Domingo, 20 de Novembro de 2016
Crítica a Hessen: realismo volitivo não pode nivelar-se com realismo crítico

 

Johannes Hessen sustentou que há diversas formas de realismo e coloca-as todas ao mesmo nível: realismo ingénuo, realismo natural, realismo crítico, realismo volitivo. Escreveu no seu célebre tratado de gnoseologia:

 

«Entendemos por realismo a posição epistemológica segundo a qual há coisas reais, independentes da consciência. Esta posição admite diversas modalidades. A primeira, tanto histórica como psicologicamente, é o realismo ingénuo. Este realismo não se acha ainda influenciado por nenhuma reflexão crítica acerca do conhecimento.» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, página 93; o bold é posto por nós).

 

E continua Hessen:

«Diferente do realismo ingénuo é o realismo natural. Este já não é ingénuo mas está influenciado por reflexões críticas sobre o conhecimento. Isto revela-se no facto de que já não identifica o conteúdo da percepção e o objecto, mas sim distingue um do outro.» (...)

 «A terceira forma de realismo é o realismo crítico porque assenta em considerações de crítica ao conhecimento. O realismo crítico não acredita que convenham às coisas todas as propriedades inseridas nos conteúdos da percepção mas é, pelo contrário, da opinião que todas as propriedades ou qualidades das coisas que apreendemos só por um sentido, como as cores, os sons, os odores, os sabores, etc, existem unicamente na nossa consciência.» (Hessen, ibid, pag 94; o bold é posto por nós)

 

Finalmente, apresenta a quarta espécie de realismo, o realismo volitivo, que afirma que há mundo material fora de nós e que o percebemos pela nossa vontade de viver:

 

«Se fossemos puros seres intelectuais, não teríamos consciência alguma da realidade. Devemos exclusivamente esta à nossa vontade. As coisas opõem resistência às nossas volições e desejos, e nestas resistências vivemos a realidade das coisas. Estas apresentam-se à nossa consciência como reais, justamente porque se fazem sentir como factores adversos na nossa vida volitiva. A esta forma de realismo é costume chamar-se realismo volitivo. »

«O realismo volitivo é um produto da filosofia moderna. Encontramo-lo pela primeira vez no século XIX. Pode-se considerar como seu primeiro representante o filósofo francês MAINE DE BIRAN. O que depois mais se esforçou por o fundamentar e desenvolver foi GUILHERME DILTHEY.» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, página 101; o bold é posto por nós).

 

 

Esta seriação horizontal de modalidades do realismo, todas no mesmo plano, como se fossem extrínsecas entre si,  contém um erro. O erro de Hessen consiste em misturar o género ontognoseológico, que engloba o realismo natural e o realismo crítico, com o género fonte ou motor do conhecimento ( quinesognoseológico, poderia dizer-se), que engloba volição versus representação (espelhamento). São dois planos, dois géneros diferentes: o do ser-conhecer e o do ser-originar. Na verdade, pode haver um realismo natural voltivo e um realismo natural representativo (que reflecte, como um espelho, a realidade exterior). A volição ou vontade de viver e assimilar o mundo pode estar subjacente às três formas de realismo, ingénuo, natural e crítico. Volitivo opõe-se a não voltivo, a representativo ou perceptivo.

 

Volição e inteleção só são contrárias como modalidades do género fontes do conhecimento. O nivelamento, isto é, a colocação das diversas entidades ao mesmo nível dentro do mesmo género implica exclusão mútua. A tese de Aristóteles de que cada coisa só tem um contrário é absolutamente errónea. Por exemplo, a espécie homem tem como contrárias as espécies elefante, leão, abelha, cavalo e uma infinidade de outras. Dentro de um mesmo género, as suas componentes (correntes, espécies) são extrínsecas entre si. Volição e inteleção são colaterais na relação com as correntes do realismo - a introdução de um terceiro elemento numa relação pode transformar os contrários em colaterais - isto é, podem coexistir na mesma modalidade de realismo. A classificação de Hessen é mais um exemplo da ignorância da dialética que sempre reinou entre os filósofos, em particular da lei dos géneros e das espécies que o autor deste blog formulou.

 

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Segunda-feira, 22 de Fevereiro de 2016
Fenómeno e intuição empírica: alguma confusão em Kant

Apesar do seu brilhantismo no raciocínio, Kant desceu ao magma de alguma confusão de ideias no que respeita à definição de fenómeno e de intuição. O filósofo alemão definiu assim fenómeno:

«O objecto indeterminado de uma intuição empírica chama-se fenómeno». (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 61).

 

É óbvio que Kant distingue entre fenómeno - por exemplo, cadeira - e intuição do fenómeno - ver ou tocar a cadeira, neste exemplo. Mas o que constitui o fenómeno? As intuições empíricas e, essencialmente, as intuições puras: a figura e a extensão.  E alguns conceitos a priori. O fenómeno, como por exemplo, bicicleta, cão ou nuvem nada é em si mesmo: é apenas uma figura sem cor, nem som, nem cheiro, nem matéria, inscrita num espaço que é irreal, intuição a priori. Kant é um idealista ontológico: os objectos materiais não existem fora do espírito humano, são complexos de sensações e intuições tridimensionais. Não há, por exemplo, cavalo-númeno e cavalo-fenómeno, como pensa a generalidade dos estudiosos de Kant. O cavalo é apenas representação de algo incognoscível. Kant escreveu:

 

«Assim, quando separo da representação de um corpo o que o entendimento pensa dele, como seja substância, força, divisibilidade, etc., e igualmente o que pertence à sensibilidade como seja a impenetrabilidade, dureza, cor, etc, algo me resta ainda dessa intuição empírica: a extensão e a figura. Estas pertencem à intuiçao pura, que se verifica a priori no espírito, mesmo independente de um objecto real dos sentidos ou da sensação, como simples forma da sensibilidade.»(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 61).

 

Ora este texto desmonta o objecto real dos sentidos ou fenómeno mostrando que não passa de um complexo de intuições formais (figura, espaço)  e de conceitos A cor, a dureza, de uma bicicleta não pertencem à bicicleta: são sensações, intuições empíricas, modos ilusórios de percepcionar esse veículo que é fenómeno. O carácter unitário da biclicleta como aglomerado de peças metálicas é um conceito do entendimento, é a categoria de substância e acidente, não está na bicicleta. E o problema coloca-se: ao vermos uma bicicleta que está fora do nosso corpo físico mas dentro da nossa mente que o circunda e constitui o espaço, estamos a ter um conjunto de intuição empíricas e sensações (visão  da cor, sensação da dureza do metal ou do selim, etc) de um fenómeno que se reduz a intuições empíricas geométricas (as linhas da bicicleta), a uma matéria indeterminada (algo que não tem cor, nem peso, nem cheiro, nem ductilidade) e a conceitos (substância única e divisível em partes).

