O exame nacional de filosofia, prova 714 /1ª fase, de 15 de Junho de 2016, apresenta inconsistências na formulação das questões de escolha múltipla, que pedem selecionar uma só «resposta correta» de entre quatro hipóteses, a exemplo de outros anos. Vejamos alguns exemplos extraídos da versão 1 da prova.
GRUPO I
5. Considere as frases seguintes.
1. O italiano é a língua oficial da Itália.
2. Todos os sólidos ocupam espaço.
É correcto afirmar que:
(A) ambas exprimem conhecimento a priori.
(B) ambas exprimem conhecimento a posteriori.
(C) 1 exprime conhecimento a priori, 2 exprime conhecimento a posteriori.
(D) 1 exprime conhecimento a posteriori, 2 exprime conhecimento a priori.
Nota: A Grelha de correção oficial diz ser a resposta D a única correta.
Crítica: Não há resposta absolutamente objectiva e única a esta questão. É erróneo dizer que só uma destas hipóteses é correta e as outras erradas. Um empirista puro, como David Hume, dirá que todo o conhecimento é a posteriori e subscreveria como certa a hipótese B: na verdade, saber o que é a Itália implica um conhecimento proveniente da experiência, isto é a posteriori, exige ver o mapa do país com a forma de bota e ver imagens de Roma, Florença, Veneza, etc. E o facto de o italiano ser a língua da Itália é extraído da experiência porque, por hipótese, poderia ser a língua latim ou a língua inglesa o idioma oficial da Itália. De igual modo, um tal empirista puro diria que só pela observação a posteriori de cubos, esferas e outros sólidos se conclui que estes ocupam espaço.
Um empiro inatista - ou empiro-racionalista - como Kant diria que a hipótese D é a correcta: um juízo que fala da Itália, país que é um fenómeno, um objecto empírico, é a posteriori mas um juízo de geometria pura como «todos os sólidos ocupam espaço» é a priori, formado pelo entendimento puro sem recurso às sensações, ao ver ou tocar esferas ou cubos físicos, palpáveis, recorrendo apenas à intuição pura de espaço e de figuras geométricas. Os autores do exame considera, correta esta última resposta D
Vejamos outra questão.
6. Suponha que um vendedor incentiva um cliente a comprar um telemóvel nos seguintes termos.
«Eu, no seu caso, comprava este telemóvel. Pode parecer um pouco caro, mas os seus colegas vão de certeza ficar cheio de inveja, pois este modelo não está ao alcance de qualquer um e é o escolhido por pessoas que já têm um certo estatuto. Assim, até vai atender as chamadas dos seus amigos com mais gosto».
Este discurso é uma tentativa de
(A) persuasão racional, pois são apresentadas razões que permitem uma avaliação objetiva do produto.
(B) persuasão por meio de manipulação, pois pretende-se convencer apelando unicamente às emoções.
(C) persuasão racional, pois os factos apresentados nas premissas são evidentes e todos os reconhecem.
(D) persuasão por meio de manipulação, pois incentiva as pessoas a consumirem bens dispensáveis.
Nota: A Grelha de correção oficial diz ser a resposta B a única correta
Crítica: Há duas respostas corretas e não apenas uma como pretendem os autores do exame: a B e a D. Há, decerto, manipulação por via das emoções (vaidade, inveja) no texto do vendedor acima mas há igualmente um incentivo a consumir um bem dispensável, um telemóvel caro.
Passemos a outra questão.
7. Os relativistas acerca dos valores defendem que:
(A) a correção dos juízos de valor depende da cultura e, assim, o que é correto numa cultura pode não o ser noutra.
(B) todos os valores são relativos e, por isso, nenhum juízo de valor é correto ou incorreto.
(C) nenhuma cultura tem valores coincidentes com os valores de outra cultura.
(D) a correção dos juízos de valor depende inteiramente do que é aprovado nas sociedades mais evoluídas
Nota: A Grelha de correção oficial diz ser a resposta B a única correta.
Crítica: há duas respostas corretas, A e B, ainda que a A seja mais perfeita que a B. Esta última exprime a posição de uma parte dos relativistas, aquela que desemboca no ceticismo, no nivelamento igualitário de todas as culturas.
