Quarta-feira, 18 de Setembro de 2019
Ontologia distingue-se de ontognosiologia?

 

Que diferenças há entre os conceitos de ontologia e ontognosiologia?

 

Na década de 90, enviei à Guimarães &Editores um ensaio sobre a ontognosiologia de Kant que a editora não publicou - creio ter sido o primeiro a usar este termo ao menos na língua portuguesa; um ou dois anos mais tarde constatei que Miguel Reale usava este termo «ontognosiologia de Kant» em publicação de Guimarães &Editores. Talvez tenha lido o meu ensaio e aproveitado o título...

 

O realismo, doutrina que postula que há um mundo de matéria real em si mesmo anterior à existência da humanidade e independente das mentes humanas, é uma corrente do género ontológico (respeitante ao ser: a matéria é ser, existe fora de nós) e simultaneamente é corrente do género gnosiológico (respeitante ao conhecer: conheço a matéria fora de mim).  Por isso ontognosiologia realista é um conceito com razão de ser. E ontognosiologia idealista, como é o caso da teoria de Kant, também é um conceito justificado. Considerei, no meu «Dicionário de Filosofia e Ontologia» que o género ontologia comporta quatro modalidades: realismo, idealismo, fenomenologia, objectualismo. Este último, como corrente que faz desaparecer o sujeito cognoscente, inserindo-o na matéria («Não há nada senão as coisas» dizia Sartre), é ontologia mas não ontognosiologia. Portanto, é possível distinguir ontognosiologia de ontologia sem embargo de se fundirem em diversos casos.

 

Mas onde inserir os conceitos de materialismo, espiritualismo e dualismo hilonoético? Na gnosiologia? Não. Não são ontologias? São. Para as distinguir de realismo-idealismo-fenomenologia- objectualismo, que são do género ontologia, coloquei-as no género ontologia principial porque o espírito/deuses é, para alguns, o começo de tudo e a matéria, no caos ou ordenada é, para outros, o começo de tudo.

 

Realismo não pode confundir-se com materialismo e idealismo não pode confundir-se com espiritualismo, confusões estas perfilhadas por Karl Marx e Vladimir Lenin. Este, chamava idealismo objectivo à visão realista e simultaneamente espiritualista do mundo, aos cristãos que acreditavam na matéria como real e em Deus. Há realistas (pessoas que crêem na realidade do mundo material) que são espiritualistas (crêem em Deus ou Deuses ou na consciência individual (alma) imortal) e há realistas que são materialistas (não crêem em Deus, Deuses nem em vida além da morte). 

 

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Quarta-feira, 12 de Junho de 2019
Hegel: clareza e obscuridade nos seus textos

 

Há teses de Hegel que são notáveis e compreensíveis na Fenomenologia do Espírito, como por exemplo a seguinte:

 

«O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se completa mediante o seu desenvolvimento. Do absoluto, há que dizer que é essencialmente resultado, que só no final é o que é de verdade, e em isso precisamente estriba a sua natureza, que é a de ser real, sujeito ou devir de si mesmo. »

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 16; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Hegel sustenta que no princípio está o Espírito, o mais universal de tudo. Adiciona ao teísmo da primeira fase do Espírito, o panteísmo da segunda fase (Deus é as árvores, os rios, as plantas e os animais «irracionais») e o panenteísmo da terceira fase (Deus é a humanidade nos seus diferentes povos e tipos de estado, de arte, de religião e de filosofia, evoluindo para a liberdade e ao mesmo tempo Deus é espírito puro, transcendente, no Além). O resultado acima referido é a terceira fase, a da humanidade, que resulta da união e síntese entre a fase de Deus pensante e a fase de Deus impensante, alienado em natureza física em corpos físicos.

 

Hegel fala de quatro etapas na fenomenologia do Espírito, isto é, nas sucessivas formas que este vai assumindo: consciência, autoconsciência, razão e espírito. Ponho reservas a esta divisão: a autoconsciência já é, em si mesma, razão. Hegel dá a seguinte definição de autoconsciência:

 

«Mas de facto, a autoconsciência é a reflexão, que desde o ser do mundo sensível e percebido, é essencialmente o retorno a partir do ser outro. Como autonsciência é movimento(....) A diferença não é, e a autoconsciência é somente a tautologia sem movimento do eu sou eu.»

 

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 108; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Fixemo-nos: quando Descartes intui «eu penso logo existo» isso é autoconsciência; quando Albert Camus infere que a vida humana é destituída de sentido pois não há Deus nem é possível garantir o triunfo perene da verdade e da justiça para toda a humanidade isso é autoconsciência.

 

Mas há numerosos parágrafos da Fenomenologia que são ambíguos devido às múltiplas divisões que ele introduz no mesmo conceito tipo bonecas russas Matrioska, umas dentro das outras. Veja-se  por exemplo, esta passagem em que se refere à substância ética:

 

«A substância é, deste modo, espírito, unidade autoconsciente do si mesmo e da essência; mas ambos têm também o significado da estranheza de um face ao outro. O espírito é consciência de uma realidade objectiva para si livre; mas a esta consciência se enfrenta àquela unidade do si mesmo e da essência, à consciência real se enfrenta a consciência pura. Por um lado, mediante a sua alienação,  a autoconsciência real passa ao mundo real e este retorna àquela; mas, por outro lado, superou-se precisamente esta realidade, a pessoa e a objectividade. Esta estranheza é a pura consciência ou essência

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 287; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Na primeira frase da citação acima a substância aparece como a unidade entre o si mesmo e a essência. Ora o que é o si mesmo senão o espírito do indivíduo? Neste caso, a essência terá de ser a objectividade, a realidade, o bem e o mal que se encontram fora da consciência. Mas na última frase da citação Hegel muda o significado de essência, que no início era lei exterior, realidade exterior para... consciência pura. Não bate certo.

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 108; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Estamos pois perante um exercício de sofística em que Hegel, sem embargo do seu brilhantismo, é pródigo.

 

AUTOCONSCIÊNCIA EM GERAL E AUTOCONSCIÊNCIA LIVRE, O PARADOXO DE "O SER SÓ PARA A CONSCIÊNCIA" SER SIMULTÂNEAMENTE "REAL EM SI MESMO"

 

Vejamos um entre muitos exemplos da falta de clareza, ou pelo menos da falta de concreção do pensamento de Hegel:

 

«A razão é a certeza da consciência de ser toda a realidade; de este modo exprime o idealismo o conceito da razão. Do mesmo modo que a consciência que surge como razão abriga de um modo geral imediato esta certeza, assim também o idealismo a exprime de modo imediato; eu sou eu, no sentido, no sentido de que o eu que é o meu objecto, é objecto com a consciência do não ser de qualquer outro objecto, é objecto único, é toda a realidade e toda a presença, e não como na autoconsciência em geral, nem tão pouco como na autoconsciência livre, já que ali é só um objecto vazio em geral e aqui somente um objecto que se retira dos outros que continuam a governar junto dele. Mas a autoconsciência só é toda a realidade não somente para si mas também em si ao devir esta realidade ou mais exactamente ao demonstrar-se como tal. E se demonstra assim no caminho pelo qual, primeiro no movimento dialétco da suposição, da percepção e do entendimento , o ser outro desaparece como em si, e logo no movimento que passa pela independência da consciência no senhorio e na servidão, pelo pensamento da liberdade, a libertação céptica e a luta da libertação absoluta da consciência desdobrada dentro de si, o ser outro enquanto é para ela, desaparece para ela mesma. Apareceriam sucessivamente dois lados, um em que a essência ou o verdadeiro tinha para a consciência a determinabilidade do ser e outro em que a sua determinabilidade era ser somente para elaMas ambos os lados se reduziam a uma verdade, a de que o que é ou o em si só é enquanto é para a consciência e o que é para ela é também em si

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 144; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

Percebe-se neste texto o que significa a tese de Hegel de que no idealismo «o ser outro desaparece como em si»: no idealismo material ou ontológico, a árvore, a casa ou o cão que em relação a mim são ser outro  que desaparecem em si, isto é, desaparecem como realidades independentes de mim, reduzem-se a simples ideias na minha mente que é o universo inteiro.  Mas Hegel não define o que é a autoconsciência livre - é o pensamento de alguns filósofos destacados do vulgo?- e em que se distingue da autoconsciência em geral - esta já sabemos ser reflexão e não absorção acrítica das percepções do mundo exterior.