 

Assim, a noção de intuição empirica funciona ambiguamente em Kant: é a matéria do fenómeno («Dou o nome de matéria ao que no fenómeno corresponde à sensação» diz Kant; mas uma matéria absolutamente abstracta, como a hylé de Aristóteles, pois a cor, o cheiro, o som, a sensação de dureza são meras sensações, aparência), o objectivamente «real para nós» e é a percepção da matéria desse fenómeno, percepção esta que já inclui cor, som, cheiro, grau de dureza, etc. Note-se ainda que, seguindo a teoria das qualidades primárias e secundárias de Descartes, Kant estabelece duas modalidades de intuição empírica enquanto percepção, distinguindo sensação (subjectiva, ilusória) de intuição (objectiva):

 

«O sabor agradável de um vinho não pertence às propriedades objectivas desse vinho, portanto de um objecto mesmo considerado como fenómeno, mas à natureza especial do sentido do sujeito que o saboreia. As cores não são propriedade dos corpos, à intuição dos quais se reportam, mas simplesmente modificações do sentido da vista que é afectada pela luz de uma certa maneira. O espaço pelo contrário, como condição de objectos exteriores, pertence necessariamente ao fenómeno ou à intuição do fenómeno». (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 69, nota de rodapé; o destaque a negrito é de minha autoria).

 

Neste caso, o sabor e a cor de um vinho seriam a intuição subjectiva e o vinho a intuição objectiva e o fenómeno. Mas o que é o vinho sem cor, nem sabor?

 

Em suma, a contradição de Kant reside no facto de expulsar do fenómeno para o campo das sensações (intuições do fenómeno) e para o campo dos conceitos aquilo que realmente o caracteriza: a  cor, o sabor, a dureza, a matéria concreta de que é feito (no caso de árvore: madeira e folhagem), tornando o fenómeno uma figura fantasmagórica, um esqueleto sem carne, pura forma num dado tempo.

 

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Terça-feira, 5 de Fevereiro de 2013
Equívocos de Carlos Morujão e Karl Leonhard Reinhold sobre a ontognosiologia de Kant

Carlos Morujão escreveu, há oito anos, sobre a doutrina de Kant e a interpretação que dela fez  Karl Leonhard Reinhold:

 

«No entanto, o realismo empírico kantiano, mantinha como sabemos, a afirmação da existência de uma realidade que, por se conservar exterior à consciência, seria, contudo, impossível de conhecer. Foi a esta realidade meramente pensada que Kant chamou a coisa-em-si» ( Carlos Morujão, «Karl Leonhard Reinhold: Da "crítica da razão" à  busca do princípio incondicionado de todo o saber» ,in Revista Portuguesa de Filosofia, pag 735, Tomo 61, Fascículos 3-4, «Herança de Kant II- Efeitos & Transformações», 2005).

 

Não é claro que Carlos Morujão entendesse o significado da expressão «realismo empírico» usada por Kant. O realismo empírico kantiano não afirma nenhuma realidade exterior à consciência. Como realismo de um campo empírico, apenas afirma a realidade aparente dos fenómenos. Na verdade é um idealismo. Kant escreveu:

 

«Pelo contrário, o idealista transcendental pode ser um realista empírico e, portanto, como o chamam, um dualista, isto é, admitir a existência da matéria sem sair da simples consciência de si próprio, nem admitir algo mais do que a certeza das representações em mim, por conseguinte, nada mais que o cogito ergo sum.» (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, nota das pags 363-364: o bold é nosso).

 

 

Percebe-se que o "realismo empírico" de Kant se circunscreve ao eu penso (cogito) e, por conseguinte, é um falso realismo, sem embargo de Kant o denominar, ambiguamente, de «dualismo». Isto não é sublinhado nem compreendido por Morujão que prossegue assim:

 

«O objecto é, por conseguinte, a condição externa da representação, não depende dela, nem se modifica ao passo que a sua matéria - no sentido de matéria da representação, por conseguinte, solidária de uma determinada forma - se modifica com a sucessão das nossas representações. É o que acontece, por exemplo, ao aproximarmo-nos de uma árvore ou quando a vemos segundo perspectivas diferentes: a matéria da representação modifica-se, mas não o objecto que lhe servia de fundamento fora da consciência e que constitui o suporte material objectivo de um conjunto de propriedades diferentes que, em cada representação, lhe são atribuídas. É claro que nada impede que se chame ainda, a tal suporte objectivo, uma matéria mas apenas num sentido impróprio e derivado deste termo.» (Carlos Morujão, «Karl Leonhard Reinhold: Da "crítica da razão" à  busca do princípio incondicionado de todo o saber»,in Revista Portuguesa de Filosofia, pag 738, Tomo 61, Fascículos 3-4, «Herança de Kant II- Efeitos & Transformações», 2005; o bold é posto por mim).

 

Dizer que «O objecto é, por conseguinte, a condição externa da representação, não depende dela, nem se modifica» é adulterar a teoria de Kant. De facto, nada se sabe do objecto exterior ao espírito humano: não se pode pois dizer que permanece imutável.

 

Kant escreveu:

 

«Devíamo-nos, contudo, lembrar de que os corpos não são objectos em si, que nos estejam presentes, mas uma simples manifestação fenoménica, sabe-se lá de que objecto desconhecido; de que o movimento não é efeito de uma causa desconhecida, mas unicamente a manifestação fenoménica da sua influência sobre os nossos sentidos; de que, por consequência, estas duas coisas não são algo fora de nós, mas apenas representações em nós; de que, portanto, não é o movimento da matéria que produz em nós representações, mas que ele próprio (e portanto também a matéria que se torna, assim, cognoscível) é mera representação.» (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, nota das pags 363-364: o bold é nosso).

 

Quando Kant escreve os corpos são «uma simples manifestação fenoménica, sabe-se lá de que objecto desconhecido», a que corpos se refere? Às árvores, às mesas e cadeiras, aos cavalos e demais corpos animais, ao céu, à terra. Não existem a árvore-númeno e a árvore-fenómeno, como supõem Carlos Morujão, Karl Leonard Reinhold e a generalidade dos professores de filosofia. Não são o movimento da matéria nem a matéria que produzem em nós representações, diz Kant, eles são representação: isto significa que não há matéria fora do nosso espírito, mas apenas fora do nosso corpo que é uma pequena fração do nosso espírito/ balão cósmico.

 

A árvore ou o céu são, a cem por cento, fenómeno, isto é, representação. Atrás deles há o objecto desconhecido, sem forma, imaterial. Daí que seja um erro de Carlos Morujão qualificar o númeno como «o objecto que lhe servia de fundamento fora da consciência e que constitui o suporte material objectivo de um conjunto de propriedades diferentes». O númeno não tem matéria, não é suporte material de nada. Morujão interpreta Kant como um realista crítico extremo (há objectos materiais fora do nosso espírito, imutáveis, mas incognoscíveis). Mas Kant é um idealista material: a matéria é apenas sensação, realidade aparente, não subsiste fora da nossa sensibilidade, fora do espaço que é o sentido externo desta.

 

O exemplo da árvore como coisa em si que é percebida segundo perspectivas diferentes, dado por Morujão, é erróneo, induz em erro sobre a natureza do númeno, que é incorpórea e indefinível. A árvore, do mesmo modo que a casa, a nuvem ou a montanha é fenómeno-objecto, ou seja, é representação. Extinguem-se se porventura o meu espírito se extinguir.