O que é o relativismo? É a doutrina que diz que a verdade, os valores variam de época a época, povo a povo, cultura a cultura, classe a classe social, etc. E é só isto. A alínea A da versão 1 (a correção dos juízos de valor depende da cultura e assim o que é correto numa cultura pode não o ser noutra) é a definição correcta de relativismo.
A alínea B (todos os valores são relativos e por isso nenhum juízo de valor é correto ou incorreto) mistura duas definições: relativismo e ceticismo.
Se eu digo «No mundo há democracias liberais, fascismos, ditaduras comunistas, os regimes políticos são relativos, mas eu acho que o melhor é a democracia» estou a ser relativista sem ceticismo, com dogmatismo, estou a diferenciar. A igreja católica romana que há séculos era absolutista («ninguém se salva fora da igreja de Roma») evoluiu para um relativismo diferencial, não cético; «Pode haver salvação no budismo ou no hinduísmo, as crenças em Deus são relativas às áreas geográficas, povos, etc., mas a melhor religião é a de Nosso Senhor Jesus Cristo centrada no Vaticano, nem todas valem o mesmo».
Ora este relativismo diferencial só está implícito na alínea A da versão 1, mas é negado pela alínea B.
Consideremos outra questão.
10. Kuhn considera que há períodos de consenso e períodos de divergência na comunidade científica. O fim de um período de consenso e a consequente entrada num período de divergência devem-se
(A) ao aprofundamento do paradigma.
(B) à acumulação de anomalias.
(C) à resolução de enigmas.
(D) à atitude crítica própria da ciência normal.
Nota: A Grelha de correção oficial diz ser a resposta B a única correta
Crítica: há duas respostas corretas, A e B, e não apenas uma, a B. Não é só a acumulação de anomalias o motor da mudança de paradigmas. O aprofundamento do paradigma - surgimento de novas ideias que completam e desenvolvem o paradigma vigente - é outra fonte da revolução científica e abre, quase sempre, um período de divergências entre os cientistas. A teoria da relatividade de Einstein não comporta, originalmente, a noção de matéria escura (buracos negros como portas de um multiverso) mas discípulos de Einstein como Roger Penrose e Stephen Hawking aprofundaram o paradigma, acrescentando-lhe o conceito de matéria negra. Há aqui acumulação de anomalias? Mas este aprofundamento do paradigma instalou a divergência no seio dos astro físicos: por exemplo, Alan Grants e Ted Woods, materialistas dialéticos, não aceitam que a relatividade einsteiniana implique o multiverso.
O MÉTODO DA DÚVIDA NÃO É MÉTODO CRÍTICO? PORQUÊ DIFERENCIÁ~LOS?
Na questão 2 do grupo IV, diz o seguinte:
Tanto Descartes como Popper consideram que a submissão das nossas crenças ou opiniões a um severo exame crítico é um aspecto central do método de procura da verdade. Porém, Descartes e Popper divergem quanto aos resultados da aplicação desses métodos.
Justifique as afirmações anteriores.
Na sua resposta explicite os aspectos relevantes do método defendido por Descartes e do método defendido por Popper.
A correção oficial desta prova diz o seguinte:
«Descartes recomenda o método da dúvida para procurar a verdade....
«Popper recomenda o método crítico para procurar a verdade...
Crítica minha: Esta nomenclatura é confusa. Então o método crítico de Popper não é um método da dúvida? Claro que é...A crítica pressupõe a dúvida e o dogma que sobrevive às dúvidas. E o método de Descartes não é um método crítico já que pressupõe a dúvida metódica e afirma dogmas como «Eu penso, logo existo», «Se em vez de um Deus verdadeiro existisse um génio maligno que me enganasse em tudo, eu não conheceria que o mundo é verdadeiro e de que modo o é» ? É óbvio que é...
Os autores desta prova de exame carecem de um verdadeiro pensamento de síntese, padecem de racionalidade fragmentária, isto é, de «ver a árvore e não ver a floresta». Estranho é que se repitam sempre os mesmos erros na concepção da prova de exame nacional de filosofia, erros que temos denunciado aqui em anos sucessivos.