 

A última frase do texto «Mas ambos os lados se reduziam a uma verdade, a de que o que é ou o em si só é enquanto é para a consciência e o que é para ela é também em si.» é em si mesma um paradoxo: Hegel começa por dizer que o que é ou existe só é para a consciência - posição do idealismo e da fenomenologia: a árvore que vejo só é real para a minha consciência - e depois contradiz-se ao dizer que o que existe para a consciência existe também em si mesmo, como realidade independente - posição do realismo: a árvore está fora da minha mente e subsiste quer eu a veja e pense ou não.

 

O ESPÍRITO, SUBSTÂNCIA ÉTICA, VERSUS A SUBSTÂNCIA QUE SÓ SURGE NELE QUANDO O ESPÍRITO AGE

 

Ideias que Hegel repete são a do desdobramento da consciência e a da luta entre a essência e a autoconsciência, entre o universal e o singular. Hegel define o espírito assim, ora identificando-o como substância ora diferenciando-o desta:

 

«Mas a essência que é em si e para si e que ao mesmo tempo é ela mesma real como consciência e se representa a si mesma é o espírito

«A sua essência espiritual já foi definida como a substância ética; mas o espírito é a realidade ética. É o si mesmo da consciência real, à qual se enfrenta, ou que mais precisamente se enfrenta a si mesma, como mundo real objectivo, o qual, sem embargo, perdeu para si mesmo toda a significação de algo estranho, do mesmo modo que o si mesmo perdeu toda a significação de um ser para si, separado, dependente ou independente de aquele.  O espírito é a substância e a essência universal, igual a si mesma e permanente - o inabalável e irredutível fundamento e ponto de partida do agir de todos - e o seu fim e a sua meta, como o em si  pensado de toda a autoconsciência».

 (G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pp. 259-260; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

Esta passagem, relativamente obscura - Como é que o si mesmo perdeu toda a significação de um ser para si? Refere-se a quando Deus se alienou em natureza física e deixou de pensar? -  está em contradição com a seguinte:

 

«Na sua verdade simples, o espírito é consciência e desdobra os seus momentos. A ação cinde-o em substância e em consciência da mesma, e cinde tanto a substância como a consciência. A substância, como essência universal e como fim, enfrenta-se consigo mesma como a realidade singularizada...»

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 261; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

A incoerência está em considerar o espírito como substância ética, depois como realidade ética e por último dizer que o espírito é apenas consciência e só a ação o cinde  em substância e consciência de esta. Substância era qualidade do espírito, eterno e imóvel, tese primeira, mas só surge quando o espírito se põe em ação e divide em substância e consciência, tese segunda. Há aqui imprecisão conceptual.

 

O espírito é o quarto degrau mas engloba os outros três degraus. Há aqui uma visão eclética, algo confusa: espírito é tomado em dois sentidos diferentes, ora como consciência em geral, mesmo não ética, ora como essência ética:

 

«Aqui, onde se põem o espírito ou a reflexão de estes momentos em si mesmos, a nossa reflexão a respeito deles pode recordá-los brevemente conforme a este lado; os ditos momentos eram a consciência, a autoconsciência e a razão. O espírito é pois consciência em geral, que abarca em si a certeza sensível, a percepção e o entendimento»

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 26o; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

Há falta de concreção no pensamento hegeliano, oscilações de vagueza em conceitos como essência, substância, ser em si, ser para si. Talvez por isso Schopenhauer classificasse Hegel de «charlatão», do mesmo modo que nós acusamos Heidegger de um certo grau de charlatanismo retórico em O Ser e o Tempo.

 

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Segunda-feira, 14 de Novembro de 2016
Fenomenalismo: equívocos de Johannes Hessen

 

Hessen sustenta que há um intermédio entre o realismo e o idealismo chamado fenomenalismo. E apresenta, equivocamente, Kant, como exemplo dessa corrente. Hessen escreveu:

 

«O fenomenalismo (de phaenomenon= fenómeno, aparência) é a teoria segundo a qual não conhecemos as coisas como são em si, mas como se nos apresentam. Para o fenomenalismo, há coisas reais mas não podemos conhecer a sua essência. Só podemos saber «que» as coisas são, mas não «o que» são. O fenomenalismo coincide com o realismo quando admite coisas reais; mas coincide com o idealismo quando limita o conhecimento à consciência, ao mundo da aparência, do que resulta imediatamente a impossibilidade de conhecer as coisas em si» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, páginas 108-109; o bold é posto por nós)

 

A definição de fenomenalismo dada acima viola o princípio da não contradição, não se pode ser realista e idealista em simultâneo no mesmo aspecto: para Hessen, no fenomenalismo, a matéria é real, as coisas são reais (isto é exterior à mente; realismo) e o conhecimento é limitado à consciência(e isto, diz ele, é.. idealismo). Mas esta última posição não é idealismo, ao contrário do que afirma Hessen. É realismo crítico, porque a matéria está lá, existe de facto, embora oculta por um «vidro fosco».

 

E quanto a Kant, este nunca afirmou que a matéria é real, ao contrário do que pensava Hessen e do que pensam os catedráticos de filosofia actuais. Kant escreveu:

 

«Devíamo-nos, contudo, lembrar de que os corpos não são objectos em si, que nos estejam presentes, mas uma simples manifestação fenoménica, sabe-se lá de que objecto desconhecido; de que o movimento não é efeito de uma causa desconhecida, mas unicamente a manifestação fenoménica da sua influência sobre os nossos sentidos; de que, por consequência, estas duas coisas não são algo fora de nós, mas apenas representações em nós; de que, portanto, não é o movimento da matéria que produz em nós representações, mas que ele próprio (e portanto também a matéria que se torna, assim, cognoscível) é mera representação.» (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, nota de rodapé das pags 363-364: o bold é nosso).

 

A Hessen passou despercebido o carácter idealista da doutrina de Kant quando escreveu:

 

«Desta maneira, não temos já perante nós a coisa em si, mas a coisa como se nos apresenta, ou seja o fenómeno.»

«Isto é, em breves palavras, a teoria do fenomenalismo, na forma como foi desenvolvida por Kant. O seu conteúdo essencial pode resumir-se a três proposições: 1. A coisa em si é incognoscível. 2. O nosso conhecimento permanece limitado ao mundo fenoménico. 3. Este surge na nossa consciência porque ordenamos e elaboramos o material sensível em relação às formas a priori da intuição e do entendimento.» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, páginas 110-111; o bold é posto por nós).

 

Neste texto acima, não há nem uma palavra sobre a natureza da matéria física, se é real ou irreal, que é aquilo que distingue realismo de idealismo.