 

  

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Terça-feira, 1 de Janeiro de 2013
Heidegger: uma distorcida visão sobre como Parménides e outros gregos antigos concebiam o ser

Em «Caminhos do Bosque», Martin Heidegger escreveu sobre a representação e o ser (em grego: einai):

 

«Pensar é representar, uma relação representadora com o representado (ideia como perceptio).»

«Representar significa aqui situar algo diante de si a partir de si mesmo e assegurar como tal o elemento situado de este modo. Esse assegurar tem de ser uma forma de cálculo O representar já não é essa captação do presente a cujo desocultamento a própria captação pertence, como um modo próprio da presença, a isso que se apresenta de forma não oculta. O representar já não é o descobrir-se para...é a apreensão e compreensão de.. Já não reina o elemento presente mas sim a apreensão. O representar é agora, em virtude da nova liberdade, um proceder antecipador que parte de si mesmo dentro do âmbito do estabelecido que previamente há que estabelecer. O ente já não é o presente, mas aquilo situado do lado oposto no representar, isto é, o que está em frente. O re-presentar é uma objectivação dominadora que rege à partida. O representar empurra tudo para dentro da unidade do assim objectivado. O representar é uma cogitatio.» (Martin Heidegger, La época de la imagen del mundo, in Caminos de bosque, pag 87, Alianza Editorial; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Mais uma vez Heidegger busca a originalidade subvertendo o significado de termos filosóficos consagrados: Hegel distinguia o pensar, que é próprio da filosofia, geradora de conceitos, do representar, uma espécie de pensamento-imagem, arracional ou pouco racional, próprio da religião, mas Heidegger ignora essa distinção. Fixar o pensamento na imagem do nascimento de Jesus é representação, segundo Hegel, mas raciocinar que a ideia absoluta sai fora de si e transforma-se em natureza física é pensamento, segundo o mesmo Hegel.

 

No texto acima, Heidegger define o ser como a presença, o pre-sente. Mas no presente há uma dupla faceta que Heidegger, como filósofo não dialético, não explicita: momento temporal, ou seja, instante do «agora», e essência atemporal, ou seja, forma (ou forma preenchida por matéria). A crítica de Heidegger à desocultação do ser-presença opondo-o à apreensão é uma crítica débil, um exercício sofístico: Heidegger coloca o ente (tó ón)- que deveria definir como essência geral - fora do ser, isto é do presente, mas o ente está, de facto, situado no presente no passado e no futuro. Em Parménides, existe apreensão e não mera desocultação da presença, ao contrário do que sugere Heidegger. Parménides escreveu;´«Ser e pensar são um e o mesmo». Ora , o pensamento é o que permite a apreensão do passado e do futuro, portanto o ser sai fora do momento presente e reconstrói as catedrais do sido, do que já ocorreu e não se pode alterar, ou esboça as catedrais do por-vir, daquilo que virá.

 

O passado e o futuro imaginado estão dentro do presente eterno. Há de facto duas noções de ser: presença eterna e presença efémera no agora. O passado está, enquanto representação, no presente actual e o futuro previsível ou idealizável idem. O passado só é passado em relação ao presente e o futuro só é futuro em relação ao presente. Portanto, o ser no sentido de Parménides engloba passado, presente e futuro do mundo em devir. Não é meramente o presente, como Heidegger sustentou.

 

Heidegger não está aqui para responder ao licenciado em filosofia autor deste blog, que despreza os mestrados e doutoramentos por não reconhecer nestes, em regra, mais do que um trabalho de quantidade, de acumulação de dados, raramente dotado de brilhantismo e clareza superior. Mas os heidegerianos não respondem: são um rebanho obediente ao pensamento, ora brilhante ora medíocre, do mestre falecido em 26 de Maio de 1976.


As universidades não passam de escolas de formação de professores do ensino secundário. É o seu único  mérito. Nelas vivem os professores que constroem obtusos exames nacionais de filosofia com perguntas de escolha múltipla, frequentemente com respostas erradas na grelha de correção oficial. Não há nelas, salvo uma ou outra excepção, os mais altos picos do pensamento, a que só os pensadores grandes e isolados ascendem, sem medo de vertigens. Há uma cultura de submissão interesseira dos doutorandos ao catedrático, impera o espírito de rebanho: os catedráticos analíticos, os catedráticos hegelianos, os catedráticos heideggerianos, etc...O rebanho não pensa: imita o pastor ou o carneiro que vai à frente. 

 

 

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Quarta-feira, 16 de Novembro de 2011
Sobre o conceito de fenomenologia em Hartmann e Husserl e a ontologia de Hartmann

O que é a fenomenologia? Não tem uma definição única, ainda que a palavra venha do grego phainomenón, que significa o que aparece, o que se mostra. Vê-se como a generalidade dos "Dicionários de Filosofia" esbraceja, como náufrago no mar da imprecisão, ao definir esta corrente filosófica.

 

 

MÉTODO FENOMENOLÓGICO NÃO É O MESMO QUE ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA

 

É célebre, reproduzido em vários manuais de filosofia, o seguinte texto de Nicolai Hartmann: 

 

 

«Análise do fenómeno do conhecimento

(Fenomenologia do conhecimento)

 

 

a) O FENÓMENO FUNDAMENTAL DA APREENSÃO

 

I) «Em todo o conhecimento, um «cognoscente» e um «conhecido», um sujeito e um objecto encontram-se face a face. A relação que existe entre os dois é o próprio conhecimento. A oposição dos dois termos só pode ser suprimida: esta oposição significa que os dois termos são originariamente separados um do outro, transcendentes um ao outro.» (...)

4) «A função do sujeito consiste em apreender o objecto; a do objecto consiste em poder ser captado pelo sujeito e sê-lo efectivamente.»

5) «Considerado do lado do sujeito, esta "apreensão" pode ser descrita como uma saída do sujeito da sua própria esfera e como uma incursão na esfera do objecto, a qual é para o sujeito transcendente e heterogénea. O sujeito apreende as determinações do objecto e captando-as, introdu-las, fá-las entrar na sua própria esfera.»

 

6) «O sujeito só pode captar as propriedades do objecto fora de si mesmo, porque a oposição do sujeito e do objecto só desaparece na união que o  acto de conhecimento estabelece entre eles: mas ela permanece indestrutível.»

(Nicolai Hartmann, Les principes d´une méthaphisique de la connaissance, Tome I, pag 87-88, Aubier, Editions Montaigne, Paris,  1945; o negrito é posto por mim).

 

Sustento que esta descrição da fenomenologia do conhecimento feita por Hartmann não é fenomenologia, no plano ontológico, mas sim realismo natural. ou realismo crítico, uma vez que admite que o sujeito e o objeto (físico) são originariamente transcendentes um ao outro..

 

Há dois sentidos da palavra fenomenologia:

 

A) Sentido gnoseológico: método de conhecimento e aí é apreensão directa, intuitiva, das essências, prescindindo do ser, do plano ontológico-existencial. É o sentido que Husserl lhe atribuiu, classificando o método de "idealismo". 

