Domingo, 4 de Dezembro de 2016
Teste de filosofia do 10º ano (2 deDezembro de 2016)

Eis um teste de filosofia de final de primeiro período do 10º ano de escolaridade em Portugal, salvaguardando a autonomia de conteúdos dados pelo professor, que ultrapassa o estereótipo dos manuais escolares, e que evita as perguntas de escolha múltipla que minimizam a capacidade filosófica.

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja

Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja

TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA A

 

2 de Dezembro de 2016. Professor: Francisco Queiroz

I

“Na cosmologia de Aristóteles, há teleologia nos movimentos que ocorrem nos dois mundos que formam o cosmos. Aristóteles dizia que Deus é o acto puro sem potência. O fatalismo não é o mesmo que o determinismo biofísico sem livre-arbítrio (vulgo determinismo radical).”

 

1)Explique, concretamente este texto.

 

2)Relacione, justificando:

A) Essencialismo transcendente em Platão e Essencialismo imanente em Aristóteles.

B) Proté Ousía, Hylé e Eidos, em Aristóteles, e lei da tríade.

C) Esfera dos valores espirituais, esfera dos valores vitais, na teoria de Max Scheler e lei do salto de qualidade.

D).O tó on, o tó tí e a teoria das quatro causas de um ente, segundo Aristóteles.

 

CORREÇÃO DO TESTE ESCRITO COTADO PARA 20 VALORES

 

 1) No cosmos de Aristóteles há dois mundos, o mundo sublunar, composto de quatro esferas concêntricas, a Terra (imóvel no centro) e as esferas de água,ar e fogo, no qual o movimento dos corpos não é circular e é teleológico, obedece a finalidades inteligentes, isto é, os corpos desejam voltar à origem do seu constituinte principal (exemplo: a pedra largada no ar cai porque o seu télos, finalidade, é voltar à «mãe», a Terra); o mundo celeste, composto de 54 esferas de cristal incorruptíveis com astros incrustados, 7 delas de planetas (Lua, Mercúrio, etc) e 47 de estrelas, que giram circularmente de modo teleológico, finalista,  já que estrelas e planetas, seres inteligentes, desejam alcançar, fora do cosmos, Deus, o pensamento puro, que se pensa a si mesmo e não se importa com o cosmos. Deus não é a causa formal (o modelo) do cosmos nem a causa eficiente (o construtor) do cosmos, mas apenas a causa final, o télos, do movimento dos astros inteligentes e das respectivas esferas. Ele nada faz mas suscita e atrai o movimento das estrelas.  (VALE TRÊS VALORES). Deus é o acto puro, sem potência, porque acto é a realidade presente, a efectividade, e sendo a potência a possibilidade de mudança, Deus não muda nunca, é igual a si mesmo, pensamento que se pensa a si mesmo. (VALE DOIS VALORES). Fatalismo  é a teoria segundo a qual tudo na vida está predestinado e os homens não dispõem de livre-arbítrio nem existe o acasoDeterminismo sem livre-arbítrio (vulgo: determinismo radical) é a teoria segundo a qual, na natureza, as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos e o homem não dispõe de liberdade racional de escolha (livre-arbítrio) mas existe o factor acaso na natureza. Exemplo: movido por uma força irracional, sem liberdade de escolha,  um homem atira-se do alto de um arranha-céus, sujeitando-se determinismo na lei da gravidade, que o faz cair para a Terra e morrer esmagado. No entanto, o acaso de uma rajada de vento,não predestinada, pode fazê-lo cair em cima de um toldo de um café e escapar quase ileso à morte. (VALE TRÊS VALORES).

 

2)A) Essencialismo é toda a filosofia que sustenta que a essência ou forma fundamental dos entes e dos fenómenos precede a existência destes. As essências são as formas eternas e imutáveis tanto em Platão como em Aristóteles. Em Platão, elas são arquétipos de Bem, Belo, Justo, Número Um, Número Dois, Triângulo, Homem, etc, existentes no mundo Inteligível acima do céu visível, por isso são transcendentes, estão além (trans) do universo físico. Em Aristóteles, as essências são formas eternas inerentes ou imanentes aos objectos físicos - exemplo: a essência sobreiro está em todos os sobreiros reais, físicos, porque não há mundo inteligível- daí ser um essencialismo imanente (VALE TRÊS VALORES). 