 

Fenomenalismo não é uma posição ontológica, como realismo e idealismo. É uma posição gnoseológica. Não é, portanto, um intermédio de realismo e idealismo mas uma corrente ou qualidade colateral adicionável a qualquer uma delas. Em termos metafóricos: se idealismo e realismo produzem juízos sobre a existência da cadeira «que está ali», fenomenalismo é a cortina que oculta ou desvela a cadeira. Há o ser (realismo, idealismo) e o ver (fenomenalismo/ naturalismo). Há um fenomenalismo realista - o realismo crítico de Descartes, por exemplo, a matéria é exterior mas não tem peso, nem cor, nem grau de dureza, nem cheiro, etc. - e um fenomenalismo idealista - o idealismo transcendental de Kant, a matéria é ilusão dentro da sensibilidade, os númenos não são matéria. Há ainda um fenomenalismo céptico - a fenomenologia de Heidegger que,  apesar de formular o conceitos de ser e ser-aí e de mundo, não se decide sobre a realidade da matéria.

 

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Sexta-feira, 18 de Março de 2016
Teste de Filosofia do 11º ano, turma C (Março de 2016)

 

Eis um teste de filosofia fora do estereótipo dos testes que os autores dos manuais escolares da Porto Editora, Leya, Santillana, Areal Editores, etc, divulgam. E sem questões de escolha múltipla que, frequentemente, são incorrectamente concebidas por quem não domína o método dialético e desliza para a horizontalidade da filosofia analítica vulgar.

 

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja

Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja

TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA C

14 de Março de 2016. Professor: Francisco Queiroz.

 I

 “Bachelard afirma que «a opinião não pensa, traduz necessidades em conhecimentos» e que «na ciência nada é dado». A ciência normal e a ciência extraordinária, segundo Kuhn, são paradigmas incomensuráveis. Feyerabend, anarquista epistemológico, sustentou que, hoje, com o racionalismo fragmentário dominante, mera ideologia, « temos uma religião sem ontologia, uma arte sem conteúdos, e uma ciência sem sentido».."

1)Explique, concretamente este texto

 

2)Explique como, na ontognoseologia de Kant, se formam o fenómeno CHUVA e o juízo a priori «Os três ângulos internos de um triângulo somam 180 graus».

 

3) Relacione, justificando:

A) Positivismo lógico do círculo de Viena, por um lado, e falsificacionismo de Karl Popper, por outro lado .


B) Internalismo e externalismo nas Ciências Empírico-Formais e nas Ciências Hermenêuticas.


C) Núcleo Duro e Cinto Protector na teoria de Lakatos sobre a ciência e obstáculo epistemológico na teoria de Gaston Bachelard-


D)  Realismo crítico, fenomenologia, e idealismo em David Hume.

 

CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 20 VALORES

 

1) A opinião, isto é, o senso comum, não pensa, isto é, traduz necessidades em conhecimentos, fabrica a explicação que mais lhe convém. Exemplo: a maioria das pessoas que sentem frequentes dores de cabeça não perdem tempo a investigar a causa dessas dores, tomam um comprimido de farmácia que faz desaparecer o sintoma mas não a causa que lhe está subjacente. Na ciência nada é dado porque tudo ou quase tudo é construção racional. Exemplo: a teoria do espaço-tempo de Einstein, que diz que o espaço encurva na proximidade de grandes massas não nos é dada pelos orgãos dos sentidos, é pensada na razão (VALE UM VALOR). A ciência normal é a ciência oficial, dominante, em cada época ou sociedade, o paradigma (modelo teórico ou teórico-prático) aceite pela grande maioria . Nos séculos XV-XVI era, na astrofísica europeia, o geocentrismo. A ciência extraordinária é a ciência dos dissidentes, que combate a ciência oficial e procura tomar o lugar desta. No século XVI, na cosmologia, era o heliocentrismo de Copérnico e Galileu. A incomensurabilidade dos paradigmas é a impossibilidade de medir exactamente o valor de cada doutrina científica e das suas rivais: não se pode dizer que o heliocentrismo é melhor que o geocentrismo, em termos globais, ainda que se possa dizer que, neste ou naquele aspecto (exactidão/experimentação, fecundidade, etc) um deles é superior ao outro  (VALE DOIS VALORES). Segundo Feyerabend as actuais universidades funcionam como igrejas dotadas de «infalibilidade ciêntífica». Ele critica os filósofos e académicos que acham que a ciência é a nossa religião, o que  significa que a mentalidade científica actual é dogmática como a teologia, acreditando em dogmas que não podem ser postos em causa, como por exemplo, « O Big Bang deu-se há 15 000 milhões de anos e foi o começo do universo», «as vacinas conferem imunidade», «os astros não comandam o comportamento humano». Os cientistas de hoje são os bispos e papas da nova religião da ciência. Por isso, Feyerabend proclama-se anarquista epistemológico: no anarquismo não há chefes e assim devia ser no campo das ciências, a astrologia, a medicina hopi, a cura através dos cristais, a dança da chuva deveriam ser disciplinas universitárias a par da física, da medicina alopática, da biologia molecular. As ciências actuais nasceram com o emergir da burguesia industrial e financeira actual e por isso estão impregnadas de ideologia - sistema de ideias e valores de uma classe social- neste caso, a burguesia. A ciência e a tecnologia do automóvel como veículo de transporte individual ou familiar insere-se na ideologia individualista da burguesia: «Enriquece, compra um carro próprio, viaja livremente».

Que significa dizer que hoje temos uma religião sem ontologia?  Significa que temos um conjunto de ritos cujo simbolismo profundo já perdemos, em cuja filosofia original já não penetramos. Por exemplo, ignoramos que o facto de a pia de baptismo de antigas igrejas e catedrais ser octogonal é porque o oito significava a oitava esfera que, em alguma gnose, era a esfera de Sofia, a Virgem Maria do cristianismo, a Stela Maris representada na rosa dos ventos ou estrela de oito pontas que orientava os navegantes (as almas) perdidos . Constroem-se hoje igrejas com uma arquitectura moderna ignorando o número de oiro (1,618), número mágico de proporção entre o comprimento e a largura e a altura de um compartimento. Que significa dizer que hoje impera uma arte sem conteúdos? Significa, por exemplo, que uma tela branca salpicada de pontos vermelhos é um quadro sem conteúdo, um significante sem significado. A arte abstracta é sem conteúdo. Que significa dizer que há uma ciência sem sentido? Significa, por exemplo, que há uma medicina que não percebe o sentido da febre - acção de autodefesa do organismo, expulsando as toxinas através do suor ou de urinas escuras - e manda reprimir os sintomas, tomando anti piréticos. (VALE QUATRO VALORES).

 

2-A)  Segundo a gnoseologia de Kant, o fenómeno chuva forma-se na sensibilidade, no espaço exterior ao meu corpo físico, do seguinte modo: de '«fora» da sensibilidade, os númenos afectam esta fazendo nascer nela um caos de matéria (exemplo: água, ferro, areia, etc, em um magma) que as duas formas a priori da sensibilidade, o espaço (com figuras geométricas) e o tempo (com a duração, a sucessão e a simultaneidade) moldam, fazendo nascer uma ou mais fenómenos de chuva. O entendimento, com as categorias de unidade, pluralidade, necessidade, confere consistência ao fenómeno galo. Não existe númeno «chuva», «chuva» é fenómeno na sua totalidade.(VALE UM VALOR E MEIO).