 

B) Sentido ontológico: posição  equidistante do idealismo imaterialista e do realismo. A ontologia fenomenológica reconhece o sujeito e os objetos físicos como realidades semitranscendentes entre si, indissociáveis. Imagem imperfeita: a fenomenologia é dois irmãos siameses, sujeito e objeto, não separados cirurgicamente.

 

O apagamento do sujeito e sua fusão instantânea com o objecto, alienando-se nele, apontado no texto acima, parece uma concepção muito hegeliana do "eu". A consciência é uma lente transparente que serve para ver e captar o que está além dela, segundo Hartmann. Não tem conteúdos. Mas a quem dá a conhecer? A um sujeito que seria o umbral da porta da consciência. O importante é que a tese de Hartman consiste em que o conhecimento é um processo de acção sobre um objecto real, transcendente à consciência, de contacto com esse objecto, processo que depois é revertido na consciência na forma de objeto intencional.

Em minha opinião, é impossível o sujeito sair de si mesmo: mesmo que o espírito saia do corpo para captar as propriedades do objeto não sai de si mesmo, é sempre espírito ao entrar em contato com uma realidade exterior que lhe é estranha e que não apreende fotograficamente.

 

 

Hartman rema contra o idealismo imaterialista e o realismo ao afirmar:

 

«A fenomenologia contesta o "princípio da consciência". A consciência não está fechada sobre si mesma. É uma insensatez dizer que a consciência pode captar apenas os seus próprios conteúdos. O próprio conceito de conteúdo da consciência está errado. Não há conteúdo. Não há mais criação realizada pelo conhecimento, imagem do objecto na consciência, A expressão "Tenho qualquer coisa na consciência" é falsa. Todo o acto de consciência é intencional; consiste na captação de qualquer coisa; este qualquer coisa está sempre para além do acto ou do estado de consciência; isso é válido, mesmo se se trata de um objeto interno». Em suma, esta qualquer coisa é sempre um objecto intencional.» (Nicolai Hartmann, Les principes d' una metaphisique de la connaissance, pag 156, Aubier, Paris, 1945; o negrito é posto por mim)

 

 

E sobre o objeto intencional - exemplo: a imagem de uma casa que temos no nosso cérebro enquanto estamos a olhar a casa - escreve sobre a dificuldade em situá-lo:

 

«Apercebemo-nos imediatamente que aquém da esfera do sujeito, há imediatamente qualquer outra coisa, uma "criação": pouco importa evidentemente que se chame "imagem" ou "representação" ou outra coisa; pouco importa que se dê à esfera em que se encontra esta criação o nome de "consciência" ou qualquer outro. Mas quando se captou esta distinção fundamental para o fenómeno do conhecimento, é, pelo contrário, muito difícil precisar a que esfera pertence este objeto intencional de que tanto se fala. Não pertence certamente à esfera do ser-em-si como tal. Baixará para reentrar na da "imagem"? Do ponto de vista gnosiológico, não haveria nenhuma dificuldade, porque a imagem é qualquer coisa de completamente objetivo. Mas os fenomenólogos dizem-nos que não há nenhuma imagem. O objeto intencional tomaria então o lugar da imagem que se baniu?»

( Hartmann, ibid, pág. 157)»

 

A definição de fenomenologia de Hartman é contrária, em certa medida, à de Husserl. Este escreveu:

 

«A fenomenologia, pelo contrário, é um idealismo que não consiste mais do que na autoexplicitação do meu ego, como sujeito de todo o conhecimento possível, levada a cabo de modo consequente na forma de uma ciência egológica sistemática, e isto a respeito do sentido de tudo o que é, que deve poder ter justamente um sentido para mim, o ego. Este idealismo não está formado por um jogo de argumentação que deva ganhar o prémio da vitória em luta com os realismos. É a explicitação do sentido, levada a cabo num efetivo trabalho,de todo o tipo de ser que eu, o ego, seja capaz de conceber, especialmente do sentido de transcendência (que já me foi dado efetivamente pela experiência) da natureza, da cultura, do mundo em geral.» (Edmund Husserl, Meditaciones cartesianas. pags 113-114, Editorial Técnos, Madrid, 2006; o negrito é colocado por mim). 

 

 

ONTOLOGIA: TRÊS ESFERAS DO SER REAL E UMA DO SER IDEAL

 

 

 

Hartmann pretendeu estruturar uma ontologia fenomenológica, a que chamou analítica e crítica, que acolhesse as zonas irracionais ou incognoscíveis do ser, e se distinguisse da ontologia dos escoláticos e dos racionalistas:

 

«A ontologia de que aqui se trata distingue-se nitidamente da antiga ontologia dos escolásticos e racionalistas. Esta pretendia ser imediatamente uma lógica do ser ( do existente). E quando concluía da essência à existência, era apenas a consequência normal do método empregue, a qual consistia essencialmente em hipostasiar a esfera da lógica. Em suma, esta ontologia era puramente construtiva, dedutiva e racionalista. (...)»

«Uma ontologia, que tem a pretensão de se ocupar do problema do conhecimento, deve ser analítica e crítica.». (Nicolai Hartmann, Les principes d´une métaphisique de la connaissance, pag 253, Tome I, Paris, Aubier; o negrito é colocado por mim).

 

Atentemos numa breve explanação sintética e parcelar da ontologia de Hartman, exposição que não aborda aqui as categorias do ser e as categorias do conhecimento nem outros temas. Há três grandes esferas do ser real, para Hartman: a do sujeito ou subjetiva, a dos objectos reais ou ser objetivo real, e a da transobjectividade ou ser transobjetivo. Entre as duas últimas ou ao lado da segunda parece situar-se uma quarta esfera: a esfera da idealidade, que contém em si três esferas, a esfera da idealidade estética, a maior, a da idealidade ética e a da idealidade lógica .

 

«Todo este conjunto ontológico que rodeia o sujeito e no qual se encontram todas as estruturas objetivas se distribui, conforme a natureza da relação que estas podem ter com o sujeito, em diferentes zonas; essas zonas estão, em geral, dispostas de forma concêntrica; os seus limites aproximam-se mais ou menos da esfera do irracional, segundo a natureza muito diferente do objeto em cada uma das esferas. Há apenas uma só e única esfera do ser; do mesmo modo só há também uma esfera do sujeito. Mas com estas esferas interfere uma esfera ideal igualmente única, no interior da qual às esferas de idealidade lógica e ética responde uma esfera mais vasta de idealidade estética. O conjunto apresenta a forma de um sistema complexo de esferas, cuja multiplicidade indefinida se adapta facilmente à estrutura ontológica fundamental do real.» (Hartmamnn, ibid, pag 294; o negrito é posto por mim)

 

 

«A única esfera do ser imediatamente acessível ao conhecimento filosófico é o "paço dos objetos" com as suas diferentes zonas e as diferentes esferas de ordem ideal que aí se inserem. O "paço dos objetos" é a região do ser à qual se refere antes de tudo o fenómeno do conhecimento.» (...) (Nicolai Hartman, Les principes d´une metaphysique de la connaissance, Tome I, pág 296, Aubier, Paris, 1945).