Doutoramentos e mestrados em filosofia não dão garantias de pensamento correcto e criador. A docência universitária em filosofia, pública ou privada, está dominada por pequenos pensadores inflacionados socialmente pela retórica e a burocracia que confere títulos. A universidade é uma instituição de massas, onde o erro e uma certa mediocridade se infiltram, não é a cúpula do pensamento mais elevado.
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O mediático tradutor e autor de manuais escolares de filosofia, o luso-brasileiro Desidério Murcho, no seu recente livro "Filosofia em directo", posto à venda em conjunto com a edição do jornal «Público» de 27 de Janeiro de 2011, explana em 96 páginas o que entende ser a natureza e os problemas da filosofia. O livrinho divide-se em nove capítulos: 1. Democracia; 2. Liberdade; 3. Autonomia; 4. Valor; 5. Sentido; 6.Realidade; 7. Contingência; 8. Raciocínio; 9. Verdade.
O livro é pouco esclarecedor sobre o que é a filosofia. Ausência de um quadro geral de referência à ontognoseologia e suas correntes fundamentais: realismo, idealismo, fenomenologia. Desidério evita a rocha de contornos bem marcados destas definições.. Não é o seu forte. Ausência de referência aos grandes contributos trazidos pelo rio da tradição filosófica: a matematização do mundo na filosofia pitagórica e galilaica; a formalização arquetípica do mundo nas filosofias de Platão, Aristóteles e da escolástica; a racionalização do mundo, em versão idealista de Kant, e em versão realista de Hegel e Marx; a sensorialização e insubstancialização do mundo por Hume, Mach, Avenarius, Russell, etc. Nada disto nos é referido. Sempre a velha preocupação de Desidério Murcho que faz lembrar os historiadores revisionistas que eliminam factos históricos: apagar a tradição filosófica, a filosofia que jorrou até nós pelas escadarias dos séculos, desde a Antiguidade.
PROCLAMAR O CEPTICISMO E APLICAR O MAIS ESTREITO DOGMATISMO
Analisemos, com exemplos, o tipo de argumentação desenvolvida por DM neste livro:
«Evolução
«Quem tiver a ideia de que a evolução biológica seria o fundamento do valor, comete igualmente dois erros. Primeiro, considera erradamente que o facto de termos certas preferências, explicáveis em termos de selecção natural, é razão suficiente para as aceitar. Isto é uma incompreensão dupla. Por um lado, as nossas preferências não são harmoniosas: temos de raciocinar arduamente para decidir entre elas - a evolução não decide por nós, qual Deus benevolente. Por outro, a origem biológica de uma preferência não lhe dá uma prerrogativa especial - a vontade que uma pessoa tem de fazer sexo com outra é obviamente biológica, mas nem por isso a outra está obrigada a aceitar.»
«Em segundo lugar, quem põe a teoria da evolução no lugar ocupado pelo Deus judaico-cristão, comete o erro biológico de crer que a evolução tem uma direcção ou propósito; nós teríamos então o dever de obedecer a este propósito da evolução, como se fosse um Deus. Mas a evolução biológica não tem qualquer propósito ou direcção. E, mesmo que o tivesse, daí não se concluiria que teríamos o dever de lhe obedecer. » (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 48, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).
Em primeiro lugar, Desidério não distingue, com clareza, valor, de preferência. O valor é um farol e a preferência um caminhar para esse farol.
Em segundo lugar, o facto de que «as nossas preferências não são harmoniosas: temos de raciocinar arduamente para decidir entre elas» não invalida que possa haver um pólo dominante na génese dos valores- e que esse polo seja a constituição biológica- e pólos dominados - a sociedade, a consciência moral e religiosa, etc. Também a teoria psicanalítica de Freud considera uma fonte genética dos valores, o id ou infra-ego, com o princípio do prazer, sem embargo dos conflitos que o super-ego, portador dos valores sociais, vindos de fora do indivíduo, causa ao reprimir o id. Em suma, a desarmonia entre as preferências de valores não impede que a génese destes possa estar no instinto biológico. O argumento de que «a vontade que uma pessoa tem de fazer sexo com outra é obviamente biológica, mas nem por isso a outra está obrigada a aceitar.» é confuso, falacioso porque não se cinge ao conflito de preferências no seio do mesmo indivíduo mas recorre a uma vontade externa, a de outro.