O juízo a priori «A soma dos três ângulos de um triângulo é 180 graus» forma-se no entendimento por acção das categorias de unidade, pluralidade, totalidade com dados a priori vindos da sensibilidade. a imagem de triângulo vinda da forma a priori do espaço, os números (180, etc) vindos da forma a priori do tempo. (VALE UM VALOR E MEIO)

 

                  

3. A) O positivismo lógico do círculo de Viena considera sem sentido a metafísica e afirmações desta como «Deus criou o Paraíso e o Inferno e pune os maus» porque não podem ser comprovadas empiricamente. Para este positivismo, só os factos empíricos ( exemplo: maçã, tornado, etc) e as suas relações lógico-matemáticas são verdade e a indução amplificante - generalização segundo uma lei necessária de alguns casos empíricos semelhantes entre si - é perfeitamente legítima. Karl Popper opõe-se ao positivismo lógico pois, na linha de David Hume, duvida da indução amplificante, achando que há sempre excepções a uma dada lei da natureza e considera ser impossível verificar essa lei pois teríamos de estudar centenas de milhar ou milhões de exemplos concretos. Popper diz que só é possível a corroboração ou confirmação de alguns exemplos através da testabilidade, isto é, realização de testes experimentais. Falsificacionismo de Popper significa que as teorias científicas não passam de conjecturas, hipóteses, falsificáveis, isto é potencialmente falsas.(VALE TRÊS VALORES).  

 

3-B)  O internalismo, posição sustentada por Lakatos, é a doutrina segundo uma teoria já é ciência mesmo que confinada a um só cientista, o seu autor, desde que apresente coerência interna e a experimentação a confirme, ao passo que o externalismo diz que uma teoria só é ciência se obtiver o assentimento externo do resto da comunidade científica, do governo e ministério da ciência, das revistas da especialidade, dos fóruns televisivos, do grande. As ciências empírico-formais são as ciências da natureza biofísica - química, física, astronomia, biologia, geologia - e baseiam-se em leis necessárias ou tendencialmente necessárias e por isso assentam na indução amplificante. As ciências hermenêuticas, ou seja, as que se baseiam em interpretações mais ou menos subjectivas e leis estatísticas - psicologia, sociologia, história, economia, - não recorrem ou recorrem pouco à indução amplificante. Mas tanto umas como outras podem ser validadas segundo o internalismo ou segundo o externalismo, ainda que a tendência mais frequente seja ligar o internalismo às hermenêuticas, subjectivas, e o externalismo às empírico-formais, objetivas (VALE TRÊS VALORES)

 

3-C) Imre Lakatos, epistemólogo, defendeu que a ciência se estrutura em Programas de Investigação Científica (PIC). Cada um destes tem três níveis: o núcleo duro, conjunto das teses imutáveis; o cinto protector, conjunto das teses revisíveis, que podem ser rectificadas ou substituídas; a heurística, conjunto dos métodos de investigação livre, teórica e prática, que pode confirmar ou anular o PIC. O obstáculo epistemológico em Bachelard é todo o entrave ao conhecimento científico: a primeira impressão,  o realismo natural ( o mundo exterior como parece ser: o céu é azul, o mármore é frio, etc, o preconceito do senso comum, a falta de tecnologia apropriada (exemplo: a falta de telescópios, microscópios, reagentes químicos, máscaras antigás, fatos de amianto, bússolas, aparelhos de refrigeração, etc.). Pode dizer-se que o racionalismo enfrenta o obstáculo epistemológico que, muitas vezes, é um facto bruto, uma primeira impressão sensorial. Como o obstáculo epistemológico leva, dialeticamente, à rectificação parece relacionar-se com o cinto protector em Lakatos, isto é, com as teses revisíveis (VALE DOIS VALORES) . .

 

.

3-D- O realismo crítico é a teoria segundo a qual a matéria é real e exterior às nossas mentes mas estas não espelham como ela é. O realismo crítico de Descartes é a teoria qiue sustenta que há um mundo real de matéria exterior às mentes humanas composto de uma matéria indeterminada, sem peso nem dureza/moleza, apenas formado de figuras geométricas, movimento, números (qualidades primárias, objetivas), sendo subjectivas, isto é exclusivamente mentais, as cores, os cheiros, os sabores, as sensações do tacto, o calor e frio (qualidades secundárias, subjectivas). A fenomenologia é a ontologia que sustenta não saber se o mundo material subsiste ou não fora das mentes humanas. O idealismo é a corrente que afirma que o universo material não é real em si mesmo mas está dentro da nossa mente, como imagens e ideias. Por exemplo, o"eu" em David Hume não é uma realidade, mas uma ideia ilusória, uma vez que somos apenas uma corrente de percepções empíricas a que a memória e a imaginação atribuem um núcleo invariável chamado «eu». Do mesmo modo, a   substância (exemplos: as substâncias cadeira ou nuvem) é uma ideia fabricada pela nossa imaginação servindo-se das sete relações filosóficas que são disposições sensório-intelectuais a priori da mente humana: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. (VALE DOIS VALORES)

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Sábado, 20 de Fevereiro de 2016
Teste de Filosofia do 10º ano, turma A (Fevereiro de 2016)

 

Eis um teste de filosofia fora do estereótipo dos testes que os autores dos manuais escolares da Porto Editora, Leya, Santillana, Areal Editores, etc, divulgam. E sem questões de escolha múltipla que, frequentemente, são incorrectamente concebidas por quem não domína o método dialético e desliza para a horizontalidade da filosofia analítica vulgar. Os conteúdos deste teste de filosofia referentes a alquimia, cabala e princípio das correspondências macrocosmos-microcosmos integram-se na rubrica «Os grandes temas da filosofia» e são relativos a uma visita de estudo ao centro histórico de  Sevilha em que se fez hermenêutica de monumentos antigos e seus pormenores artísticos.

 

 

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Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja

TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA A

11 de Fevereiro de 2016. Professor: Francisco Queiroz.

 I

"A filosofia da alquimia, que aceita as noções de pleroma, kenoma e hebdómada, sustenta a divisa «solve e coagula» e a existência de três princípios/ substâncias do universo material. Na Grande Obra Alquímica, que traduz a lei dialética do uno, há quatro fases correspondendo uma ave a cada uma. O princípio das correspondências macrocosmo-microcosmos foi usado na construção da catedral medieval."

 

1)Explique, concretamente este texto.

 

2) Relacione, justificando:

A) Seis esferas da árvore cabalística dos Sefirós, as respectivas qualidades, cores e planetas associados a cada uma, e a planta do templo cristão medieval.


B) Lei da luta de contrários, por um lado, e taoísmo, Adão Kadmon, e binómio realismo/idealismo, binómio ética deontológica/ ética teleológica por outro lado.


C) Vontade autónoma/ vontade heterónoma, eu fenoménico e eu numénico em Kant, por um lado, e três partes da alma na teoria de Platão, por outro lado.


D)  Máxima e imperativo categórico em Kant e o princípio moral do utilitarismo em Stuart Mill

 

CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 20 VALORES

 

1) A filosofia da alquimia, doutrina esotérica, hermética que sustenta o processo da Grande Obra ou criação laboratorial da pedra filosofal que concederia a imortalidade ao homem, dotando-o de um corpo astral desmaterializado como o mítico Adão Kadmon (metade homem e metade mulher), defende que há três princípios/ substâncias originárias do universo, o enxofre ou homem vermelho (princípio masculino), sólido, o mercúrio filosófico ou mulher branca (princípio feminino), volátil, e o sal, neutro. A divisa «solve e coagula» significa dissolver o enxofre, sólido, e coagular o mercúrio líquido ou gasoso que se esparge pelas esferas celestes de forma a obter o equilíbrio e a pedra filosofal, ou lapis vermelho. O pleroma é o mundo divino, da luz, o mundo dos éons ou dos arquétipos perfeitos, o kenoma é o vazio, das trevas e da matéria exterior ao pleroma, a hebdómada é o mundo das sete esferas planetárias que tem a Terra no centro, criado por Deus ou pelo demiurgo (deus inferior) no seio do kenoma para alojar Adão que, ao sair do Éden atraído por Lúcifer, se materializou e perdeu Sofia, a sua metade espiritual  (VALE QUATRO VALORES). As quatro fases da Grande Obra Alquímica que visa produzir o elixir da longa vida ou pedra filosofal em laboratório são: nigredo, ou fase negra, da putrefação da matéria transformada no laboratório a que corresponde o corvo; albedo, ou fase branca de separação das impurezas, a ave é o cisne; citredo, ou fase multicolor, de alguma dominancia do amarelo limão, a ave é o pavão; rubedo, ou fase vermelha na qual se dá a produção da pedra filosofal cuja ave é a fénix. A lei do uno sustenta que tudo se relaciona e isso exemplifica-se no facto de estas quatro fases da Grande Obra estarem ligadas entre si num processo de continuidade. (VALE TRÊS VALORES). O princípio das correspondências microcosmo-microcosmo da filosofia hermética sustenta que o que está em baixo é como o que está em cima, há uma analogia entre o microcosmo ou pequeno universo e o macrocosmo ou grande universo. Assim, o templo cristão da idade média obedeceu a essa lei: o macrocosmos seria um corpo gigantesco de Cristo de braços abertos que atravessaria o universo inteiro e o templo a construir seria um macrocosmos que imitaria, em forma de cruz, esse corpo macrocósmicos. A abside do templo, orientada a Este, ponto cardeal onde nasce o Sol (Cristo é o Sol espiritual) equivale à cabeça, o transepto aos braços abertos, o altar ao coração, as naves ao tronco e pernas de Cristo. (VALE DOIS VALORES).