 

«Ela é a parte dos fenómenos no sentido primeiro e preciso do termo. Porque ela é a esfera dos objetos e os dados imediatos estão todos inerentes ao objeto como tal, não ao sujeito, nem já ao ser enquanto distinto do objeto. Igualmente todo o conhecimento mediato  (por exemplo, o raciocínio) refere-se finalmente ao paço dos objetos, porque tem como termo essencialmente o próprio objeto, como tal. O conhecimento é naturalmente dirigido para o objeto. Para o fazer mudar de direção e o reconduzir ao sujeito, é necessário um ato de reflexão; e para o fazer ultrapassar o objeto, para o fazer atingir o transobjetivo, é necessário alargar a função do conhecimento, o que não é possível a não ser colocando os problemas de determinada maneira. Em resumo, o "paço dos objetos" é, no ser, a esfera que é de longe a mais racional. Quanto à esfera da idealidade, só aparece enquanto se cruza, por assim dizer, com o "paço dos objetos"; a esfera da idealidade é também uma esfera de objetividade pura.»

 

«No interior do "paço dos objetos" há contudo a introduzir na racionalidade diferenças essenciais de grau, segundo as zonas e o conteúdo dos seus problemas. A racionalidade de longe mais elevada encontra-se no paço dos objectos do conhecimento e a racionalidade mais fraca no dos objetos da estética; quanto à ética, esta possui uma racionalidade de qualquer modo intermediária. Assim, pois, o problema do conhecimento encontra-se completamente no centro  da cognoscibilidade. Forma o ponto de partida necessário, é por ele que a pesquisa filosófica deve começar, porque constitui a parte onde há mais racionalidade.»

 

«Pelo contrário, as esferas situadas aquém e além do "paço dos objetos"- o sujeito e o ser transobjetivo - são dificilmente acessíveis. São de sua natureza estranhas ao conhecimento, afastam-se deste, por assim dizer, se bem que não seja, em um e outro caso, pelas mesmas razões. O que, nessas esferas, é suscetível de ser conhecido, nunca forma mais do que uma ínfima porção do seu conteúdo efetivo; estas esferas possuem, diríamos de bom grado, um mínimo de racionalidade. Podem, contudo, ser conhecidas em certa medida (ainda que não seja por meio do conhecimento do objeto); de outro modo, não poderia falar-se delas.» (, Hartmann, ibid, pag 297).

 

É evidente que a fenomenologia, tal como Hartman a concebe, supõe objetos físicos, reais em si mesmos, existentes fora da consciência do sujeito e apreensíveis por ela. Ao contrário do idealismo material de Kant, batizado de idealismo transcendental, em que os objetos físicos como mesa, árvore ou cavalo são criados dentro da mente exterior do sujeito - o espaço ou sentido externo- nela vivem e desaparecem, como conglomerados tridimensionais de sensações pensados pelo entendimento.

 

 

PODE COLOCAR-SE O MONISMO NO MESMO GÉNERO QUE O IDEALISMO E O REALISMO GNOSIOLÓGICOS?

 

Apesar de ser um pensador brilhante em muitos aspetos, Hartmann sofre confusões do ponto de vista dialético-gnosiológico, ponto de vista que é, no essencial, noologia. Assim coloca no mesmo plano, como espécies do mesmo género, realismo, idealismo e monismo:

 

«É necessário tomar uma consciência exata das relações que ligam os dois problemas, gnosiológico e ontológico, para evitar deslocar indevidamente as suas fronteiras e manter a investigação sobre as alturas da crítica. Entre as teorias existentes são as teorias realistas aquelas que melhor tomaram consciência desta relação; vêm depois as teorias monistas que guardam também uma certa consciência, ao menos em princípio. Mas as que menos a possuem são as teorias idealistas.» (Hartmann, ibid, pag 249; o negrito é posto por mim).

 

Monismo é uma definição formal, matemática, e realismo e idealismo são definições substanciais, físicas e metafísicas. Não pertencem ao mesmo género. Hartmann equivoca-se. E o que entende por monismo?

 

«O monismo explica a unidade de relação constitutiva do conhecimento afirmando que o sujeito e o objeto são, do ponto de vista da origem, essencialmente semelhantes. Nesta similitude já se encontra um pouco de ontologia, pelo facto que não somente o objeto mas também o sujeito é manifestamente qualquer coisa que é. O ponto central das meditações de Descartes, o cogito ergo sum, não deixa a este sujeito nenhuma dúvida. No cogito uma realidade é dada imediatamente à intuição como existente.» (Hartmann, ibid, pags 261-262; o negrito é posto por mim)

 

O cogito ergo sum de Descartes, em que o pensamento e o ser se fundem instantaneamente, numa intuição fundadora, é dado por Hartmann como um exemplo de monismo. Mas, de facto, esse momento é o idealismo solipsista, o idealismo monista: existe uma só consciência real, a minha, o resto - os outros , Deus, o mundo físico - é ilusão. Portanto, idealismo a e monismo não se opõem entre si , como duas espécies diferentes no seio do mesmo género. Há um idealismo monista e um idealismo pluralista como o de Kant (várias mentes humanas e ainda os númenos). Hartmann não concebeu isto, com esta claridade necessária. 

 

EQUÍVOCOS DE HARTMANN SOBRE IDEALISMO E TRANSCENDÊNCIA

 

Hartmann é também equívoco na caraterização do idealismo transcendental de Kant no qual o termo Ideia designa a intuição inteligível de um objeto problemático pensado pela razão. E é equívoco na distinção entre a sua ontologia crítica e a de Kant. As Ideias principais, em Kant, são a de Deus, mundo (não o universo físico de planetas e estrelas mas a totalidade em que ele se insere), alma imortal e liberdade. Escreveu Hartmann:

 

«A nova ontologia analítica caracteriza-se pela síntese da "Ideia" kantiana, com o conceito de transcendência que se encontrava na antiga ontologia que era sintética. Afirmando a transcendência, suprimimos o idealismo; afirmando o caráter infinito da Ideia, suprimimos o  dogmatismo racionalista. É a Ideia que torna a ontologia crítica e é o pensamento do ser que torna a Ideia ontológica.» (Hartman, ibid, pag. 263)

 

É ambíguo definir a ontologia escolástica como sintética. Afinal, a «Suma Teológica» analisa as propriedades do ente divino e do ente humano, os vícios e as virtudes deste último. Que quer dizer o termo sintético? Que parte de dogmas herdados da tradição, da fé, que carecem de ser analisados?

 

Não é verdade que afirmando a transcendência se suprime o idealismo porque grande parte das correntes idealistas assentam na transcendência de um ou vários espíritos em relação ao espírito do sujeito pensante. Hartmann revela-se obscuro nesta distinção noológica. A transcendência opõe-se somente ao idealismo solipsista («A minha consciência engloba o universo, nada há além dela») mas não ao idealismo pluralista ou multiconsciências. Kant era idealista e afirmava a transcendência de alguns númenos (Deus, mundo como totalidade) ao sujeito. Ademais, Kant já afirmava o caráter infinito da Ideia, não se vê em que medida a ontologia crítica de Hartmann «torna a Ideia ontológica» através do seu «pensar do ser»: o ser transobjetivo de Hartman corresponde mais ou menos integralmente aos númenos-Ideias de Kant.

