Na «Estética», Hegel deixa claro que o tempo não é uniforme mas, tal como o som, é medido de forma uniforme por um compasso. O que é uniforme é o tempo oficial cronometrado pelos relógios, não a essência do tempo, que é multiforme, irregular.
«Mas a música não pode deixar o tempo nesta indeterminação e indiferenciação; deve, pelo contrário, dar-lhe uma determinação precisa, submetê-lo a um compasso e ordenar a sua sequência segundo as regras deste compasso. ( )
«Podemos deduzir a necessidade de extensões de tempo determinadas pelo facto de o tempo se encontrar nas mais estreitas relações com o simples eu que percebe e deve perceber nos sons um eco da sua interioridade, repousando o tempo como exterioridade, sobre o mesmo princípio que o que anima o eu como base abstracta de toda a interioridade e espiritualidade. Se, portanto, é o eu simples que, como interioridade, se deve objectivar na música, o elemento geral desta objectividade deve ser tratado em conformidade com o princípio desta interioridade. Mas o eu não é a persistência indeterminada e a duração sem base: só consegue ser o que é graças à concentração e ao retorno a si. Depois de se ter extinguido para se recolher em si mesmo, recupera a sua liberdade e é então somente que se torna sentimento de si, etc. ( )
«Mas então intervém um outro regulamento, o do compasso. ( )»
«Mas a satisfação que, graças ao compasso, o eu sente em se encontrar a si mesmo é tanto mais completa quanto a unidade e a uniformidade não são as do tempo nem dos sons como tais, mas pertencem ao eu que as introduz no tempo em vista da sua própria satisfação. Porque, efectivamente, esta abstracta identidade não existe na natureza. Nos seus movimentos, os próprios corpos celestes não observam um compasso uniforme, mas aceleram ou retardam o seu curso, de modo que não percorrem a mesma distância no mesmo intervalo de tempo. O mesmo acontece com a queda dos corpos, os movimentos dos projécteis, e até o animal, no seu andar, correr, saltar, pular, etc, ainda menos calcula o regresso exacto da mesma medida em tempo determinado. Nos casos deste género, o compasso é ainda um produto do espírito, muito mais do que as relações de grandezas de que a arquitectura se serve e nas quais encontraríamos antes analogias da natureza. »(Hegel, Estética, Pintura e Música, Guimarães Editores, pags 220-225; o bold é nosso).
De salientar que é o eu quem impõe o compasso ao tempo e à música para se reconhecer no seu percurso triádico: estar-em-si, sair-de-si e regressar-a-si consciente.
«Em termos mais precisos, podemos dizer que o próprio eu real faz parte do tempo com o qual se confunde, se abstrairmos do conteúdo concreto da consciência; e isto porque na realidade não é mais do que tal movimento vazio que consiste em apresentar-se como um «Outro» e em suprimir essa mudança, conservando-se unicamente a si próprio, em suma, como o eu. O eu existe no tempo e o tempo é o modo de ser do sujeito. Ora, dado que é o tempo, e não a espacialidade, o elemento essencial ao qual o som, do ponto de vista do seu valor musical, deve a sua existência, e que o tempo do som é também o do sujeito, o som, em virtude deste princípio, penetra no eu, apreende-o na sua existência simples e põe-no em movimento pela sucessão rítmica dos instantes do tempo, enquanto que as outras figurações dos sons, como expressão dos sentimentos, completam o efeito produzido pela simples sucessão rítmica no tempo, levando a emoção ao seu mais alto grau e destruindo as últimas resistências que o indivíduo podia ainda opor em se deixar seduzir.» (Hegel, Estética -Pintura e Música, Guimarães Editores, 1962, pag. 211; o bold é nosso).
O eu executa um movimento que sai de si para voltar a si, . É a sua existência dinâmica, no tempo. Podemos dar razão a Heidegger que acusa Hegel «de que se move com a sua exegese do tempo inteiramente na direcção da compreensão vulgar do mesmo.» (Heideger, O Ser e o Tempo, edição espanhola, pag 464)? Não. Para Hegel, o tempo é simultaneamente subjectivo e objectivo. Cremos que não é a concepção vulgar do tempo...
Esta conexão, discernida por Hegel, entre os sons e o tempo, ambos participantes na interioridade do eu, é, deveras, enigmática. Há correntes esotéricas que ligam o ouvido a Saturno, suposto Senhor do Tempo. Será o ouvido o sentido que melhor nos dá a noção do tempo, e não a visão como parece ser crença generalizada?
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