênticos. Suponhamos que argumentos deste género, os quais são surpreendentemente semelhantes aos argumentos modais anti- materialistas de Kripke, estabelecem de facto uma não identidade. Ficamos com o problema da identidade do objecto material relativamente à matéria do qual é feito. Se o objecto material que tenho diante de mim não é a matéria que o constitui, se é algo distinto do pedaço de bronze que também está diante de mim, então o que é afinal?
A sugestão que gostaria de fazer vai no sentido de considerar qualquer explicação queseja satisfatória para casos destes como uma explicação satisfatória para os casos de não identidades psicofísicas de particulares. A analogia consistiria em dizer que, do ponto de vistada sua identidade, a experiência de dor a está para o estado neurofisiológico b que é o seu suporte material assim como a estátua de Golias está para o pedaço de bronze que a constitui. »
(http://www.joaomiguelbranquinho.com/uploads/9/5/3/8/9538249/materialismo.pdf, excerto extraído em 3 de Setembro de 2015; o destaque a negrito é posto por mim)
O problema da identidade entre bronze e estátua de bronze não tem o grau de complicação que Branquinho lhe atribui. Estátua e bloco cúbico ou paralelipipédico de onde foi extraída são, de facto, coisas distintas. São não idênticas pela forma, facto que Branquinho não explicita e são idênticas (identidade inclusiva, noção que expliquei acima) na matéria. A analogia entre a dor e a estátua, estabelecida no texto de João Branquinho, é errónea porque a dor não é uma forma mas a estátua é uma forma plasmada numa forma irregular da matéria bronze. A dor é um estado neurofisiológico, não se distingue deste, mas a estátua de bronze distingue-se do bronze, não é apenas bronze mas este adicionado da forma particular de um homem, Golias.
NÃO HÁ IDENTIDADE ENTRE A ESSÊNCIA-BASE DO OBJECTO E ESTE NUMA DADA SITUAÇÃO ?
Na linha da filosofia analítica que substitui, muitas vezes falaciosamente, o raciocínio discursivo e a intuição, por fórmulas e variáveis como x, y, x qua p, etc., que mascaram e tornam confuso e mecânico o fio do pensamento, João Branquinho sustenta a tese de a base de um objecto, por assim dizer, a sua essência imutável, não se identifica com o objecto em certa situação exibindo uma certa propriedade contingente (o qua objecto):
«Uma possibilidade que me parece atraente é a teoria dos qua objectos proposta há já algum tempo por Kite Fine num pequeno artigo intitulado Acts, Events and Things (Fine 1982). Um qua objecto é uma espécie de fusão lógica de um objecto com uma propriedade. Dado um objecto x e uma propriedade P que x tenha, podemos construir a partir desses dois objectos um terceiro objecto, um qua objecto, o qual consiste em tomar o objecto x como se a propriedade P lhe tivesse sido“colada”. O resultado é x qua P, um qua objecto. Por exemplo, dados Durão Barroso e a propriedade, que ele tem, de ser primeiro- ministro, temos o qua objecto Durão Barroso qua primeiro-ministro. Fine chama a x a base do qua objecto x qua P e à propriedade P a sua glosa.»(...)
«Parece que podemos identificar Véspero com o qua objecto Vénus qua visto ao entardecer e Fósforo com o qua objecto Vénus qua visto ao amanhecer. Como as propriedades envolvidas nas glosas são obviamente diferentes, segue-se pelo princípio da identidade que os qua objectos Vénus qua visto ao entardecer e Vénus qua visto ao amanhecer são distintos. Logo, Véspero e Fósforo são numericamente distintos, o que é claramente inaceitável. Todavia, a objecção não colhe. A razão é, naturalmente, a de que a premissa usada, a pretensão de que Véspero é identificável com o qua objecto Vénus qua visto ao entardecer e Fósforo com o qua objecto Vénus qua visto ao amanhecer, é falsa. De facto, pelo princípio da identidade, um qua objecto x qua P não pode ser identificado com o objecto x que é a sua base; assim, dado que Véspero é Vénus, o qua objecto Vénus qua visto ao entardecer não pode ser identificado com Véspero (mutatis mutandis para Fósforo).
(http://www.joaomiguelbranquinho.com/uploads/9/5/3/8/9538249/materialismo.pdf, excerto extraído em 3 de Setembro de 2015; o destaque em itálico é colocado por mim).
É certo que um objecto em dada circunstância (o qua objecto) - por exemplo, Mário Soares aos 30 anos de idade e Mário Soares aos 91 anos de idade - não é formalmente o mesmo que o objecto base, Mário Soares (nascido em 7 de Dezembro de 1924 e ainda hoje vivo), não são formalmente idênticos. Mas há uma identidade informal, inclusiva, entre a base e as diferentes manifestações em diferentes tempos e lugares. Em suma: o qua objecto não é idêntico, na sua forma acidental, à sua base mas é idêntico, na sua forma essencial, à sua base. Dialética, estranha ao pensar de Branquinho! Os qua objectos, isto é, os diferentes momentos da existência de um objecto, estão potencialmente ou actualmente contidos na essência base como ensinou Hegel, sem usar a expressão qua objectos. Quer-me parecer que dialética hegeliana escapa, a João Branquinho e a Saul Kripke.
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