 

UMA AMBÍGUA OPOSIÇÃO DESENHADA POR HARTMANN ENTRE REALISMO E ONTOLOGIA ANALÍTICA  

 

Hartmann manifesta uma confusão intensa sobre o sentido da palavra realismo. Em gnosiologia, realismo designa o materialismo ôntico - não o materialismo ontológico ou protológico - isto é o facto de haver um mundo de matéria, real em si mesmo, fora das consciências humanas.

 

«A tendência realista que manifesta a nossa ontologia contém pois nela mesma os seus limites e esses limites impedi-la-ão sempre de degenerar em teoria realista

«O lado propriamente realista que apresenta a nossa ontologia consiste simplesmente numa dupla relação que a afeta. 1º Ela está em primeiro lugar na ligação mais estreita possível com o realismo espontâneo e científico; conserva esse realismo na medida em que não implica nenhuma concepção materialista da consciência (capítulo XIV, a e d)(...) 2º Além disso, a nossa ontologia apoia-se no facto de que o ser que está em questão pode ser percebido na direção do objeto e que ele aparece com os carateres de um transobjetivo.» (Hartmann, ibid, pag 267)

 

 

Este texto é um exemplo de retórica inconsequente, espelho da nebulosidade teórica de Hartmann: «a ontologia analítica...é de tendência realista mas não é realista», «o ser é percebido na direção do objeto», etc.. Perguntaríamos a Hartmann: a jarra e a mesa que vejo existem ou não fora da minha mente? Se respondesse afirmativo, Hartman defenderia o realismo gnosiológico. Mas ele preferiu escorregar na viscosidade do óleo da amiguidade. Ora o realismo não implica uma concepção materialista da consciência, ou seja, que a consciência é uma emanação transitória das células do cérebro e do sistema nervoso humano e desaparece com a extinção das células, a morte corporal.  Hartmann confunde o realismo com o materialismo ontológico, doutrina segundo a qual o ser-essência geral, o princípio eterno de tudo é a matéria impensante. 

 

HÁ UM IRRACIONALISMO FILOSÓFICO MAIS PROFUNDO QUE O IRRACIONALISMO MÍSTICO?

 

Hartmann teorizou que a camada de irracionalidade mais profunda do ser - o transinteligível - só pode ser alcançada ou tocada pela filosofia, que vai mais longe do que o sentimento místico religioso.

 

«Contudo, o irracional não é pura e simplesmente o incognoscível. Podemos conhecer as cores e os sons e contudo há neles qualquer coisa que não pode ser dita racional. Há portanto coisas que podem ser conhecidas e que, contudo, são irracionais. Por conseguinte, a racionalidade só se identifica com uma certa forma de cognoscibilidade.» (Hartman, ibid, pag 318; o negrito é posto por mim).

 

«O irracional no sentido filosófico da palavra não se identifica de modo nenhum com o irracional dos místicos. Este é objeto de revelação, de intuição, de apreensão extática, d´amor Dei intellectualis. Trata-se de um objeto que pode perfeitamente ser captado, ainda que não o seja pelo entendimento; o objeto dos místicos é objeto de visão, de experiência vivida, de entendimento. (...) Pelo contrário, quando se trata do transinteligível, está-se a lidar com qualquer coisa de que se não pode ter nenhuma intuição.»(...) «O irracional dos místicos é do alógico, não do transinteligível». (Hartmann, ibid, pag 319; o negrito é posto por mim).

 

« O transinteligível e com ele o "irracional por excelência" começa lá onde já não é possível recorrer a uma intuição, a uma inteleção, a uma experiência vivida, a um sentimento. O irracional de que se trata em ontologia está, portanto, situado numa camada mais profunda que o irracional dos místicos.» (Hartmann, ibid, pag 320; o negrito é colocado por mim).

 

É discutível esta tese. Porque não há-de o irracional transinteligível ser a mesma camada do ser, a última, a mais afastada, percepcionada de modo diferente por místicos e filósofos, os primeiros julgando conhece-lo através do amor e da iluminação da alma e os segundos reconhecendo que a razão não penetra esse transinteligível?  «

 

 

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Quinta-feira, 17 de Abril de 2008
Contradições sobre o númeno e outros erros teóricos de Kant

Quem disser que Kant não se contradiz na "Crítica da Razão Pura" não conseguiu penetrar na floresta do seu sistema ontognosiológico e aperceber-se de que o pensamento kantiano sofre fracturas por não ter um centro de gravidade único.

 

O NÚMENO É A COISA EM SI

 

Um primeiro ponto a assentar na interpretação de Kant: númeno é o mesmo que coisa em si.

 

«O nosso entendimento recebe, deste modo, uma ampliação negativa, porquanto não é limitado pela sensibilidade, antes limita a sensibilidade, em virtude de denominar os númenos as coisas em si (não consideradas como fenómenos).» ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 271).

 

«O conceito de um númeno, isto é, de uma coisa que não deve ser pensada como objecto dos sentidos, mas como coisa em si (exclusivamente por um entendimento puro), não é contraditório, pois não se pode afirmar que a sensibilidade seja a única forma possível de intuição. Além disso, este conceito é necessário para não alargar a intuição sensível até às coisas em si e para limitar, portanto, a validade objectiva do conhecimento sensível (pois as coisas restantes, que a intuição sensível não atinge, se chamam por isso mesmo númenos, para indicar que os conhecimentos sensíveis não podem estender o seu domínio sobre tudo o que o pensamento pensa). Mas em definitivo não é possível compreender a possibilidade de tais númenos e o que se estende para além da esfera dos fenómenos é (para nós) vazio; quer dizer, temos um entendimento que, problematicamente, se estende para além dos fenómenos, mas não temos nenhuma intuição, nem sequer o conceito de uma intuição possível, pelo meio do qual nos sejam dados objectos fora do campo da sensibilidade e assim o entendimento possa ser usado assertoricamente para além da sensibilidade.»

 

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 270; o bold é de nossa autoria).

 

Assim o entendimento, denominado, nesta vertente idealizadora do númeno, razão noutras partes da CRP, pensa o númeno

 

Note-se que o númeno é uma coisa, não um conceito. Logo essa coisa há-de ter, na espacialidade ideal abstracta, um lugar: dentro de nós, fora de nós ou fora e dentro em simultâneo. As noções de dentro-fora e limite entre dentro e fora são categorias do pensamento e não apenas da sensibilidade. Algo que não está em lugar nenhum é algo que está fora, idealmente pensando.