 

2-A) A árvore das Sefirós (Esferas) é o diagrama do universo, segundo a Cabala (ensinamento secreto) judaica, uma «heresia» do judaísmo como religião de massas. Essa árvore de 10 esferas, que são 10 qualidades manifestas de Deus, é composta de um hexágono em cima, um triângulo debaixo deste e um ponto isolado no fundo. Podemos aplicar este diagrama à planta em cruz da catedral cristã fazendo coincidir Kéther, a primeira Sefiró, com a abside do templo, Binan e Guevurah com a extremidade esquerda do transepto, Hockman e Chesed com a extremidade direita do transpeto, Tiferet com o altar no pilar central.

 

                               KÉTHER (Coroa)

                                Planeta: Úrano

                                Esfera nº 1

                                 Cor : Indefinida

 

BINAH:                                               CHOCKMAH

Esfera nº 3                                          Esfera nº 2

Inteligência                                          Sabedoria

Feminina                                              Masculina

Saturno                                                Neptuno

Cor Negra                                           Cor iridescente

 

GUEVURAH                                          CHESED

Esfera nº 5                                             Esfera nº 4

Justiça                                                    Misericórdia

Marte                                                       Júpiter

Cor: Vermelho                                        Cor Azul

 

                                     THIPHERET

                                      Esfera nº 6.

                                      Beleza.

                                      Sol.

                                      Cor: amarelo ouro.

                                      (VALE TRÊS VALORES)

 

2. B)  A lei da luta de contrários sustenta que a essência e o motor de desenvolvimento de cada fenómeno ou ente é uma luta de contrários. No taoísmo, antiga filosofia chinesa, o Tao ou mãe do universo divide-se numa luta entre o Yang e o Yin, o fluxo da onda (Yang) e o refluxo desta (Yin), a luz do dia (Yang) e a escuridão da noite (Yin), a diástole (Yang) e a sístole (Yin), o crescimento (Yang) e o decréscimo (Yin), o masculino (Yang) e o feminino (Yin), o vermelho e o laranja (Yang) o azul e o violeta (Yin), o verão e o calor (Yang), o inverno e o frio (Yin). O Adão Kadmon, antepassado mítico do homem, é uma luta de contrários: a sua metade direita é masculina, a sua metade esquerda é feminina. O realismo e o idealismo são contrários: o primeiro afirma que há um mundo de matéria, real em si mesmo, fora das nossas mentes e anterior a elas, ao passo que o idealismo diz que o mundo material é uma ilusão fora do corpo, é apenas percepções e ideias da nossa mente. As éticas deontológicas são, supostamente, não hedónicas, põem o dever à frente do prazer. ao passo que as éticas ditas teleológicas (télos significa finalidade) colocam o prazer, finalidade da acção, à frente do dever.(VALE QUATRO VALORES)

 

2-C) A vontade autónoma reside no eu numénico, ou eu racional, na doutrina de Kant, e permite  a cada pessoa universalizar a sua máxima ou princípio subjetivo, agir de acordo com o imperativo categórico que cada um gera no seu eu racional: trata cada ser humano como um fim em si mesmo, alguém digno de respeito, e nunca como um meio para chegares a fins egoístas. Isto liga-se ao Nous ou parte superior, racional, da alma humana, em Platão, que contempla os arquétipos e dirige os filósofos.reis que vivem colectivamente, sem ouro nem prata, numa casa do Estado e fazem as leis. Também se liga ao Tumus ou parte intermédia da alma que representa o valor militar dos guerreiros, auxiliares dos filósofos-reis. A vontade heterónoma situa-se no eu fenoménico ou eu empírico e é governada por interesses materiais, instintos e paixões contrárias ao eu racional e exprime à parte inferior da alma humana, a epythimia ou concupiscência, sede dos prazeres egoístas de enriquecer materialmente com ouro e prata, comer requintadamente, desfrutar vida luxuosa, etc. (VALE TRÊS VALORES).

 

2-D- O imperativo categórico ou verdadeira lei moral postula: «Age como se quisesses que a tua ação fosse uma lei universal da natureza». Resulta da universalização da máxima, da aplicação equitativa do princípio subjectivo moral de cada um ou máxima. Exemplo: se a minha máxima é «Combato a vacinação obrigatória porque as vacinas infectam o organismo» o meu imperativo categórico será «Vou difundir a ideia de que a vacinação é nociva e não me vacinarei nem as minhas filhas, quaiquer que sejam as sanções contra mim.» O princípio moral de Stuart Mill é, em cada situação, promover a felicidade da maioria das pessoas, mesmo sacrificando a minoria. Em regra, isto opõe-se ao imperativo categórico de Kant que é absolutamente equitativo e trata por igual todos os indivíduos. (VALE UM VALOR)

 

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Sexta-feira, 19 de Fevereiro de 2016
Equívocos de Mario Bunge na classificação das teorias físicas

 

Mario Bunge estabelece quatro tipo de teorias físicas:

 

«1. A teoria realista: uma teoria física trata de sistemas físicos, isto é, diz respeito a entidades e eventos que indubitavelmente têm uma existência autónoma (realismo ingénuo) ou que supostamente (talvez erradamente, em alguns casos) têm uma existência autónoma (realismo crítico). » (...)

 

2, A tese subjectivista; uma teoria física trata de sensações (sensismo) ou também de ideias (idealismo subjectivo) de qualquer sujeito empenhado em actos cognitivos.» (...)

 

3. A tese estrita de Copenhague: uma teoria física ou, de qualquer modo, a teoria quântica trata de blocos sujeito-objecto inanalisáveis. Não pode ser estabelecida nenhuma distinção absoluta

 

4. A tese dualista: uma teoria física trata de objectos físicos e de actores humanos: diz respeito às transações dos humanos com o seu ambiente (pragmatismo) ou ao modo como os humanos manejam sistemas quando tentam conhecê-los (operacionismo). »

 

(Mario Bunge, Filosofia da Física, Edições 70, pág 67)

 

Há certo mérito nesta distinção. Mas há erros: realismo não se opõe a subjectivismo mas sim a idealismo/ irrealismo e a fenomenologia (esta última incarnada na chamada teoria de Copenhague); não há, em princípio, distinção ontológica entre realismo e dualismo, ao contrário do que Bunge estabelece, porque o realismo, a partir do momento em que existe humanidade cognoscente, é um dualismo (a nossa mente, do lado de cá, o mundo físico do lado de lá). 