 

2-C) A teoria hilemórfica (hyle é matéria-prima universal; morfos é forma) de Aristóteles sustenta que cada coisa individual ou primeira substância (proté ousía) como, por exemplo, este cavalo cinzento, se forma da união entre a forma eterna de cavalo (eidos)que existe algures e a hylé ou matéria-prima universal, indiferenciada, que não é água nem fogo nem ar, nem terra mas que passa a existir ao juntar-se à forma. A lei da tríade estabelece que um processo dialéctico se divide em três fases: a tese ou afirmação, que neste caso pode ser o eidos ou essência; a antítese ou negação que, neste caso, será a hylé ou matéria-prima universal; a síntese ou negação da negação que colhe um pouco da tese e um pouco da antítese ultrapassando ambas que neste caso é a substância primeira, o composto de forma e matéria, a proté ousía. (VALE TRÊS VALORES) . 

 

 2-C) A esfera dos valores espirituais, na concepção de Scheler, engloba os valores estéticos (belo e feio), éticos ( bom e mau, justo e injusto), jurídicos (legal, ilegal; justo, injusto), filosóficos (verdade e erro) científicos (verdade e erro por referência, isto é, na experiência, no pragmatismo). Há valor de coisa - por exemplo, o quadro Mona Lisa de Leonardo da Vinci - valor de função - no exemplo olhar o quadro, apreciar o sorriso de Mona Lisa - e valor de estado - no exemplo: a felicidade resultante dessa contemplação visual. A esfera ou modalidade dos valores vitais e sentimentais é a esfera anímica que inclui os valores do nobre e do vulgar, ciúme e ausência deste, orgulho e humildade, coragem e cobardia, sentimento de vitória ou de juventude, sentimento de derrota ou de velhice, etc. A lei do salto qualitativo postula que a acumulação lenta e gradual em quantidade de um dado aspecto de um fenómeno leva a um salto brusco ou nítido de qualidade nesse fenómeno. A relação pode ser percebida de muitas maneiras, como por exemplo: acumulando percepções empíricas similares de atitudes nobres da esfera dos valores vitais(exemplo: salvar alguém com risco da própria vida ) chega-se a um salto qualitativo que é a formação do valor de ético de bem  no intelecto. (VALE TRÊS VALORES).

 

2-D) O tó tí é o quê-é ou seja a forma, essencial ou acidental, de algo, na filosofia de Aristóteles. Exemplo: o tó tí da espiga de trigo é a forma desta e distingue-se do tó tí da espiga de milho e do tó tí do rosto humano. Se Joana se distingue de Mariana e de Francisca isso deve-se aos acidentes, isto é, as particularidades singulares que as distinguem entre si e que são tó tís: o nariz arrebitado de uma e o nariz aquilino de outras, os olhos azuis de uma e os olhos verdes de outra, etc. O tó ón é o ente, o que é, o existente, qualidade que é comum às coisas ou seres com diferentes tó tís. As quatro causas de um ente segundo Aristóteles são: causa formal, a forma, que coincide con o to tí essencial ; causa material, ou matéria de que é feita que, de forma imperfeita, corresponde ao tó on ou existência ; causa eficiente, o agente que gerou esse ente; causa final, a finalidade desse ente, para que serve.

 

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Sexta-feira, 29 de Novembro de 2013
Teste de filosofia do 11º C, final de Novembro de 2013

 

Eis um teste de filosofia sem perguntas de resposta múltipla que exigem responder com cruzes e não desenvolvem a capacidade discursiva escrita do aluno.

Agrupamento de Escolas nº 1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia , Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA C
29 de Novembro de 2013. Professor: Francisco Queiroz

 

 

 

I

1) Considere o seguinte silogismo:

 

«Nenhuma cotovia é mamífero.
«Alguns macacos são maníferos».
«Nenhum macaco é cotovia».

 

A) Indique, concretamente, duas regras da construção formalmente válida do silogismo que foram infringidas no silogismo acima.

 

 B) Indique o modo e a figura do silogisno.

 

 

II  

David Hume escreveu: «É assim que inventamos a existência contínua das percepções dos nossos sentidos, para remover a interrupção; e chegamos à noção de alma,...» e Parménides escreveu: «O ser é e o não ser não é...Ser e pensar são um e o mesmo».

 

2) Explique ambos os pensamentos e compare-os no tema do «ser».

                                                                            

                                                                                                      

3) Relacione, justificando:

 

A) Sete relações filosóficas em David Hume e binómio Idealismo/ realismo crítico.

 

B) Os três tipos de conhecimento, segundo Bertrand Russel, empirismo e racionalismo.

 

C) Indução amplificante e lei do salto de qualidade.

 

D) Retórica e sofística.

