Eis um teste de filosofia, o primeiro do segundo período lectivo do 11º B.
Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia , Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA B
14 de Fevereiro de 2014. Professor: Francisco Queiroz
“Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas…A razão é incondicionada, o entendimento é condicionado… O entendimento faz a síntese do diverso da intuição empírica… ” (Kant, Crítica da Razão Pura).
1-A) Explique, concretamente, cada uma destas frases de Kant.
1-B) Explique como, segundo a doutrina de Kant, se formam o fenómeno JANELA e o conceito empírico de JANELA.
2) Relacione, justificando:
2-A) Idealismo, realismo crítico, fenomenologia e doutrina de Parménides sobre o ser.
2-B) Método hipotético-dedutivo das ciências e teoria de Popper sobre as ciências.
2-C) Três tipos de substâncias na ontologia de Descartes e três tipos de ideias na gnosiologia de Descartes.
2-D) Anarquismo epistemológico de Paul Feyerabend, medicina universitária e mito.
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CORREÇÃO DO TESTE (COTADO PARA UM TOTAL DE 20 VALORES)
1-A) Ao dizer «pensamentos sem conteúdo são vazios», Kant quer significar que o conteúdo, a matéria-prima do pensamento do entendimento, vem das intuições empíricas da sensibilidade, faculdade onde se formam os fenómenos ou objectos aparentes. Sem os dados da sensibilidade, o entendimento fica vazio. Só pela intuição empírica de «erva verde», o pensamento do entendimento consegue formar o conceito empírico de erva ou o juízo empírico «A erva é verde», por exemplo. Ao dizer «intuições sem conceitos são cegas» Kant queria dizer que a sensibilidade, lugar das intuições e fenómenos, é incapaz de interpretar o mundo físico que ela aberga, vê este mas não o pensa. (VALE DOIS VALORES) A razão é incondicionada porque, como faculdade das ideias e raciocínios, não está submetida à observação da natureza e às suas leis (sensibilidade+ entendimento), pensa livremente os númenos e pode até abdicar das categorias do entendimento como causa-efeito, etc. O entendimento, faculdade que pensa os fenómenos (exemplo: casa, rio, pássaro, céu) é condicionado porque está subordinado aos fenómenos da sensibilidade que ele pensa e está proibido de produzir juízos erróneos como por exemplo «As sementes de roseira geram pinheiros» porque isto viola as categorias de realidade e de necessidade. (VALE DOIS VALORES)
O entendimento, função que pensa os fenómenos, reduz à unidade, a um resumo, o diverso, as múltiplas intuições empíricas. Exemplo: depois de a sensibilidade ver centenas de rosas que ela mesma cria em si mesma, o entendimento recebe as imagens da sensibilidade e, munido de categorias ou conceitos puros como «unidade», «pluralidade», «totalidade», constrói uma única rosa intelectual, um conceito empírico de rosa, abstraindo de pormenores como a cor, o perfume, etc. (VALE UM VALOR)
1-B) O númeno afecta «do exterior» a sensibilidade e cria, nesta, um caos de matéria (madeira, terra, ferro, etc). Este caos é moldado pelo espaço que nele imprime figuras geométricas e pelo tempo que lhe confere duração, sucessão, simultaneidade. Assim nasce o fenómeno janela, na sensibilidade «externa», isto é, no espaço. O entendimento intervém na medida em que confere à janela o carácter de substância, de divisibilidade (em partes: caixilhos de madeira ou metal, vidros, fecho, etc). São enviadas ao entendimento imagens de diferentes fenómenos janelas - janelas rectangulares, redondas, etc - e as categorias ou conceitos puros do entendimento como pluralidade, unidade e realidade misturam e tratam essas imagens empíricas transformando-as num só conceito empírico, o de janela, abstraindo dos pormenores das janelas particulares. (VALE TRÊS VALORES)
2) A) A fenomenologia é um cepticismo moderado: cingindo-se aos fenómenos - o que é visível, o que se manifesta- ela não se pronuncia a favor do idealismo ontológico nem do realismo ontológico. O idealismo solipsista afirma que o mundo de matéria é irreal e interior a uma única mente, a minha. O realismo crítico sustenta que o mundo de matéria é real, exterior às mentes humanas, mas estas captam-no de forma distorcida (exemplo: as cores violeta, amarela e castanha não existem no mundo exterior, são fabricadas na minha mente a partir de movimentos vibratórios de partículas no exterior).