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Quinta-feira, 3 de Dezembro de 2015
Teste de filosofia do 11º ano turma B (Dezembro de 2015)

 Eis um teste de filosofia do 11º ano em Portugal, centrado na retórica, na dialética, na lógica aristotélica, e na ontognoseologia.

 

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA B
2 de Dezembro de 2015. Professor: Francisco Queiroz

 I

"Muitos consideram que a demonstração exclui o pathos e o ethos da retórica ao passo que a argumentação incluiria ideologia.  Parménides sustentou que «ser e pensar são um e o mesmo» e isso tem duas interpretações, uma realista e a outra idealista ontológica. O silogismo condicional modus ponens é um raciocínio dedutivo e não uma indução amplificante."

 

1)Explique, concretamente, este texto.

 

2)Exponha e classifique gnoseologicamente os quatro passos do raciocínio de Descartes a partir da dúvida absoluta até à certeza do mundo exterior

 

3) Defina a lei dialética da contradição principal e aplique-a ao conjunto dos quatro passos da questão anterior, justificando.

 

4) Defina e construa um exemplo de:

A)Falácia depois de por causa de.

B) Falácia do falso dilema.

C) Falácia ad hominem.

D) Falácia ad ignorantiam.

E) Falácia do homem de palha.

F) Pragmatismo.

 

CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 20 VALORES

 

1) Muitos entendem que a demonstração, isto é, a cadeia de juízos e raciocínios que provam insofismavelmente uma ideia ou uma tese, exclui o pathos, isto é, o sentimento, o apelo à emoção do auditório e o ethos, isto é, a exibição do carácter e do currículo do orador. Na verdade, por exemplo,  a demonstração «Se A é maior que B e B é maior que C então A é maior que C» é impessoal e objectiva, sem sentimentos. A argumentação, isto é,  a cadeia de juízos e raciocínios que visam provar, de modo discutível,  uma ideia ou uma tese, inclui ideologia, isto é, um sistema de crenças e valores que exprime os interesses de um dado grupo ou classe social, nação ou etnia religiosa.  Exemplo: a argumentação a favor da vacinação («A vacina ensina o corpo a defender-se de doenças maiores«) exprime a ideologia da classe médica alopática e a argumentação contra a vacinação («A vacina é uma infeção do sangue, introduz a fase crónica da doença, não imuniza porque a imunidade não existe») exprime a ideologia da mediciina holística natural. (VALE TRÊS VALORES). A ontologia de Parménides de Eleia diz que a única realidade é o ser uno, imóvel, imutável, esférico, invisível, imperceptível, eterno, e que «ser e pensar são um e o mesmo». A interpretação realista desta última frase é: o pensamento é idêntico ao ser, é espelho do ser material (realismo é doutrina que sustenta que o mundo de matéria é real em si mesmo). A interpretação idealista da mesma frase é: o ser é pensamento, nada existe fora da ideia absoluta que é o ser, e o mundo de matéria, com a mudança das estações do ano, o nascimento e a morte não passa de ilusão. (VALE TRÊS VALORES) O silogismo condicional modus ponens (exemplo: Se estudar filosofia, torno-me sábio. Estudei filosofia. Logo, tornei-me sábio) é uma inferência dedutiva na medida em que parte de uma premissa geral («Estudar filosofia faz de uma pessoa um sábio» ) que se aplica a um caso particular, o meu, e chega a uma conclusão particular. Não se trata de uma indução amplificante porque esta generaliza de forma necessária a partir de alguns exemplos empíricos (exemplo: alguns estudantes de filosofia tornaram-se sábios, logo todos os que estudarem filosofia tornam-se sábios).(VALE DOIS VALORES)

 

2) Os quatro passos do raciocínio de Descartes são pautados pelo racionalismo, doutrina que afirma que a verdade procede do raciocínio, das ideias da razão e não dos sentidos:

 

Dúvida hiperbólica ou Cepticismo Absoluto( «Uma vez que quando sonho tudo me parece real, como se estivesse acordado, e afinal os sentidos me enganam, duvido da existência do mundo, das verdades da ciência, de Deus e até de mim mesmo »)

 

Idealismo solipsista («No meio deste oceano de dúvidas, atinjo uma certeza fundamental: «Penso, logo existo» como mente, ainda que o meu corpo e todo o resto do mundo sejam falsos»)

 

Idealismo não solipsista («Se penso tem de haver alguém mais perfeito que eu que me deu a perfeição do pensar, logo Deus existe).

 

Realismo crítico («Se Deus existe, não consentirá que eu me engane em tudo o que vejo, sinto e ouço, logo o mundo de matéria, feito só de qualidades primárias, objetivas, isto é, de figuras, tamanhos, números, movimentos, existe fora de mim»). Realismo crítico é a teoria gnosiológica segundo a qual há um mundo de matéria exterior ao espírito humano e este não capta esse mundo como é. Descartes, realista crítico, sustentava que as qualidades secundárias, subjectivas, isto é, as cores, os cheiros, os sons, sabores, o quente e o frio só existem no interior da mente, do organismo do sujeito, pois resultam de movimentos vibratórios exteriores e que o mundo exterior é apenas composto de formas, movimentos e tamanhos e uma matéria indeterminada. (VALE QUATRO VALORES)

 

3) A lei da contradição principal estabelece que um sistema de múltiplas contradições se pode reduzir a uma só grande contradição, constituída por dois grandes blocos ou pólos e deixando, às vezes, uma zona neutra de contradições secundárias na fronteira entre ambos os pólos. Neste caso, a contradição principal pode ser concebida de várias maneiras: num pólo, a dúvida absoluta (1º passo)  e no outro polo o conjunto idealismo solipsista/ idealismo não solipsista/ realismo crítico que possuem certo grau de certeza em comum; em um polo os dois idealismos (2º e 3º passos) e no outro polo o realismo crítico (4º passo) ficando o cepticismo absoluto na zona intermédia ou neutra; em um polo o realismo crítico, no polo oposto o conjunto cepticismo absoluto/idealismos  (VALE DOIS  VALORES).

 

4) a)A falácia depois de por causa de é a que atribui uma relação necessária de causa efeito a dois fenómenos vizinhos por acaso (exemplo: «Há 10 dias vi um gato preto e caí da bicicleta, há 5 dias vi outro gato preto e perdi a carteira, logo ver gatos pretos dá-me azar).  (VALE UM VALOR)

4) b) Falácia do falso dilema é uma disjunção lógica entre dois termos um dos quais está contido no outro. Exemplo: "Ou és ser humano ou és homem alentejano")(VALE UM VALOR)

4) c) A falácia ad hominem é aquela que desvia a argumentação racional para o campo do ataque pessoal ao adversário (exemplo: «Ele´ganhou o concurso para gestor de empresas, mas é gay, vamos impedi-lo de subir a gestor da empresa»).(VALE UM VALOR)

 

4) d) A falácia do apelo à ignorância é a que raciocina sobre um fundo desconhecido e o usa de forma tendenciosa, sustentando que uma tese fica demonstrada se a não se conseguiu demonstrar a sua contrária (exemplo: Nunca ninguém demonstrou que Deus existe, logo Deus não existe).(VALE UM VALOR)

4) e) A falácia  do homem de palha é o vício de argumentação que consiste ao atribuir ao interlocutor posições que ele não defende (exemplo a respeito de um teórico que quer introduzir a acupunctura e a naturopatia nos hospitais públicos: «Ele quer acabar com os hospitais e a classe médica que receita químicos e faz cirurgias»). (VALE UM VALOR) 

4) f) Pragmatismo é a teoria segundo a qual a realidade das coisas concretas /(pragmata) vale mais que os princípios metafísicos e a utilidade deve ser o critério da acção (VALE UM VALOR). Exemplo: um cristão pensa que «roubar é pecado, pode levar ao inferno» mas põe de parte esta crença e rouba laranjas num laranjal porque há que matar a fome a algumas pessoas que vivem em sua casa.