 

 

 

       CORRECÇÃO DO TESTE, COTADO PARA 20 VALORES

 

1) A) Eis duas regras de validade infringidas no silogismo acima: a conclusão segue sempre a parte mais fraca, se uma premissa é particular a conclusão tem de ser particular (ora isso não sucede, porque a premissa «Alguns macacos...» é particular e a conclusão «Nenhuns...» é universal); nenhum termo pode ter na conclusão maior extensão do que nas premissas (ora o termo "macacos" é particular na premissa e universal na conclusão). (VALE DOIS VALORES).

 

1) B) O modo do silogismo é EIE (E= proposição universal negativa; I= proposição particular afirmativa). A figura do silogismo é a 2ª : PP (termo médio como predicado em ambas as premissas). (VALE UM VALOR)

 

2)  Hume diz que as percepções empíricas são como que fotos desligadas umas das outras, não são contínuas e é a imaginação que fornece a ideia de continuidade dos objectos, o filme das percepções. Assim não há a alma, nem o eu, nem a casa, nem a árvore, nem a montanha - são ideias da imaginação formadas a partir de percepções cuja origem se desconhece. Isto é idealismo: a matéria passa a ser um conjunto de percepções empíricas. Em Parménides dá-se o inverso: não há descontinuidades, a percepção empírica é ilusão, o pensar está a todo o instante centrado no ser uno, imóvel, invisível, esférico, eterno.  Ao empirismo de Hume (" as ideias nascem das impressões sensíveis") contrapõe-se o racionalismo de Parménides (" Só o pensar, o raciocínio e a intuição inteligível captam o ser"). São dois idealismos, numa certa interpretação; mas em Parménides pode tratar-se ainda, ao invés, de um realismo crítico, porque apesar de cores, sons, cheiros, formas mutáveis serem ilusões, a esfera do ser pode ter carácter material, pode ser formada por uma matéria imperceptível aos sentidos.   (VALE QUATRO VALORES).

 

3) A) As sete relações filosóficas são capacidades da nossa mente, modos de interpretar as coisas, não existem no mundo exterior: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. Por exemplo, água e fogo não são contrários entre si fora da mente humana, real e objectivamente,  mas são apenas contrários dentro desta que as coloca numa relação de contrariedade.  Assim, as sete relações filosóficas incluem-se no idealismo, que diz que o mundo material não passa de uma ideia. Ao contrário, o realismo supõe que semelhança, identidade, relações de espaço e tempo, quantidade, graus de qualidade, causa-efeito, etc, são modos de ser reais, exteriores às mentes humanas, porque o realismo afirma a realidade da matéria em si mesma. O realismo crítico diz que certas qualidades (cores, sons, cheiros, sabores) são subjectivas, secundárias, e nessa medida coincide em parte com o idealismo. (VALE QUATRO VALORES).

 

3) B) Os três tipos de conhecimento segundo Bertrand Russell são: o saber-fazer, que é um conhecimento empírico-técnico, como andar de bicicleta, nadar, jogar futebol; o conhecimento por contacto, isto é, empírico directo, como ver uma planície alentejana, ouvir uma música dos Bubedanas, saborear gaspacho; o conhecimento proposicional, isto é, racional ou empírico-racional, como por exemplo, «A soma dos três ângulos internos de um triângulo é 180º», «Portugal entrou na Comunidade Económica Europeia em 1 de Janeiro de 1986». Os dois  primeiros tipos de conhecimento são empirismo, doutrina segundo a qual as percepções empíricas são a fonte das nossas ideias e estas copiam aquelas. O conhecimento proposicional inclui, geralmente, racionalismo, doutrina segundo a qual o raciocínio é a fonte principal dos nossos conhecimentos, marginalizando ou mesmo contrariando as percepções empíricas. (VALE TRÊS VALORES)

 

3) C) A indução amplificante é aquela que a partir de alguns exemplos empíricos directos generaliza segundo uma lei necessária ou aparentemente necessária. Exemplo: «Como médico pediatra, receitei a 50 crianças com gripe e tosse que tomassem três copos de sumo de laranja diários com uma colher de mel e em todos os casos a gripe e a tosse atenuaram-se ou desapareceram, assim induzo que três copos de sumo de laranja e colheres de mel agem em sentido curativo em todas as crianças do mundo». A lei do salto qualitativo está presente nesta indução: acumulam-se, gradualmente, exemplos de cura (a criança A, a criança B, a criamça C) até que o salto de qualidade, brusco, se dá de X casos particulares para uma lei geral. (VALE TRÊS VALORES).

