Johannes Hessen sustenta, erroneamente, que o idealismo não tem a intuição imediata do eu e afirma que esta está inerente ao realismo volitivo que derrotaria o idealismo. Escreveu:
«Frente ao idealismo, que pretendera fazer do homem um puro ser intelectual, o realismo volitivo chama a atenção sobre o lado volitivo do homem e sublinha que o homem é, em primeiro lugar, um ser de vontade e de ação. Quando o homem, no seu querer e desejar, tropeça com resistências, vive nestas, de um modo imediato, a realidade.»
«A nossa convicção da realidade do mundo exterior não descansa, pois, num raciocínio lógico, mas sim numa vivência imediata, numa experiência da vontade. Com isto, fica, com efeito, superado o idealismo.»
«Mas o idealismo fracassa também no problema da existência do nosso eu, da qual estamos certos por uma auto-intuição imediata. (...) Todo o idealismo fracassa, necessariamente, contra esta auto-certeza imediata do eu».
(Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, página 112; o bold é posto por nós).
Hessen fala como se fosse a vontade, mola do realismo volitivo, o orgão apreensor do eu. Mas a vontade é cega, funciona nos dois sentidos: tanto no sentido intuitivo, como no sentido contra-intuitivo, racional, tanto pode aperceber-se do eu como não se aperceber. Hessen está redondamente equivocado: todo o idealismo material parte do primado do eu que se descobre intuitivamente a si mesmo. A tese «ser é ser percebido» de George Berkeley é tanto intelectual como sensorial, isto é, o idealismo não é puramente intelectual: o mundo é o conjunto das percepções sensoriais formadas no meu eu e este apreende-se intuitivamente. Tanto Descartes (idealista provisório no início, realista crítico no final) como George Berkeley como Emanuel Kant partem do eu mental e espiritual como primeira certeza, anterior ao mundo dos objectos que é considerado como um aglomerado de sensações tácteis, visuais, olfactivas, sem autonomia própria. Kant fala na apercepção pura ou transcendental como base de todo o conhecimento, isto é, de um eu originário anterior à matéria não passando esta de representação, imagem, sensação. Só o idealismo de David Hume, fundador longínquo da filosofia analítica, coloca em dúvida a existência do eu afirmando que somos apenas um fluxo contínuo de percepções e ideias sem um substrato permanente. Dizer que o idealismo em geral não tem a intuição imediata do eu é um erro monumental.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Johannes Hessen sustentou que há diversas formas de realismo e coloca-as todas ao mesmo nível: realismo ingénuo, realismo natural, realismo crítico, realismo volitivo. Escreveu no seu célebre tratado de gnoseologia:
«Entendemos por realismo a posição epistemológica segundo a qual há coisas reais, independentes da consciência. Esta posição admite diversas modalidades. A primeira, tanto histórica como psicologicamente, é o realismo ingénuo. Este realismo não se acha ainda influenciado por nenhuma reflexão crítica acerca do conhecimento.» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, página 93; o bold é posto por nós).
E continua Hessen:
«Diferente do realismo ingénuo é o realismo natural. Este já não é ingénuo mas está influenciado por reflexões críticas sobre o conhecimento. Isto revela-se no facto de que já não identifica o conteúdo da percepção e o objecto, mas sim distingue um do outro.» (...)
«A terceira forma de realismo é o realismo crítico porque assenta em considerações de crítica ao conhecimento. O realismo crítico não acredita que convenham às coisas todas as propriedades inseridas nos conteúdos da percepção mas é, pelo contrário, da opinião que todas as propriedades ou qualidades das coisas que apreendemos só por um sentido, como as cores, os sons, os odores, os sabores, etc, existem unicamente na nossa consciência.» (Hessen, ibid, pag 94; o bold é posto por nós)
Finalmente, apresenta a quarta espécie de realismo, o realismo volitivo, que afirma que há mundo material fora de nós e que o percebemos pela nossa vontade de viver:
«Se fossemos puros seres intelectuais, não teríamos consciência alguma da realidade. Devemos exclusivamente esta à nossa vontade. As coisas opõem resistência às nossas volições e desejos, e nestas resistências vivemos a realidade das coisas. Estas apresentam-se à nossa consciência como reais, justamente porque se fazem sentir como factores adversos na nossa vida volitiva. A esta forma de realismo é costume chamar-se realismo volitivo. »
«O realismo volitivo é um produto da filosofia moderna. Encontramo-lo pela primeira vez no século XIX. Pode-se considerar como seu primeiro representante o filósofo francês MAINE DE BIRAN. O que depois mais se esforçou por o fundamentar e desenvolver foi GUILHERME DILTHEY.» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, página 101; o bold é posto por nós).
Esta seriação horizontal de modalidades do realismo, todas no mesmo plano, como se fossem extrínsecas entre si, contém um erro. O erro de Hessen consiste em misturar o género ontognoseológico, que engloba o realismo natural e o realismo crítico, com o género fonte ou motor do conhecimento ( quinesognoseológico, poderia dizer-se), que engloba volição versus representação (espelhamento). São dois planos, dois géneros diferentes: o do ser-conhecer e o do ser-originar. Na verdade, pode haver um realismo natural voltivo e um realismo natural representativo (que reflecte, como um espelho, a realidade exterior). A volição ou vontade de viver e assimilar o mundo pode estar subjacente às três formas de realismo, ingénuo, natural e crítico. Volitivo opõe-se a não voltivo, a representativo ou perceptivo.
Volição e inteleção só são contrárias como modalidades do género fontes do conhecimento. O nivelamento, isto é, a colocação das diversas entidades ao mesmo nível dentro do mesmo género implica exclusão mútua. A tese de Aristóteles de que cada coisa só tem um contrário é absolutamente errónea. Por exemplo, a espécie homem tem como contrárias as espécies elefante, leão, abelha, cavalo e uma infinidade de outras. Dentro de um mesmo género, as suas componentes (correntes, espécies) são extrínsecas entre si. Volição e inteleção são colaterais na relação com as correntes do realismo - a introdução de um terceiro elemento numa relação pode transformar os contrários em colaterais - isto é, podem coexistir na mesma modalidade de realismo. A classificação de Hessen é mais um exemplo da ignorância da dialética que sempre reinou entre os filósofos, em particular da lei dos géneros e das espécies que o autor deste blog formulou.
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