Na Crítica da Razão Pura, Kant desembainha a espada da crítica contra George Berkeley, a quem classifica de idealista dogmático. Atentemos entre outras passagens, na seguinte, em que diz ser absurdo considerar que o espaço e o tempo existam em si mesmos, como reais, se se considera que os objectos materiais são irreais:
«Com efeito, se considerarmos o espaço e o tempo como propriedades que, segundo a sua possibilidade, deveriam encontrar-se nas coisas em si e se reflectirmos nos absurdos em que se cai, desde que se admitam duas coisas infinitas, que não são substâncias, nem algo realmente inerente às substâncias, mas que devem ser contudo algo de existente e mesmo a condição necessária da existência de todas as coisas, já que subsistiriam, mesmo que todas as coisas desaparecessem, não se poderia mais censurar o bom do Berkeley por ter reduzido os corpos a simples aparência.» (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pag 85-86; o negrito é posto por mim).
Kant tenta diferenciar fenómeno de aparência ou ilusão e atribuiu esta última categoria ao idealismo de Berkeley. É uma falácia. Já tratei este tema em outros artigos deste blog. Escreveu Kant:
«Seria culpa minha se convertesse em simples aparência o que deveria considerar como fenómeno. Eis o que não acontece segundo o nosso princípio de idealidade de todas as nossas intuições sensíveis; só quando se atribui realidade objectiva a essas formas de representação é que se não pode evitar que tudo se transforme em simples aparência.»(Kant, Crítica da Razão Pura´, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pag 85; o negrito é posto por mim ).
Mas o que é atribuir realidade objectiva à representação? Kant fá-lo? Há uma objectividade realista e uma objectividade idealista. E Kant não as distingue, sequer... Aliás Kant diz o mesmo que Berkeley sobre os objectos físicos, pois não considera reais em si mesmos corpos como mesas, casas, árvores, átomos, sol, galáxia:
«Devíamos contudo lembrar de que os corpos não são objectos em si, que nos estejam presentes, mas uma simples manifestação fenoménica, sabe-se lá de que objecto desconhecido...de que, portanto, não é o movimento da matéria que produz em nós representações, mas que ele próprio (e, portanto, também a matéria que se torna cognoscível) é mera representação...»(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, nota da pag 363-364;o negrito é posto por mim). )
Eis a confissão de Kant: o fenómeno, o objecto ou a força material (o vento, o mar, a gaivota, a rocha, etc) é representação, é aparência de algo desconhecido. Se não são objectos em si, os corpos físicos são aparências. Não há meio termo: o fenómeno não é coisa em si, é ilusão tridimensional, é um conjunto de aparências. Kant tem exactamente a mesma posição de Berkeley, embora tente disfarçar o facto ao colocar «fenómeno» como meio termo entre coisa em si e aparência/representação. Mas de duas uma: o fenómeno ou é real ou não.
O idealismo de Kant é, no essencial, o mesmo de Berkeley, com a diferença essencial de Berkeley afirmar Deus como real e Kant atribuir a Deus uma existência duvidosa (agnosticismo) classificando-o como númeno. E as diferenças de Kant admitir a distinção ontológica entre qualidades primárias e secundárias e Berkeley não. E Kant construiu ainda as tábuas de categorias e de juízos puros, que são variações inessenciais do idealismo de Berkeley.
De duas uma: ou Kant era menos inteligente do que se pensa e interpretou mal Berkeley ou quis menorizar Berkeley, colhendo os louros de fundador do idealismo moderno, e foi desonesto, deturpando a filosofia do bispo irlandês. Aposto nesta última hipótese.
Uma das provas da indigência intelectual dos filósofos consagrados dos séculos XX e XXI - como Heidegger, Russell, Sartre, Quine, Kripke, Goodman e tantos outros - e dos professores de filosofia em geral é não perceberem sequer esta identidade essencial: o idealismo de Kant é, ontologicamente, igual ao idealismo de Berkeley. Que universidades são estas, incapazes de desmontar as falácias de Kant? Fechem-se as Faculdades de Filosofia! Não há nelas profundidade suficiente de pensamento. Só há títulos imerecidos, vaidades - exceptuando os títulos de alguns raros catedráticos de real valor, ultra minoritários no corpo docente.
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O "paradoxo de Burali-Forti" é um argumento da teoria dos conjuntos considerado verdadeiro pela filosofia analítica anglo-saxónica. Blackburn enuncia-o assim:
«Paradoxo de Burali-Forti - O primeiro paradoxo a ser descoberto na teoria dos conjuntos. A todos os conjuntos bem ordenados é atribuído um número ordinal. Estes ordinais podem ser comparados: de quaisquer dois se pode dizer que são iguais, ou que um é mais pequeno e o outro maior. Eles formam, por sua vez, um conjunto bem ordenado. O ordinal deste conjunto tem de ser maior do que qualquer ordinal que pertença ao conjunto. Seja C o conjunto de todos os ordinais. Uma vez que é um conjunto bem ordenado, tem um número ordinal, w, que tem de ser maior do que qualquer elemento do conjunto. Mas C era o conjunto de todos os ordinais e tem de incluir w.»
(Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, pag 316, Gradiva, 2007; o destaque a negrito é posto por mim).
Trata-se de um pseudoparadoxo. Exemplifiquemos. Apliquemos este problema da teoria dos conjuntos aos 10 países latinos que existem na Europa, partindo do princípio que cada país é um conjunto de habitantes, atribuindo um número a cada um : a San Marino (cerca de 30 000 habitantes) o número 1, ao Mónaco (cerca de 32 000 habitantes) o número 2, a Andorra (cerca de 78 000 habitantes) o número 3, à Suíça (cerca de 7,8 milhões de habitantes) o número 4, à Bélgica (cerca de 10,4 milhões de habitantes) que tem a Valónia, região de língua francesa, o numero 5, a Portugal cerca de 10,5 milhões de habitantes) o numero 6, à Roménia (cerca de 22,2 milhões de habitantes) o número 7, a Espanha (cerca de 46 milhões de habitantes) o número 8, a Itália (cerca de 60,3 milhões de habitantes) o número 9, a França (cerca de 65,4 milhões de habitantes) o número 10.
Assim C é o conjunto de todos estes ordinais (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10) e tem de ter um número w - seja por exemplo 11 - maior do que qualquer elemento do conjunto.
E Blackburn escreve acima, delineando o dito paradoxo: «Mas C era o conjunto de todos os ordinais e tem de incluir w.»
Perguntamos: por que carga de água C tem de incluir w? O conjunto [1,2,3...10] tem de incluir o número 11? É absurdo. É evidente que C não se inclui a si mesmo enquanto número 11 (w) ao lado dos números de escalão inferior que são os seus elementos. O erro aqui é similar ao do paradoxo de Russel que rebaixa a espécie - um conjunto de entes similares - à condição de elemento ou parte de si mesma.
Os matemáticos não são fiáveis, no plano da especulação, não se inserem, em regra, no raciocínio multidimensional que caracteriza a verdadeira filosofia. É muito simples desmascarar este pseudoparadoxo da teoria dos conjuntos mas, pelos vistos, nem Russel, nem Wittgenstein, nem Quine, nem Samuel Kripke, nem Nagel, nem Blackburn, nem Anthony Kenny, nem João Branquinho, nem José Gil, nem a generalidade dos académicos actuais e do século passado o fizeram. Teremos que nos curvar e calar ante uma universidade de obnóxios doutorados em filosofia que veneram pseudoraciocínios de aparência matemática?
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