 

3) D) A retórica é a arte de bem discursar oralmente - ou por escrito, de forma derivada - a um auditório, no sentido de impressionar e persuadir. Bem discursar não significa estar isento de sofismas (erros voluntários de raciocínio) e paralogismos (erros involuntários de raciocínio). A sofística é a filosofia e a retórica dos sofistas, pensadores gregos anti essencialistas que ensinavam retórica, direito, política, etc, com remuneração. Assentava no cepticismo, que duvida de tudo o que fôr além das percepções empíricas, no relativismo que diz que a verdade varia com os povos, as classes e grupos sociais, no subjectivismo que postula que a verdade varia de pessoa a pessoa, no pragmatismo, que prefere os resultados práticos, a utilidade da situação real aos ideais "inúteis" e metafísicos. (VALE TRÊS VALORES).

 

 

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Segunda-feira, 10 de Janeiro de 2011
Os pontos de inflexão ou culminantes na vida, modo de ser

Toda a vida humana é essencialmente sublinhada e polarizada na existência de pontos de inflexão, verdadeiros picos de montanha, que são ao mesmo tempo pontos de culminação e salto qualitativo. Assim, por exemplo, gasta-se entre 15 a 18 anos de vida a conseguir um diploma universitário, que dê qualificação para o desempenho de uma profissão. O exame final ou a festa de fim de curso são o ponto culminante, o pico da alta montanha cognitivo-activa que constitui o percurso escolar desde os seis anos de idade até à universidade. O casamento é outro ponto de inflexão na vida. Quantos meses ou anos se gastam a namorar ou a acumular dinheiro para comprar o vestido de noiva ou o fato do noivo e pagar a festa da cerimónia - e tudo se dissipa em breves horas.

 

Com o acto sexual passa-se o mesmo: gastam-se minutos, dezenas de minutos nas carícias preliminares para atingir uns segundos de orgasmo, o ponto culminante, o salto qualitativo entre a excitação e a satisfação repousante. As revoluções libertadoras - por exemplo o dia 25 de Abril de 1974, em  que a ditadura de Marcelo Caetano e Tomás foi derrubada, ou o período 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975 em Portugal - são precedidas por dezenas de anos de lutas e sofrimentos prolongados. A eleição legislativa ou presidencial é um dia culminante no final de campanhas eleitorais de 15 dias e pré-eleitorais de 4 ou 5 anos. O lançamento de um livro ou a inauguração de uma nova fábrica ou escola são momentos culminantes, saltos qualitativos, no final de longos processos de trabalho quotidiano.

 

Os pontos de inflexão e culminação são os momentos de deboche, de celebração dionisíaca e ao mesmo tempo de perfeição e acabamento de obra.

  

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Sábado, 28 de Novembro de 2009
A concepção do «Instante» no diálogo «Parménides ou das Ideias», de Platão

No «Parménides ou das Ideias», diálogo platónico semeado de escolhos e reentrâncias sofísticas que fazem naufragar o barco da razão filosófica, Platão avança a teorização do instante como o lugar ou momento intemporal da mudança das coisas. O instantâneo ou instante (em grego: exaíphnés) é uma mudança que ocorre fora do tempo porque é um presente fugaz e o tempo compõe-se de passado, presente e futuro. Aristóteles escreveria na Física:

 

«"Instantaneamente" (em grego: exaíphnés) significa um sair fora de si em um tempo imperceptível e toda a mudança é por natureza um sair fora de si»

 

«Todas as coisas se geram e destroem no tempo. (…) Mas o tempo não é a causa disto, mas dá-se o caso de que a mudança se produz no tempo.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 224 a).

 

 

 

Vejamos um excerto do diálogo construído por Platão, no qual não se afirma que «o instante não está no espaço» mas sim que não pertence nem ao tempo, nem ao repouso nem ao movimento:

 

 

 

«PARMÉNIDES

 

Não estamos numa coisa estranha quando mudamos ?

 

 

 

ARISTÓTELES

 

A que coisa te referes ?

 

 

 

PARMÉNIDES

 

Refiro-me ao instante, pois realmente o instante representa o ponto em que mudamos, passando de uma maneira de ser a outra. Com efeito: enquanto o repouso continua sendo repouso, não se produz mudança; enquanto o movimento continua sendo movimento, não se produz mutação. Mas essa estranha coisa a que chamamos instante está entre o repouso e o movimento, sem existir no tempo, e nele acaba e começa a mudança, quer do movimento ao repouso, quer do repouso ao movimento.

 

 

 

ARISTÓTELES

 

É possível que assim seja.