 

Kant admite o sujeito enquanto númeno – e aqui númeno adquire um sentido de objecto interno ao espírito humano – no que se refere à causalidade da acção moral:

 

«Pelo seu carácter inteligível porém (embora na verdade dele só possamos ter o conceito geral) teria esse mesmo sujeito de estar liberto de qualquer influência da sensibilidade e de toda a determinação por fenómenos; e como nele, enquanto númeno, nenhuma mudança acontece que exija uma mudança dinâmica de tempo, não se encontrando nele, portanto, qualquer ligação com fenómenos enquanto causas, este ser activo seria, nas suas acções, independente e livre de qualquer necessidade natural como a que se encontra unicamente no mundo sensível.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 468).

 

Assim o númeno, nesta perspectiva realista do entendimento, nunca é um conceito, mas sim uma coisa ideal, pensante ou não, interior ou exterior ao homem.

 

A COISA EM SI AFECTA A SENSIBILIDADE PARA PRODUZIR NELA O FENÓMENO, É CAUSA DESTE

 

A coisa em si é o objecto da intuição - não o objecto que a intuição nos dá mas aquele que se encontra "por detrás" deste - conforme se depreende do seguinte:

 

«…Modo que se denomina sensível, porque não é originário, quer dizer, não é um modo de intuição tal que por ele nos seja dada a própria existência do objecto da intuição (modo que se nos afigura só poder pertencer ao Ser supremo), antes é dependente da existência do objecto e, por conseguinte, só possível na medida em que a capacidade de representação do sujeito é afectada por esse objecto.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 362).

 

«Sejam quais forem o modo e os meios pelos quais um conhecimento se possa referir a objectos, é pela intuição que se relaciona imediatamente com estes e ela é o fim para o qual tende, como meio, o pensamento. Esta intuição, porém, apenas se verifica na medida em que o objecto nos for dado; o que, por sua vez, só é possível (pelo menos para nós, homens) se o objecto afectar o espírito de certa maneira.

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 61; o bold é nosso).

 

Se o objecto afecta o espírito, é porque se encontra, em princípio, fora deste. Ora sendo o espírito humano composto por sensibilidade, entendimento e razão, o objecto de que aqui se trata não é a coisa para nós ou fenómeno (casa, lâmpada, mão, nuvem) que é interno à sensibilidade que se projecta fora do meu corpo mas sim a coisa em si.

Assim a coisa em si afecta o nosso espírito para fazer nascer dentro deste, com a ajuda do espaço e do tempo, formas a priori da sensibilidade, o fenómeno (casa, árvore, nuvem, mar, etc).

Vejamos agora se a coisa em si está dentro ou fora do nosso espírito.

 

QUANDO KANT DEFINE A COISA EM SI (NÙMENO) COMO OBJECTO FORA DE NÓS…

 

Sendo dado que númeno e coisa em si são o mesmo, atente-se na seguinte definição de Kant :

 

«Porque, entretanto, a expressão fora de nós traz consigo um equívoco inevitável, significando ora algo que existe como coisa em si, distinta de nós, ora algo que pertence simplesmente ao fenómeno exterior, para colocar fora de incerteza este conceito tomado neste último sentido, que é aquele em que propriamente é tomada a questão psicológica respeitante à realidade da nossa intuição externa, distinguimos os objectos empiricamente exteriores daqueles que poderiam chamar-se assim no sentido transcendental, designando-os por coisas que se encontram no espaço».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 352).

 

Nesta definição acima, postula-se que a expressão fora de nós pode significar coisa em si (númeno) ora pode indicar fenómeno exterior (algo que está no nosso sentido externo mas que não extravasa a sensibilidade). Logo, nesta passagem, o númeno é definido como objecto fora de nós.

 

«Deve, portanto, haver certamente algo fora de nós a que corresponde esse fenómeno que chamamos matéria. Porém, na qualidade de fenómenos, não está fora de nós, mas simplesmente em nós, como um pensamento, se bem que esse pensamento o represente, pelo chamado sentido externo, como situado fora de nós.» ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 362; o bold é nosso).

 

O espaço não está fora de mim ( entendido o mim como união corpo físico-espírito): está sim, na sua quase totalidade, fora do meu corpo físico mas sempre dentro do balão infinitamente grande que é a minha sensibilidade envolvente do corpo físico, balão que engloba as nuvens, as estrelas, as galáxias, o céu e a terra:

 

«Simplesmente, o próprio espaço, com todos os seus fenómenos como representações, só existe em mim; mas, nesse espaço, contudo, é dado o real ou a matéria de todos os objectos da intuição externa, verdadeira e independentemente de toda a ficção; e é também impossível que, nesse espaço, seja dada qualquer coisa de exterior a nós (no sentido transcendental), porque o próprio espaço nada é fora da sensibilidade.» Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 354; o negrito é colocado por nós).

 

No Prefácio à Segunda Edição da "Crítica da Razão Pura" Kant refere uma coisa em si, distinta de mim, que terá de ser simultaneamente exterior a nós, ao menos em parte:

 

«A representação de algo permanente na existência não é idêntica à representação permanente, porque esta pode ser muito variável e mutável, como todas as nossas representações, mesmo as representações da matéria, e contudo refere-se a algo de permanente, que tem de ser uma coisa distinta de todas as representações e exterior a mim, cuja existência está incluída necessariamente na determinação da minha própria existência, constituindo com ela uma única experiência, que nem sequer poderia realizar-se internamente se não fosse (em parte) simultaneamente exterior. ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 33-34, nota; o bold é de nossa autoria).

 

QUANDO KANT AFIRMA QUE O NÚMENO PODE ESTAR DENTRO OU PODE ESTAR FORA, SER UM CORRELATO DA SENSIBILIDADE OU NÃO…

 

«O entendimento…pensa um objecto em si, mas apenas como um objecto transcendental que é causa do fenómeno (e por conseguinte não é, ele próprio fenómeno) mas que não pode ser pensado nem como grandeza, nem como realidade, nem como substância, etc (porque estes conceitos exigem sempre formas sensíveis em que determinam um objecto). É por isso que ignoramos totalmente se está dentro ou fora de nós e se seria anulado conjuntamente com a sensibilidade ou se, abolida esta, permaneceria. É-nos lícito, se quisermos, dar a esse objecto o nome de númeno, porque a sua representação não é sensível.» ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 291; o bold é de nossa autoria).

 

Nesta passagem, uma vez mais se afirma o objecto númeno como causa de um fenómeno. Contudo, já não se postula categoricamente «deve existir fora de nós um objecto» mas deixa-se na indeterminação o «lugar» ideal do númeno: dentro ou fora.

 

E QUANDO KANT AFIRMA A IMPOSSIBILIDADE DE EXISTÊNCIA DO NÚMENO…

 

Do ponto de vista da sensibilidade, o númeno não existe, pura e simplesmente. Adoptando este ponto de vista, Kant produz os seguintes excertos:

 

«O conceito de um númeno é, pois, um conceito-limite para cercear a pretensão da sensibilidade e, portanto, para uso simplesmente negativo. Mas nem por isso é uma ficção arbitrária, pelo contrário, encadeia-se com a limitação da sensibilidade, sem todavia poder estabelecer algo de positivo fora do âmbito desta.»