Em terceiro lugar, Desidério Murcho, calçando as botas ferradas de um dogmatismo pouco filosófico, define a sua posição eliminando as outras, sem argumentar com fundamento. Ele opõe-se ao vitalismo ou ao biologismo teleológico, com uma petição de princípio: «a evolução biológica não tem qualquer propósito ou direcção porque é um substituto para a ideia de Deus.»
Falta demonstrar esta afirmação metafísica. A virtude filosófica de Desidério, se a possuir, e não fôr um sectário de uma corrente parcelar, deveria ter a humildade de apresentar as duas teses que se opõem nesta matéria delicada e brumosa.
Poderia ter a liberalidade de citar, por exemplo, Bergson, que defende finalidade na evolução biológica:
«Em resumo, se nos exprimíssemos em termos de finalidade, diríamos que a consciência, depois de ter sido obrigada, para se libertar a si própria, a cindir a organização em duas partes complementares, vegetais e animais, procurou uma saída na dupla direcção do instinto e da inteligência. Não a encontrou com o instinto, e não a obteve, do lado da inteligência, senão através de um salto brusco do animal ao homem. De forma que, em última análise, o homem constituiria a razão de ser de toda a organização da vida no nosso planeta.» (Henri Bergson, A evolução criadora, pag 169, Edições 70).
Mas o mesmo tradutor que afirma que não há qualquer finalidade na evolução biológica contradiz-se ao escrever:
«Como sabemos então que sabemos seja o que for? Se estamos a perguntar como podemos garantir que sabemos quando cremos que sabemos, a resposta simples é nunca. Mas se raciocinarmos de maneira cuidadosa, podemos - cooperando cognitivamente com os nossos semelhantes - tomar medidas que diminuam o erro e aumentem o acerto.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 88, Fundação Francisco Manuel dos Santos).
Há uma evidente inconsistência entre esta posição céptica e a posição dogmática acima expressa na tese de que «não há qualquer finalidade ou direcção na evolução biológica e esta não é a fonte dos valores». Se afirma que nunca podemos ter a certeza de nada, como pode garantir que estão errados os que sustentam que a vida orgânica é dotada de sentido e finalidades? É nesta caldeira de incoerência que ferve o pensamento de Murcho.
UMA PSEUDO-REFUTAÇÃO DO IDEALISMO
Visando refutar o idealismo ontológico material e o cepticismo de que deriva, escreve DM:
«Declarar que todas as nossas convicções são ilusórias, precisamente porque não podemos excluir a hipótese do sonho, é fazer duas confusões.»
«Primeiro, não pode ser verdadeiro que todas as nossas convicções são ilusórias, porque nesse caso também a convicção de que todas as convicções são ilusórias seria ilusória; e se esta convicção for ilusória, então as outras convicções não serão ilusórias.Por outro lado, se insistimos que só esta convicção não é ilusória, teríamos de explicar o seu carácter de excepção. Se estamos convictos de que todas as nossas convicções são ilusórias, não é coerente estar convicto de que essa convicção em particular não é ilusória.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 70, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).
O idealismo material e o cepticismo não afirmam que todas as certezas são ilusórias: a ilusão é o carácter de quase todas, excepto o dogma base de que a realidade material é ilusória (idealismo) ou duvidosa (cepticismo). Desidério Murcho classifica de incoerência esta dualidade que, no fundo, é a dualidade observador-observado, máquina fotográfica/ fotos da paisagem. Não há nenhuma incoerência na doutrina idealista, ao nível racional: não há que explicar o carácter dogmático de excepção da tese «tenho a certeza de que toda a matéria e os entes dela formados são ilusão». É um axioma. Corresponde à divisão sujeito-objecto, que continua a existir no idealismo: o objecto material é aparência, o eu psico-espiritual é a realidade. O eu cognoscente é real para os idealistas, os entes materiais são ilusões, percepções corpóreas tridimensionais. Logo, não é possível aplicar os mesmos critérios de certeza e ilusão a estes dois níveis ontológicos.
