Sem os erros gritantes da prova de exame nacional de filosofia de 2007, o teste intermédio de filosofia realizado em Portugal em 20 de Abril de 2012 - curiosamente o aniversário do nascimento de Adolf Hitler, o tal que mandava queimar em autos de fé os livros com as teorias metafísicas e científicas que o desafiavam e ao nazismo; a lembrar alguns ditadores da análise lógica de hoje, com os inspectores de circunstâncias e o raciocínio mecânico, robótico... - enferma, sem embargo, de alguns equívocos e da mesma estreiteza antimetafísica e antifilosófica que caracterizou a prova de exame de 2007. O teste intermédio não permite distinguir, com clareza, os alunos muito bons dos alunos bons, e estes dos suficientes elevados: não dá espaço à criatividade filosófica e faz da filosofia, exclusivamente, uma disciplina de memorização de conteúdos que são despejados no teste. Descartes e Hume são os filósofos sobre os quais se pede um saber nas perguntas 2.1 e 2.2 (da versão 1 do teste): mas as orientações de correção revelam que os autores do teste não dominam a filosofia de David Hume, o que sucede, aliás, com pelo menos 95% dos professores de filosofia do ensino secundário em Portugal.
PERGUNTA SOBRE O ARGUMENTO DE ANALOGIA MAL CONCEBIDA
A questão 1.6 do teste, confusamente elaborada, é a prova de que os autores - do mesmo modo que os manuais escolares em voga - não intuem com clareza o que é raciocínio de analogia. Vejamos:
1.6.
Um argumento por analogia é um argumento
(A) dedutivo que parte de uma boa comparação entre realidades diferentes.
(B) não dedutivo que parte de semelhanças entre realidades diferentes.
(C) dedutivo que parte de certo número de semelhanças entre realidades diferentes.
(D) não dedutivo que parte de diferenças relevantes entre realidades semelhantes.
O erro desta pergunta reside no facto de ignorar que o argumento por analogia, baseado na comparação entre dois ou mais entes, é multiforme: numa modalidade, consiste em raciocínios indutivos unificados por uma intuição noética e na outra modalidade reduz-se ao raciocínio dedutivo unificado noeticamente (inteligivelmente). Portanto, as quatro respostas A, B, C e D estão razoavelmente correctas - e razoavelmente incorrectas. Aliás a resposta B é, no fundo, o mesmo que a resposta D: semelhanças entre realidades diferentes (exemplo: o mesmo tipo de intestino e de dentição e de vocação frugívora entre o homem e o gorila) e diferenças relevantes entre realidades semelhantes (exemplo: a crueldade primitiva da criança de 6 anos que agride fisicamente outra, e a crueldade refinada do homem adulto que faz intimidação e acosso psicológico ao seu semelhante) vai desaguar no mesmo, isto é, numa relação de identidade e diferença...
Há raciocínios de analogia que são quase puramente dedutivos como, por exemplo, a analogia do ente (tó ón) e do uno (tó tí) que Aristóteles estabelece na "Metafísica". Como verificar que se trata de uma dedução adicionada de intuição noológica unificadora? O ente é uno : unidade deduz-se do conceito abstracto de ente. O uno é ente, isto é, existe - é outra dedução. Trata-se de duas deduções que confluem neste argumento de analogia construído mediante uma intuição unificadora. As respostas A) e C) do texto encaixam nesta modalidade.
Consideremos agora o seguinte raciocínio de analogia: «O homem e o chimpanzé possuem semelhanças evidentes na sua anátomo-fisiologia: 32 dentes na boca, um intestino de 6 a 8 metros de comprimento diferente do intestino dos carnívoros que é de 2,5 a 3 metros e uns rins fracos. Portanto, o homem deve alimentar-se de modo similar ao chimpanzé em liberdade: frutos frescos ou gordos (nozes, amêndoas), hortaliças, ovos e pequenos mariscos.» Esta analogia parte da indução, de uma observação empírica do homem e do chimpanzé e por abstração unifica as duas espécies no género antropóides. A analogia inclui pois, nesta modalidade, indução e aglutinação noética (intuição inteligível unificadora). Nada disto é ensinado nos manuais escolares nem nos dicionários de filosofia. Assim, a pergunta 1.6 está mal construída, borbulha no magma da confusão intelectual.
ERRÓNEA ORIENTAÇÃO PARA CORRIGIR AS PERGUNTAS SOBRE DAVID HUME
Veja-se agora uma pergunta sobre David Hume cuja teoria os autores desta prova - e a generalidade dos professores de filosofia - não dominam. Reza assim o final do enunciado do teste intermédio:
2.2.