«A divisão dos objectos em fenómenos e númenos, e do mundo em mundo dos sentidos e mundo do entendimento, não pode pois ser aceite (em sentido positivo), embora os conceitos admitam, sem dúvida, a divisão em conceitos sensíveis e conceitos intelectuais, porque não é possível determinar um objecto para os últimos, nem considerá-los objectivamente válidos

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 270-271).

 

Nesta passagem, Kant afirma a irrealidade do númeno.

 

«Não se pode também considerar que esse objecto seria o númeno, pois este significa afinal, o conceito problemático de um objecto para uma intuição e um entendimento totalmente diferente dos nossos e é, por conseguinte, ele próprio um problema. O conceito de um númeno não é, pois, o conceito de um objecto, mas uma tarefa inevitavelmente vinculada à limitação da nossa sensibilidade: a de saber se não haverá objectos completamente independentes desta intuição da sensibilidade, questão esta que só pode ter resposta indeterminada…» (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 291).

 

Há aqui uma contradição com as passagens citadas acima que descrevem o númeno como objecto.

O problema de Kant é o da sua oscilação permanente, ambígua, entre a realidade e a irrealidade dos númenos, entre a intuição inteligível do entendimento, que situa o númeno fora de nós (e às vezes dentro) e a intuição sensível que situa o númeno em parte nenhuma, isto é, suprime-o. Assim, há dois centros de gravidade na definição problemática de númeno: o entendimento-razão e a sensibilidade. A definição não sai clara nos seus contornos, mas algo confusa como as imagens de duas fotografias de objectos diferentes sobrepostas.

 

IDEALISMO DOGMÁTICO E IDEALISMO CÉPTICO, UMA CONFUSÃO DE KANT

 

As confusões de Kant, a par do brilhantismo de várias das suas definições e conceitos, abundam na "Crítica da Razão Pura" .

 

«O idealista dogmático seria aquele que nega a existência da matéria, o idealista céptico aquele que a põe em dúvida. O primeiro pode apenas ser idealista, porque julga encontrar contradições na possibilidade de uma matéria em geral, e com este não temos por agora nada a fazer. (...…) O idealista céptico, porém, que ataca o princípio da nossa afirmação e considera insuficiente a nossa convicção da existência da matéria, que nós julgamos fundar sobre a percepção imediata, é um benfeitor da razão humana, na medida em que nos obriga a abrir bem os olhos nos mais pequenos passos da experiência comum e a não aceitar imediatamente, como posse bem adquirida, aquilo que talvez tenhamos apenas obtido por surpresa. (...…) Portanto, o idealismo céptico obriga-nos a recorrer ao único refúgio que nos resta, a saber, à idealidade de todos os fenómenos, idealidade que tínhamos demonstrado na Estética Transcendental, independentemente destas consequências que então não podíamos prever».

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 355-357, nota).

 

Há nestas definições um erro de Kant: um céptico é um céptico, um idealista é um idealista. Não existe idealismo céptico. Todo o idealismo é dogmático, ainda que na sua génese haja um cepticismo instantâneo ("Duvido da realidade da matéria em si mesma") que se dilui na passagem ao dogma da idealidade/irrealidade da matéria. A definição correcta de idealismo é: teoria que reduz toda a realidade a ideias e percepções sensíveis, existentes quer dentro quer fora das consciências humanas. E o que Kant pretende designar por idealismo céptico não é mais que o fenomenismo de Hume ou seja, idealismo, porque nega a materialidade do mundo exterior .

 

Idealismo dogmático e idealismo céptico são expressões que designam a mesma coisa. Falta a Kant a clareza absoluta na distinção.

 

O OBJECTO TRANSCENDENTAL QUE, ORA É NÚMENO, ORA DEIXA DE SER…

 

De um modo geral, Kant identifica númeno e objecto transcendental.

 

«O objecto transcendental, que está na base dos fenómenos externos, tanto como aquele que serve de fundamento à intuição interna, não é, em si, nem matéria, nem um ser pensante, mas um fundamento que nos é desconhecido, dos fenómenos que nos fornecem o conceito empírico, tanto da primeira como da segunda espécie.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 357, nota).

 

Mas, numa das suas inflexões para os gelos da confusão de conceitos, distingue-os:

 

«O objecto a que reporto o fenómeno em geral é o objecto transcendental, isto é, o pensamento completamente indeterminado de algo em geral. Este objecto não se pode chamar o númeno pois dele não sei nada do que é em si e dele não possuo nenhum conceito, que não seja o de um objecto de uma intuição sensível em geral, que, portanto, é idêntico para todos os fenómenos. Não posso pensá-lo mediante categorias, pois estas só valem para a intuição empírica a fim de reconduzirem a um conceito do objecto em geral.»

 

É mais um erro de Kant.

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Quinta-feira, 15 de Novembro de 2007
Representação e tempo, em Levinas

Para Levinas, a representação, isto é, o conhecimento empírico («A paisagem que vejo, a música de Bach que ouço») e empírico-racional (exemplo: «A conceptualização da pele da pessoa que vejo, da  circulação de fluido nos vasos sanguíneos e a caveira que imagino que tem dentro») dá-se no instante presente, fora do tempo, utilizando a memória de experiências passadas.

 

 « A representação é a espontaneidade pura, embora aquém de toda a actividade. De maneira que a exterioridade do objecto representado se apresenta à reflexão como o sentido que o sujeito representante empresta a um objecto, ele próprio redutível a uma obra de pensamento.» (Emmanuel Levinas, Totalidade e Infinito, Edições 70, Lisboa, 1988, pag. 110).

 

 «No próprio momento da representação, o eu não é marcado pelo passado, mas utiliza-o como um elemento representado e objectivo. Ilusão? Ignorância das suas próprias implicações? A representação é a força de uma tal ilusão e de tais esquecimentos. A representação é puro presente. A posição de um puro presente sem ligação, mesmo tangencial com o tempo, é a maravilha da representação. Vazio do tempo que se interpreta como eternidade. E, certamente, o eu que conduz os seus pensamentos devém (ou, mais exactamente, envelhece) no tempo em que se desenrolam os seus pensamentos sucessivos, através dos quais pensa no presente. Mas o devir no tempo não aparece no plano da representação: a representação não comporta nenhuma passividade. O Mesmo que se refere ao Outro rejeita o que é exterior ao seu próprio instante, à sua própria identidade, para reencontrar no instante, que a nada se deve – pura gratuidade – tudo o que tinha sido rejeitado, como «sentido emprestado», como noema.» (ibid, pag110).

 

 Assim, para Levinas, a representação actual - o que vejo, sinto, sem pensar, neste mesmo instante- encontra-se fora do tempo, na medida em que está «isenta» de sucessão de momentos, oferece-me a plena realidade. O tempo surge então como reflexão, pensamento. É muito discutível. Aparentemente, Levinas substituiu no dualismo de Bergson - o espaço exterior, quantidade pura / o tempo interior, qualidade pura - o espaço e os corpos materiais nele inscritos pela representação. Ou no triadismo de Platão, substitui o mundo superior das ideias pela representação, imóvel, pura, separada do mundo do Semelhante, onde o tempo e os movimentos dos astros subsistem.

 

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