A essência íntima das coisas é inexplicável: a explicação é sempre uma articulação de entidades em si mesmas incognoscíveis, no todo ou em parte. A pretensão de DM explicar tudo é anti filosófica: é um desvio logicista. Há mais mundo para além da lógica e da retórica. O inexprimível, o inefável, o alógico, existem. Há um intuir originário que está para além do "explicar", intuir esse que compreende mas não discursa, não explica. Lao Tse dizia: «Aquele que fala não sabe/ Aquele que sabe não fala.» Desidério raciocina mecanicamente na base do «8 ou 80», sem meio termo. Exige que, se há convicções ilusórias, todas as convicções sejam ilusórias - é a falácia da composição. O pensamento de Desidério é excessivamente linear, de superfície. Falta-lhe profundidade.
A CONFUSÃO SOBRE O QUE É VERDADE E SOBRE O QUE É CONHECIMENTO
Os equívocos de Desidério estendem-se às noções de verdade e conhecimento:
«Em suma, a verdade não é o mesmo que verificação ou confirmação. E também não é uma adequação entre o pensamento e a realidade, se por adequação entendermos uma cópia. A verdade é o que ocorre quando as nossas convicções representam correctamente a realidade. Nunca temos maneira de garantir a correcção da representação, mas nada se conclui daí excepto a nossa falibilidade. E o que torna as nossas representações verdadeiras ou falsas é a realidade.»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 94, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é de minha autoria).
A verificação é o acto de encontro com a verdade. Portanto não é exacto dizer que verdade não é o mesmo que verificação: enquanto acto de descoberta (aletheia) a verdade coincide com a verificação, que é o abrir da verdade; enquanto objecto em si, interno ou externo, a verdade é diferente da verificação, do mesmo modo que actualização (passagem da potência ao acto) difere de acto.
Ademais, não é apenas a realidade que torna as nossas representações verdadeiras ou falsas: é também o aparelho interno cognoscente, isto é, os nossos orgãos dos sentidos e a nossa inteligência. Um cego não pode ver a relva verde que a realidade da paisagem diante de si lhe oferece.
Sobre o conhecimento, escreve:
«Quando confusamente se fala de conhecimento falso, o que está em causa é falar de algo que parece conhecimento, mas não é; e do mesmo modo que o dinheiro falso não é dinheiro, também o conhecimento falso não é conhecimento. Consequentemente, se a Terra não está imóvel, nunca se pôde saber que a Terra estava imóvel - apesar de muita gente ter tido a convicção de que sabia tal coisa.».»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 81, Fundação Francisco Manuel dos Santos).
Ao contrário do que afirma DM, dinheiro falso é dinheiro... sem validade legal. Certamente, no século XII, a generalidade das pessoas não conhecia, intelectual ou científicamente, que a Terra estava imóvel - conhecia, sensorialmente, a imobilidade da Terra - mas conhecia a teoria de que a Terra é imóvel. Mas hoje ninguém conhece factualmente que a Terra se move - para conhecer é preciso vê-la a mover-se. Hoje conhece-se, intelectualmente - um conhecimento indirecto, susceptível de dúvida - que a Terra gira em torno do seu eixo ao mesmo tempo que gira em volta do Sol. E nada impede que esta teoria seja falsificada, desmentida no futuro. Desidério Murcho fala como se a verdade nesta matéria estivesse conquistada de uma vez por todas. Não está.
Há, de facto, um conhecimento de verdades e de falsidades. O conhecimento não é apenas uma relação entre o sujeito e o objecto exterior, factivo ou factual. Não é apenas um conhecimento de verdades. É também uma relação entre a mente percepcionante e a representação (imagem sensorial, ideia, juízo) que nela se forma.