 

 

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Sexta-feira, 30 de Outubro de 2015
Teste de filosofia do 11º B (Outubro de 2015)

 

.Eis um teste do 11º ano de filosofia, o primeiro do primeiro período lectivo, numa escola secundária onde se pensa em profundidade, no Baixo Alentejo e em Portugal. .

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja

Escola Secundária Diogo de Gouveia , Beja

TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA B

28 de Outubro de 2015.

Professor: Francisco Queiroz

 

I

“Alguns operários são sindicalistas.».

Alguns sindicalistas não são anarquistas.

Logo, os operários são anarquistas.”

 

1-A) Indique, concretamente, três regras do silogismo formalmente válido que foram infringidas na construção deste silogismo.

1-B) Indique o modo e a figura deste silogismo

 

2) Construa o quadrado lógico das oposições à seguinte proposição«Os alentejanos são democratas».

 

3) Distinga realismo crítico de Descartes do idealismo não solipsista objetivo e da fenomenologia.

 

4) Aplique o princípio do terceiro excluído ao conjunto destas 3 correntes.

 

5) Tendo como primeira premissa a proposição «Se passar de ano, vou a Sevilha», construa:

 

A) Um silogismo condicional modus ponens

 

B) Um silogismo condicional modus tollens.

 

6)Construa um silogismo disjuntivo Tollendo/ ponens tendo como premissa inicial a frase «Ou és ateu ou és crente em divindades».

 

7) Distinga a percepção empírica, intuição inteligível, e do juízo.


 CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 20 VALORES

1-A) Três regras infringidas da validade do silogismo acima foram: de duas premissas particulares (alguns...alguns) nada se pode concluir; nenhum termo pode ter maior extensão na conclusão do que nas premissas (alguns operários / os (todos) operários); o termo médio (alguns sindicalistas) tem de ser tomado pelo menos uma vez universalmente. (VALE TRÊS VALORES).

1-B) O modo do silogismo é IOA e a figura é PS (predicado e sujeito é a posição do termo médio nas premissas) ou 4ª figura.(VALE DOIS VALORES).

 

2) O quadrado lógico é o seguinte:

 

Os alentejanos são democratas           Nenhum alentejano é democrata.

(TIPO A- Universal Afirmativa)              (TIPO E- Universal Negativa)

 

 

Alguns alentejanos são democratas.      Alguns alentejanos não são democratas.

(TIPO I - Particular Afirmativa)                (TIPO O -  Particular negativa)

  

VALE TRÊS VALORES                                          

 

3) O realismo crítico de Descartes é a teoria qiue sustenta que há um mundo real de matéria exterior às mentes humanas composto de uma matéria indeterminada, sem peso nem dureza/moleza, apenas formado de figuras geométricas, movimento, números (qualidades primárias, objetivas), sendo subjectivas, isto é exclusivamente mentais, as cores, os cheiros, os sabores, as sensações do tacto, o calor e frio (qualidades secundárias, subjectivas). O idealismo não solpsista ou pluralista e objetivo é a teoria que sustenta que o mundo material é ilusório, existe apenas dentro de uma multiplicidade de mentes humanas e cada uma delas constrói esse mundo de igual às outras ( «A torre de Belém que eu invento/vejo  é igual à torre de Belém que tu inventas/ vês), A fenomenologia é a ontologia que sustenta não saber se o mundo material subsiste ou não fora das mentes humanas. (VALE CINCO VALORES).

 

4) O princípio do terceiro excluído diz que uma coisa ou uma corrente de pensamento pertence ao grupo A ou ao grupo não A, excluindo a terceira hipótese. Comparando as três correntes da pergunta anterior pode enunciar-se assim: ou se é realista, afirmando a certeza de um mundo material extramental, ou não se é realista negando isso (idealismo) ou duvidando disso (fenomenologia).  (VALE TRÊS VALORES)-

 

5) a)  Se passar de ano, vou a Sevilha.

          Passei de ano.

          Logo, vou a Sevilha.     (VALE UM VALOR)

 

5.b)  Se passar de ano, vou a Sevilha..

         Não fui a Sevilha.

         Logo, passei de ano.

         (VALE UM VALOR)

 

6)  Ou és ateu ou és crente em divindades

     Não és ateu.

     Logo és crente em divindades.  (VALE UM VALOR)

 

7) A intuição intelígivel é uma apreensão imediata de algo metafísico, invisível, que pode até não ser real. Exemplo: a intuição de Deus, dos quarks e leptons, etc. O juízo  é uma articulação lógica de dois ou mais conceitos mediante uma forma verbal, é uma frase simples que afirma ou nega algo. Exemplo:«Beja é a capital do Baixo Alentejo». A percepção empírica é um conjunto ordenado de sensações visuais, auditivas, tácteis, olfactivas. Exemplo: «Vejo esta paisagem de oliveiras e sinto uma suave brisa no rosto». (VALE DOIS VALORES).

 

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Quinta-feira, 22 de Janeiro de 2015
Confusões de Dan O´Brien sobre realismos directo e indirecto, adverbialismo e intencionalismo

 

Em «Introdução à Teoria do Conhecimento» o filósofo analítico Dan O´Brien, da Oxford Brookes University,  explana uma visão algo equívoca sobre a teoria do conhecimento, que divide em cinco correntes essenciais: realismo directo, realismo indirecto, idealismo, fenomenismo, intencionalismo.

 

 

O REALISMO CRÍTICO (QUALIDADES PRIMÁRIAS E SECUNDÁRIAS) É REALISMO DIRECTO?

 

O´Brien considera o realismo directo divisível em realismo natural e realismo crítico. 

 

«1. Realismo directo.

«O realismo perceptual é a visão do senso comum de que mesas, molas para papel existem independentemente dos sujeitos que as percepcionam. Os realistas directos também afirmam que são esses objectos que percepcionamos directamente, podemos ver, cheirar, tocar, provar e ouvir estas coisas que nos são familiares. Há, no entanto, duas versões do realismo directo: o realismo directo ingénuo e o realismo directo científico. Estas concepções diferem quanto às propriedades que se admite que os objectos da percepção possuem quando não estão a ser percepcionados. Os realistas ingénuos afirmam que esses objectos podem continuar a ter todas as propriedades que normalmente percepcionamos, tais como a vermelhidão, a macieza e a tepidez. Os realistas científicos defendem que algumas das propriedades que um objecto possui quando percepcionado dependem do sujeito perceptual, e que os objectos não percepcionados não devem ser concebidos como se conservassem essas propriedades (...) O realismo científico é muitas vezes considerado nos termos da distinção lockeana entre qualidades secundárias e primárias (...) A chávena em si mesma não é vermelha mas a concepção física da sua superfície e a forma particular como esta superfície reflecte os raios de luz nos nossos olhos provoca em nós a experiência de ver vermelho (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 80-81; o destaque a negrito é colocado por mim).

 

E sobre o realismo indirecto escreve:

«Os realistas indirectos aceitam que a minha chávena de café existe independentemente de mim. Consideram, no entanto, que eu não tenho uma percepção directa desta chávena. O realismo indirecto afirma que a percepção envolve imagens mediadoras. Quando olhamos para um objecto não é esse objecto que vemos directamente mas um intermediário perceptual. Estes intermediários têm recebido várias designações: "dados dos sentidos", "sensa", "ideia", "sensibilia", "perceptos", "aparências" (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 82).