Compare as posições de Hume e de Descartes relativamente à origem do conhecimento humano.
Na sua resposta deve integrar, pela ordem que entender, os seguintes conceitos:
razão;
sentidos;
ideias.
E para o cenário da resposta desenha, entre outras, a seguinte orientação:
Caracterização do papel da razão e dos sentidos no conhecimento da realidade, de acordo com a filosofia de Hume, segundo a qual a razão sem os sentidos não pode ajuizar ou fazer inferências sobre a realidade.
Nota-se neste critério de correção a ignorância dos autores desta prova sobre a doutrina de Hume. David Hume não considerou uma só razão nem afirmou que a razão sem os sentidos não pode ajuizar ou fazer inferências sobre a realidade. Escreveu:
«Pareceria ridículo aquele que dissesse que é somente provável que o sol nascerá amanhã, ou que todos os homens têm de morrer, embora seja claro que não temos outros factos além da que nos fornece a experiência. Por esta razão, talvez fosse mais exacto, para conservar logo o sentido correcto das palavras, e marcar os vários graus da evidência, distinguir três espécies de razão humana, a saber, a que resulta do conhecimento, a que resulta das provas e a que resulta das probabilidades. Por conhecimento, entendo a certeza que nasce da comparação de ideias. Por provas, os argumentos tirados da relação de causalidade e que são inteiramente livres da dúvida e incerteza. Por probabilidade, a evidência que ainda é acompanhada de certeza. É esta última espécie de raciocínio que passo a examinar. »
«A probabilidade ou raciocínio de conjectura pode dividir-se em duas espécies, a saber, a que se baseia no acaso e a que nasce de causas. Consideremos uma e outra por ordem. A ideia de causa e efeito é tirada da experiência que, apresentando-nos certos objectos constantemente conjugados, produz um hábito tal de os considerar nessa relação que não podemos sem sensível violência considerá-los em qualquer outra relação. Por outro lado, visto que o acaso não é em si nada de real e, falando com propriedade, é apenas a negação de uma causa, a sua influência na mente é contrária à da causação; e é essencial que deixe a imaginação perfeitamente indiferente para considerar a existência ou não-existência do objecto tomado como contingente.»
(David Hume, Tratado sobre a investigação humana, pag 163-164, Fundação Calouste Gulbenkian; o destaque a negrito é da minha autoria).
Para David Hume, a relação de causação ou causalidade necessária vem da experiência: é por vermos diariamente o nascer do sol e os nossos antepassados o terem visto sempre durante milhares de anos, que podemos dizer, com toda a segurança, que o sol nascerá amanhã. Essa é a razão das provas. Mas as outras duas razões ou vertentes de uma razão tridimensional - a razão do conhecimento, isto é meramente teórica, que compara ideias e formula, por exemplo, a teoria dos buracos negros do universo, feita de juízos e raciocínios especulativos; e a razão das probabilidades, céptica, que conjuga o acaso com o determinismo - fogem da alçada dos sentidos, ainda que as ideias que manejam se originassem neles, e portanto ajuizam em "roda livre", sem controlo da experiência.
O que importa é que a razão opera e ajuíza sem os sentidos, ao contrário do que se afirma no critério de correção acima - opera com base na imaginação.
Nenhum dos manuais escolares de filosofia adoptados em Portugal nem os respectivos autores e revisores (Desidério Murcho, Pedro Galvão, Aires Almeida, Célia Teixeira, Paula Mateus, Luis Rodrigues, Pedro Madeira, Alexandre Franco de Sá, Michel Renauld, Marcelo Fernandes, Nazaré Barros, António Pedro Mesquita, Luís Gottschalk, Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes, J.Neves Vicente, Catarina Pires, Maria Antónia Abrunhosa, Miguel Leitão, Margarida Moreira, Adília Maria Gaspar, Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Fátima Alves, José Arêdes, José Carvalho, Rui Alexandre Grácio, José Manuel Girão, etc) compreenderam bem e explanaram correctamente a teoria de David Hume. Não falam desta tridimensionalidade da razão ou destas três razões. A doutrina de Hume é mais complexa do que o simplismo redutor com que a pintam. Como poderão então os professores correctores, sob a deficiente influência dessses autores e supervisores, corrigir com verdade as respostas dos alunos sobre a teoria de Hume e ter uma perspectiva correcta sobre a relação razão- sentidos segundo este filósofo?
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