O conhecimento tem duas vertentes: a objectiva, isto é, a do referente ou objecto a conhecer; a subjectiva, isto é, a do símbolo, representação do objecto. O conhecimento do átomo ou dos quarks e leptões - exceptuando os átomos maiores, visíveis a microscópio - é a relação da mente com uma imagem conceptual nela elaborada. Parece que Desidério não questiona a existência de leptões. Ele respeita, venera a ciência instituída. Mas e se os leptões não existirem? Ser-se-á forçado a dizer que não havia conhecimento dos leptões, foi tudo uma fantasia. De facto, não se conheciam os leptões mas um conceito símbolo de tais supostas entidades.
É ERRADO O RACIOCÍNIO QUE SE AFASTA DO ÓBVIO?
DM escreve ainda:
«Erramos ao raciocinar sobretudo quando nos afastamos do óbvio e do simples. Quem não sabe raciocinar proficientemente, não vê o que há de errado com o raciocínio "Há uma causa de todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa" , mas facilmente vê o erro do raciocínio "Há uma mãe de todas as pessoas porque todas as pessoas têm uma mãe". (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 85, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).
De facto, há vezes em que erramos no raciocínio ao afastarmo-nos do óbvio e do simples - por exemplo, é óbvio o raciocínio que diz´«Vacinar é infectar o sangue com vírus e toxinas, logo vacinar é mau para a saúde» . Mas há muitas outras vezes em que geramos um raciocínio profundo, ao afastar-nos daquilo que é óbvio ao senso comum. A teoria da relatividade de Einstein, contra o óbvio da teoria do espaço tridimensional feito de linhas rectas e planos, sustenta que o espaço é ondulatório, irregular, e encurva na proximidade de grandes massas.
ANDAMOS SÉCULOS A SUBSTITUIR O RACIOCÍNIO POR DEUS, PELA AUTORIDADE OU PELA OBSERVAÇÃO?
DM escreve ainda, como se tivesse descoberto o santo Graal da filosofia:
«O raciocínio está no centro da estrutura epistémica de seres falíveis. No entanto, a tentação ao longo dos séculos tem sido fingir que podemos abandonar o raciocínio paciente envolvido nos controlos e ajudas permanentes, substituindo-o por Deus, pela Autoridade ou pela Observação ou Experimentação. Mas não há fuga do raciocínio porque mesmo que Deus ou alguma autoridade nos fale, temos de raciocinar para concluir com base na observação ou na experimentação. E no raciocínio, como em tudo o resto, podemos cometer erros, porque somos falíveis.»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 84, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).
Não faz sentido dizer que só o raciocínio está no centro da nossa estrutura epistémica. O centro do processo de conhecimento é triplo: raciocínio, intuição inteligível e intuição sensível. Que é o raciocínio sem a intuição inteligível? Um esqueleto descarnado. As intuições inteligíveis de números 3,7,8 e 18 é que permitem estruturar o seguinte raciocínio: « Se 3 adicionado de 7 perfaz 10, e dez adicionado de 8 dá 18, então 3 mais 7 mais 8 tem como resultado 18».
O raciocínio aristotélico «Há dois princípios, a forma e a matéria-prima, logo a combinação dos dois produz o composto, o ente individual» necessita previamente das intuições, inteligíveis ou sensíveis, de forma, matéria, composto, ente, indivíduo. O raciocínio sem as intuições ou conceitos que o musculam é vazio, é uma estrutura formal sem conteúdos. Há raciocínios metafísicos, antimetafísicos, etc, formalmente correctos que não conduzem necessáriamente à certeza. Porque esta só as intuições, sensíveis ou não, a fornecem. Ora o que DM faz é desprezar o papel fulcral da intuição inteligível (ideia, conceito) e ignorar o carácter alógico desta.
Quanto mais fala em raciocínio,menos DM raciocina! Quanto mais brande a espada da lógica e do falibilismo, menos pensa!
A DISTINÇÃO SUBJECTIVO-OBJECTIVO NÃO EXISTE? EXISTE, EM UM SENTIDO, NÃO EXISTE, EM OUTRO
DM sustenta ainda que subjectividade e objectividade não se distinguem, afirmando, com razão, que o que é subjectivo não é necessariamente errado ou incorrecto:
«Tal como o consenso não implica a verdade, também a ausência de consenso não implica que o que está em causa é meramente subjectivo»(...)