 

É evidente que há uma duplicação falaciosa nestas definições: como se pode chamar "realismo directo" à teoria das qualidades primárias e secundárias de Descartes e Locke se, em parte, não vemos directamente os objectos como são e lhes atribuímos cores, sons, cheiros, graus de dureza que não possuem mas que apenas são modos subjectivos de os percepcionarmos? Neste caso a cor vermelha que atribuo à chávena não existe nesta mas apenas nos meus olhos, na minha imaginação, e constitui um «sensa», «sensibilia», um «percepto» - e estamos dentro da definição de realismo indirecto, facto de que O´Brien não se dá conta.

 

O erro de Dan O´Brien consiste em classificar o realismo científico ou crítico como um realismo directo quando se trata, sobretudo, ou na totalidade de um realismo indirecto que salienta nitidamente a ruptura, a não correspondência exacta entre o objecto material exterior e a representação (percepção, ideia) que dele fazemos. Assim o conceito de realismo directo deveria limitar-se ao realismo natural ou ingénuo que afirma que o céu é azul, a erva é verde, o mármore é frio, a lã em quente, isto é, à corrente que, de um modo geral, não duvida da veracidade das percepções empíricas. Se há um realismo que declara que o mármore não é frio e a lã não é quente e que o quente e o frio não existem fora de nós mas são apenas sensações subjectivas, "sensibilia" então isso é realismo indirecto.

 

O INTENCIONALISMO É AUTÓNOMO FACE AO REALISMO E AO IDEALISMO?OU É UMA CARACTERÍSTICA GERAL DESTES?

 

Dan O´Brien escreve ainda sobre o intencionalismo, uma posição que, confusamente, situa no mesmo plano que o idealismo, o realismo e o fenomenismo:

«4. A teoria intencionalista da percepção.

«A última posição que iremos examinar nega que os dados dos sentidos estejam envolvidos na percepção e afirma, ao invés, que estamos em contacto perceptual directo com o mundo. Voltamos assim ao realismo directo com que este capítulo começou.» (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 92).

«Os intencionalistas acentuam certos paralelos entre a experiência perceptual e as crenças. As crenças são representações do mundo. A intencionalidade é uma característica essencial da mente e descreve a propriedade que têm certos estados mentais de representarem - ou de serem acerca de - certos aspectos do mundo(...) O intencionalista defende que a percepção também envolve estados representacionais (o intencionalismo é por vezes designado "representacionismo"). (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 93-94; o destaque a negrito é colocado por mim).

 

Mais uma vez a nuvem da confusão intelectual impede O´Brien de situar correctamente, espacio-mentalmente, os conceitos. O´Brien separa o intencionalismo. como se fosse autónomo, do realismo, do fenomenismo e do realismo, pondo todos ao mesmo nível, ignorando que todo o realismo é um intencionalismo ou representacionismo: a intentio ou representação, imagem ou conceito, espelha, de certo modo, um mundo de objectos exteriores. O´Brien confunde género e espécies distintos: intencionalismo é género que engloba os realismos, o idealismo e o fenomenismo. Em todas estas correntes se postula haver imagens ou ideias que representam algo.  Intencionalismo pertence ao género gnosiológico (modo de conhecer) mas realismo, idealismo e fenomenismo pertencem ao género ontológico ou ontognosiológico (modos de ser).

 

 UMA CONFUSÃO INTITULADA ADVERBIALISMO

Escreve O´Brien, introduzindo o conceito de adverbialismo:

«4.1  Adverbialismo

«Uma maneira de rejeitar o pressuposto de que temos de estar cientes de algum objecto é fazer a chamada "manobra adverbial". Esta estratégia pode ser ilustrada virando-nos para outros exemplos onde não se apliquem tais pressupostos ontológicos. "David Beckham tem um magnífico pontapé de livre" não implica que ele possua um certo tipo de objecto - um pontapé - como coisa que ele pudesse dar ou vender como o seu magnífico carro. Em vez disso, compreendemos que esta frase significa que ele executa os pontapés magnificamente. "Magnífico" não deve ser tomado como um adjectivo que descreve a propriedade de um objecto; deve ser visto como um adjectivo que desempenha a função de um advérbio, descrevendo como uma dada acção é executada (...) O argumento dos adverbialistas no que concerne à percepção é que quando percepcionamos o vermelho estamos a percepcionar de modo vermelho ou vermelhamente (...) Ao levar a chávena de café à boca, vejo de modo castanho (castanhamente); não tenho a percepção dos dados dos sentidos castanhos e amargos, que são os análogos internos das propriedades do café debaixo do meu nariz.»

(Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 92-93; o destaque a negrito é colocado por mim).

 

Adverbialismo (ponto 4.1) misturado com intencionalismo (ponto 4)? Como se relacionam? O´Brien é confuso, não hierarquiza estas noções entre si de maneira clara. Não está o adverbialismo - subjectivismo ou intersubjectivismo, assim o deveria caracterizar O´Brien - contido no realismo crítico ou científico das qualidades secundárias e primárias (exemplo: o perfume não existe fora do nosso nariz e da nossa mente, perfumadamente é um modo adverbial de captação subjectiva da realidade exterior que nos dá a ilusão do perfume da rosa ou do odor do café)? É óbvio que está mas Dan O´Brien não percebe essa inclusão e considera «adverbialismo» um modo de percepção aparte do realismo...

 

Como é típico dos medíocres filósofos analíticos eruditos (Nigel Warburton, John Searle, Simon Blackburn, etc.) O´Brien multiplica os «ismos» (adverbialismo, intencionalismo, realismo, etc) sem distinguir o que é ontológico do que é meramente gnoseológico e sociológico.  Estas definições são grosseiramente justapostas - lembremos o quadrado em que, no seu livro  "A Guide for the Perplexed", Penguin Books, página 113, Simon Blackburn mistura, nivelando-as, quatro teorias de géneros diferentes: realismo, eliminativismo, construtivismo, quietismo) e assim se ergue um desconexo edifício de definições filosóficas que mantém numa relativa escuridão os estudantes e os amantes da filosofia.

 

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Sexta-feira, 30 de Setembro de 2011
John Locke abre a porta ao idealismo e à fenomenologia

John Locke está no limite entre o idealismo e o realismo, já fora deste, porque não garante que a matéria seja substância, mas apenas um modo de apreensão da substância incognoscível. É o atomismo perceptivo - verdadeira filosofia analítica do século XVII - que permite colocar um ponto de interrogação sobre o conceito de substância. A substância está fora de mim mas é incognoscível. Kant virá buscar a isto ,e à tese similar de David Hume, a ideia de númeno, o objecto incognoscível fora da mente humana e do mundo natural englobado nesta. Locke escreveu:

 

«Logo, quando discutimos ou pensamos acerca de quaisquer tipos de substâncias materiais como o cavalo, a pedra, etc, embora a ideia que possuímos de ambos seja apenas a compilação ou a associação dessas múltiplas ideias simples das qualidades sensíveis que costumávamos encontrar unificadas na coisa denominada cavalo ou pedra, uma vez que não podemos conceber como é que ambas poderiam subsistir sozinhas ou uma na outra, supomos que existem num objecto comum ou são suportadas por ele. Este suporte é registado sob o nome de substância, embora seja claro que não temos uma ideia clara e distinta acerca dessa coisa que supomos ser um suporte.»

 

(John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano, volume I, pag 389, Fundação Calouste Gulbenkian).

 

Isto significa que o grau de dureza da vasilha de barro, o seu cheiro típico, a sua forma arredondada são ideias simples e reais mas a substância no seu todo que nos é dada pela ideia complexa de vasilha de barro, já é obscura ontologicamente. A passagem da parte (a ideia simples) ao todo (a ideia complexa) é mediada por uma espécie de cortina de névoa que não permite divisar os contornos, a natureza dos objectos exteriores.

 

 

 

 

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