Em Parménides a percepção empírica é ilusão («Nascimento e morte, alteração das cores maravilhosas são ilusões» ), o pensar está a todo o instante centrado no ser uno, imóvel, homogéneo, imprincipial, invisível, esférico, eterno. É portanto, uma teoria racionalista, que não dá crédito às percepções empíricas mas sim ao raciocínio ("Só o pensar, o raciocínio e a intuição inteligível captam o ser"). Esse racionalismo pode ser um realismo crítico - a esfera do ser pode ter carácter material, pode ser formada por uma matéria imperceptível aos sentidos - ou um idealismo crítico como em Kant. (VALE TRÊS VALORES)
2) B) O método hipotético-dedutivo decompõe-se em quatro etapas: observação, hipótese (indução amplificante), dedução da hipótese e experimentação que confirma ou desmente a hipótese. Karl Popper opõe-se à indução amplificante, pois sustenta que a observação de casos particulares, por muito numerosos que sejam, não autoriza a formular leis gerais universais. Para Popper, as ciências empíricas são conjuntos de conjecturas, suposições, que podem ser temporariamente aceites enquanto não forem refutadas pelo debate de ideias e pelos testes experimentais que não verificam as leis mas apenas corroboram, isto é, confirmam exemplos. O princípio da falsificabilidade estabelece que só pode merecer o título de "ciência" provisória a doutrina que se exponha a testes (testabilidade) e propicie a sua auto-destruição ou rectificação. O conhecimento é uma perpétua aproximação à verdade, que nunca se atinge por completo. (VALE TRÊS VALORES)
2) C) Descartes admitia três tipos de ideias: adventícias, factícias e inatas. E três substâncias ontológicas: a res divina (Deus), a res cogitans (o pensamento humano) e a res extensa (o espaço com as figuras geométricas, os corpos na sua vertente de comprimentos, larguras e altura). Pode-se fazer corresponder a res divina Deus às ideias inatas porque estas são absolutamente seguras: as ideias de corpo, alma, Deus, figuras geométricas, números.
Por ideias adventícias, Descartes entendia as sensações e percepções empíricas. Exemplo: ver uma jarra de flores, saborear gaspacho, ouvir música. Ora, as percepções empíricas serão parcialmente ilusórias segundo Descartes: as cores (exemplo:o vermelho da rosa), os cheiros (exemplo: o perfume da rosa), os sabores, a dureza e a moleza, o calor e o frio, são qualidades secundárias, isto é não existem na realidade objectiva, no mundo material exterior ao corpo humano, surgem apenas na mente como ilusão, resultando do embate nos orgãos sensoriais de «poeiras» exteriores emanadas dos objectos. No entanto, as ideias adventícias, na medida em que reflectem as formas, o tamanho e o movimento dos objectos exteriores, isto é, as qualidades primárias, não transmitem ilusão mas sim verdade. Pode-se fazer corresponder as ideias adventícias à rex extensa.
Por ideias factícias, entende-se as ficções da imaginação (exemplo: uma sereia, um elefante com patas de leão, etc). Podemos fazê-las corresponder à res cogitans. (VALE TRÊS VALORES)
2) D) Anarquismo epistemológico de Paul Feyerabend é a doutrina segundo a qual não deve haver ciências contemporâneas - a biologia, a medicina, a física, a história, a filosofia, ensinadas nas universidades - em posição superior às ciências holísticas herdadas da antiguidade - astrologia, acupunctura, medicina natural, medicina hopi, alta magia, etc. Anarquismo significa autogestão, assembleias de base a decidir, ausência de chefes e de Estado. Epistemologia é reflexão sobre as ciências. A medicina universitária promove os diagnósticos com raios X, biópsias, o emprego massivo de vacinas, etc, que Feyerabend considera estupidez, tal como considera estúpida a teoria das causas locais da doença (Exemplo: «A doença de fígado nasceu no fígado devido a um vírus») porque a causa da doença é estrutural (holismo), geral, extensiva a todo o organismo. Feyerabend considerava os homens sapiens do mito como os criadores da cultura - as religiões, a magia, a ecologia, são frutos da mentalidade mítica, holística, ainda hoje presente em tribos índias afastadas da civilização tecnológica - e, portanto, mais inteligentes que os cientistas actuais que intoxicam a humanidade com drogas farmacêuticas e saturam o ar com radiações electromagnéticas (telemóveis, hi fi, etc) que causam cancros, perturbações nervosas e muitas outras doenças. (VALE TRÊS VALORES).