 

 

 

PARMÉNIDES

 

Se assim é, se o uno está em repouso e em movimento, passa de um estado a outro, pois essa é a única maneira de estar em ambos os casos. Se muda, muda no instante; e, quando muda, não é no tempo, nem no movimento, nem no repouso.

 

 

 

ARISTÓTELES

 

Com efeito.

 

 

 

PARMÉNIDES

 

Dar-se-á o mesmo com as outras mudanças? Quando o uno passa do ser para o não ser, ou do não ser para o ser, diremos que se encontra num estado intermédio entre certas formas de movimento e de repouso, que não é nem ser nem não-ser, que não nasce nem morre?

 

 

 

ARISTÓTELES

 

Provavelmente.

 

 

 

PARMÉNIDES

 

Pela mesma razão, quando passa da unidade à pluralidade e ao invés, o uno não é uno nem múltiplo; não se divide nem se reúne. Analogamente, quando passa do semelhante ao dissemelhante, e do dissemelhante ao semelhante, não é semelhante nem dissemelhante: não se assemelha nem desassemelha. E também quando passa do pequeno ao grande e ao igual, e inversamente, não é grande nem pequeno, nem igual, nem aumenta, nem diminui, nem se iguala.

 

 

 

ARISTÓTELES

 

Assim parece.»

 

 

 

(Platão, Parménides ou das Ideias, Editorial Inquérito, Págs. 111-112; a letra negrita é posta por nós).

 

 

 

A concepção de Platão sobre o instante, neste trecho, necessita de clarificação: “Parménides” qualifica o instante como um intermédio entre repouso e movimento, ser e não ser, intermédio que não estaria no tempo. Mas então o tempo não é feito de instantes? Neste diálogo, Platão reduz o instante ao salto qualitativo entre dois estados do ser – repouso e movimento - e retira-lhe a qualidade de vértebra da coluna vertebral do tempo. Há, pois, um instante atemporal, uma duração fora do tempo, que corresponde ao salto de qualidade. Será o instante a eternidade? Ou será o pólo exactamente oposto – o infinitamente pequeno em duração– à incomensurável eternidade – a duração infinita?

 

  

 

Ao sustentar que «essa estranha coisa a que chamamos instante está entre o repouso e o movimento, sem existir no tempo, e nele acaba e começa a mudança, quer do movimento ao repouso, quer do repouso ao movimento» Platão reduz a mudança a uma só modalidade: a mudança brusca, o salto de qualidade. E a mudança quantitativa, o fluxo contínuo como as águas de um rio onde só a quantidade mas não a qualidade muda a cada instante? O movimento é uma mudança contínua de posição ou seja, matematicamente, uma mudança  de quantidade de lugar - admitindo que cada lugar em que o corpo se encontra se pode designar por uma quantidade relativamente a um ponto de referência - se não mesmo de qualidade.

 

 

 

A par deste rasgo filosófico original sobre a natureza do instante, como hiato ontológico, a personagem “Parménides” continua a discorrer de forma sofística ao dizer: «Pela mesma razão, quando passa da unidade à pluralidade e ao invés, o uno não é uno nem múltiplo; não se divide nem se reúne. O uno não passa da unidade à multiplicidade».

 

Ora, ao invés do que Platão escreve na primeira parte desta frase acima, o uno é sempre o mesmo, como qualidade . O universo uno, a célula una ou o cubo uno, sim, podem passar da unidade à multiplicidade: o universo pode dividir-se em vários, a célula una pode dividir-se em duas, o cubo uno pode ser cortado em várias fatias. As coisas unas, podem ser invadida pela multiplicidade sem deixar de ser unas no contorno exterior ou podem fragmentar-se, originando várias. O que passa da unidade à multiplicidade não é o uno mas a coisa una onde se dá a qualidade “uno”. Exemplo: o universo exclusivamente feito de água (caos) na cosmogonia de Tales de Mileto é uno e dá lugar a um universo múltiplo composto de astros, plantas, minerais, animais (cosmos) e este universo hierarquizado voltará a ser caos. Os contrários são irredutíveis entre si, como muito bem salientara Platão no “Fédon”: uno e múltiplo nunca se convertem um no outro, as coisas em que ocorrem é que passam do uno ao múltiplo e viceversa.

 

  

 

Marcante é a tese de Platão de que no instante (da mudança qualitativa), a coisa deixa de possuir forma, deixa o campo do ser e do não ser, o campo do repouso e do movimento, violando, na aparência, o princípio do terceiro excluído. É talvez a concepção de que o instante - de ruptura, dizemos - é um momento de caos entre dois estados «cósmicos» da coisa.

 

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