«A distinção entre objectividade e a subjectividade esconde geralmente uma confusão: pensar que da dificuldade de chegar a consenso se conclui que nenhuma convicção é genuinamente verdadeira, no mesmo sentido em que as verdades objectivas o são. ».»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 93-94, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).
Há uma certa nuvem de confusão nesta argumentação.Desidério Murcho não define com precisão o que entende por subjectivo, parece não se aperceber do desdobramento de sentidos deste termo. A distinção subjectivo e objectivo não existe, de facto, quanto ao conteúdo substancial das nossas representações, isto é, objectivo e subjectivo não se distinguem epistemicamente - exemplo: eu posso estar perfeitamente certo, com toda a razão objectiva, ao defender, isolado, contra a «comunidade científica» que "a passagem de um planeta em 26º do signo de Sagitário causa, em regra, desaires para o PSD" - mas a distinção subjectivo-objectivo existe enquanto distinção numérica, por sim dizer, sociológica: o subjectivo é o pensamento singular, de um só indivíduo, o objectivo é o pensamento comum de muitos indivíduos.
É POSSÍVEL PROVAR QUE DEUS NÃO É O FUNDAMENTO DO DEVER? ARBITRÁRIO OPÕE-SE A RAZOÁVEL?
DM desenvolve ainda o seguinte raciocínio sofístico contra a ideia de Deus como fundamento do dever:
«Quem pensa que sem Deus, tudo seria permitido, considera que as nossas preferências não são suficientes para fundamentar o dever. Mas considera que as preferências de Deus o são. Interpretada literalmente, a ideia é implausível. Se a minha preferência, depois de passar pelo crivo do pensamento prudencial cuidadoso, não fundamenta o dever, a preferência de Deus ainda menos o poderia fazer. Se a minha preferência por beber água não me dá uma razão para beber água, a preferência de Deus não pode dar-me uma razão para a beber. Isto porque ou a preferência de Deus pela água é arbitrária, e nesse caso não me dá razão alguma para beber água precisamente por ser arbitrária, ou é razoável, e nesse caso é por ser razoável que me dá uma razão para beber água e não por ser uma preferência de Deus.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag. 44-45, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é colocado por mim).
Neste estilo "light", saltando de ramo em ramo na árvore da retórica do "bem falar", se desenvolve a vazia argumentação de Desidério Murcho. Por que razão Deus ou deuses não poderiam fundamentar o dever? Não é implausível haver deuses, embora seja indemonstrável, empiricamente falando. A natureza biocósmica não nos revela que haja Deus ou deuses mas não nos proibe de pensar que existam. Por que razão a preferência de Deus por eu beber água não pode ser razoável? Por que razão a razoabilidade não pode brotar do próprio Deus? Em Hegel, a ideia absoluta ou Deus é absolutamente racional, razoável, apesar de inicialmente arbitrária, encarna em natureza e nas leis biocósmicas desta. Pode Desidério refutar Hegel, de modo inquestionável e vencedor? Não pode. Na metafísica pura, ateus, teístas, panteístas e panenteístas terçam armas, isto é, argumentos, sem que se possa descortinar, objectivamente, quem tem razão.
Arbitrário opõe-se sempre a razoável? Não. É outra confusão de Desidério Murcho. Eu posso conduzir arbitráriamente um automóvel sem destino fixo, dormindo aqui ou acolá, mas isso é razoável pois não ultrapasso a velocidade de 90 quilómetros por hora e levo os documentos, o dinheiro e a roupa suficiente para realizar essa viagem de uma ou várias semanas. A máxima de cada indivíduo é arbitrária, segundo Kant: depende do livre arbítrio de cada um. Mas o facto de ser arbitrária - por exemplo, a máxima: «Divulga a toda a gente as virtudes medicinais das tisanas de tília, hipericão, erva de são roberto, malva e outras» é arbitrária, escolhi-a mas outros escolherão outras máximas - não impede que seja razoável. Razoável, isto é, racional, prudente e experimentado, opõe-se a irrazoável, não a arbitrário.
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