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Baseado no carácter anfibólico do termo «idealismo» Josué Pinharanda Gomes, filósofo e historiador da filosofia portuguesa, nascido a 16 de Julho de 1939, na aldeia de Quadrazais (Sabugal), estabeleceu uma confusa distinção entre ideísmo e idealismo. Escreveu:
«IDEALISMO- Nó górdio da teoria do conhecimento e da gnosiologia, ainda está por definir se isso que se designa de idealismo não devia ser designado por ideísmo. A teoria racionalista, mais insistente a partir da filosofia cartesiana, sobre a origem e a natureza do conhecimento, que propõe no princípio «noções primitivas», ideias inatas ou formas apriorísticas independentes da realidade (e portanto distinção racional entre res cogitans e res extensa) é um ideísmo como em Platão. Substantivo, ideísmo implica o próprio da ideia. Adjectivo, idealismo indica algo que se desprende da ideia, que nesta se funda, mas não é somente ideia (...) A ideia está para o ideal em movimento de progresso, e o ideal está para a ideia em movimento de regresso, e a teoria habitualmente denominada idealismo (por influência da nomenclatura gernânica) deveria nominar-se ideísmo. Nem todo o idealismo é um ideísmo, havendo idealismo que equivale a realismo gnosiológico, e por virtude deste, elabora paradigmas e enteléquias para as quais o espírito tende mas que são ideais e não ideias propriamente ditas. O ideísmo é ideísta, o idealismo pode ser realista.» (Pinharanda Gomes, Dicionário de Filosofia Portuguesa, 2ª edição, páginas 171-172, Dom Quixote; o destaque a negrito é posto por mim).
Pinharanda Gomes não consegue definir com clareza o que é o ideísmo. Aponta a teoria de Platão como exemplo de ideísmo e opõe esta definição à de realismo gnosiológico. No entanto, Pinharanda Gomes parece ignorar que a teoria de Platão é um realismo gnosiológico, pois nela a matéria é anterior à humanidade e à consciência humana e, oviamente, exterior a esta. Sustento que a teoria racionalista não é obrigatoriamente um ideísmo. O marxismo-leninismo é uma teoria racionalista - ou empiro-racionalista - e não é ideísmo nenhum. É um realismo: não reduz a realidade exterior física, à ideia, pelo contrário.
Ao referir que a teoria racionalista defende a existência «de ideias inatas ou formas apriorísticas independentes da realidade (e portanto distinção racional entre res cogitans e res extensa)» Pinharanda Gomes comete três imprecisões: em primeiro lugar, as ideias inatas não são independentes da realidade, elas são reais, são, sim, independentes da realidade empírica, da experiência; em segundo lugar, as ideias inatas não são o único motor necesssário da distinção entre res cogitans (pensamento) e res extensa (extensão, isto é, o comprimento, a largura e a altura das coisas materiais), pois há pensadores empiristas, da tábua rasa, que dizem não haver ideias inatas mas distinguem res cogitans de res extensa; em terceiro lugar, há racionalismo que rejeita a teoria das ideias inatas (inatismo).
Como a generalidade dos catedráticos de filosofia, Pinharanda Gomes não distingue com clareza o ideísmo (idealismo) de Kant do de Hegel. Não basta distinguir ideísmo de idealismo (ético ou telelógico) e Pinharanda não conseguiu fazê-lo: ao dizer «o ideísmo é ideísmo» pronuncia uma tautologia... Há três planos em torno deste tema ideia e não dois, como supunha este autor.
Portugal é um país de pensadores de curto alcance, não dialéticos. E a universidade mundial, em geral, idem. Não sabem hierarquizar os conceitos em géneros e espécies e mostrar como se intersectam circularmente entre si, lateralmente ou de forma descendente. Nada disto a fenomenologia ou a filosofia analítica souberam aprofundar. Os catedráticos, os professores do secundário não têm uma clara noção disto.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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