Heidegger cometeu logo no capítulo I da Primeira Secção de «O ser e o tempo» uma falácia de anfibologia (ambiguidade de sentidos para a mesma palavra) em tornos dos termos «essência» e «existência». Caracterizou o ser aí como «o ser que somos nós mesmos em cada caso» e afirmou que «o próprio ser é o que vai dentro de este ente em cada caso». Escreveu:
«Desta caracterização do "ser aí" (Dasein) resultam duas coisas:
«1. A essência de este ente está no seu "ser relativamente a" . O "quê é" (essentia) de este ente, até onde se pode falar dele, tem de conceber-se partindo do seu ser (existentia). O problema ontológico é justamente o de mostrar que se escolhemos o termo existência para designar o ser de este ente, este termo não tem nem pode ter a significação ontológica do termo tradicional existentia; existentia quer dizer ontologicamente "ser diante dos olhos", uma forma de ser que por essência não convèm ao carácter do "ser aí". Evitamos a confusão usando sempre em lugar do termo existentia a expressão exegética "ser diante dos olhos" e reservando o termo existência, como determinação do ser, para o "ser aí".» (Martin Heidegger, El Ser y el tiempo, pag 54, Fondo de Cultura Económica; a letra negrita é posta por mim).
Este texto de Heidegger é algo confuso e é espantoso que, lido por tantos milhares de filósofos e académicos, ninguém tenha gritado: «O rei vai nú!» - o rei é evidentemente Heidegger paramentado com uma retórica ambígua. Afirma, na primeira e segunda linhas, que a essência (quid) do ser-aí brota da existência, do ser, sem reparar que um quid brota de outro quid e não do puro existir vazio que seria o ser.
Heidegger joga equivocamente com os termos essência/ quê é (tó ti), e existência/ o que é, existe (tó on, em grego), como se o ser não possuísse um quid mas fosse apenas quod.
O desdobramento de sentido de «existência» em existir clássico (existentia) e existir eu mesmo (existência) é pertinente mas não esclarece a questão fundamental do ser: a essência deste. É o ritmo do universo traduzido em movimento ondulatório? É uma substância universal geradora do espírito, da matéria e da vida? É o eu ou ser-aí no meu caso?
Heidegger passa ao lado da determinação da essência do ser - aliás sempre o fará - e sugere o ser ora como estrutura geral ora como existir. Não é verdadeiramente claro. Ele caracterizou sempre o ser quanto às regiões ou "espaços" que preenche - o ser-aí, o ser no mundo, o ser à mão, o ser diante dos olhos, o ser para a morte, etc - mas nunca definiu o ser em si mesmo, não desenhou a sua forma.
Por isso a acusação que faz à ontologia tradicional de esta «ter esquecido o sentido do ser» recai sobre ele mesmo na medida em que oculta, em parte, o sentido do termo ser. Lança o nevoeiro da confusão com a frase: «O quê é (essentia) de este ente... tem de conceber-se partindo do seu ser (existência)». Isto é muito escolástico e parece copiar São Tomás de Aquino em «O ente e a essência» quando o «doutor angélico» afirma que a essência de Deus é o puro existir e dela brotam as diversas essências (homem, árvore, planeta, etc).
Heidegger prossegue:
«A essência do "ser aí" está na sua existência. » (Heidegger, ibid, pag 54).
Quando identifica a essência do "ser aí" com a existência, Heidegger solta as águas da confusão. A existência segundo ele é o ser. Mas trata-se de uma definição amputada, unilateral: o ser possui ou não um quid, um quê-é, uma estrutura geral determinada que é mais que um mero existir? A palavra "ser" tem dois sentidos: enquanto verbo, em sentido abstracto, designa o existir, a existência; enquanto substantivo, enquanto algo concreto ou concretizável, designa a essência, uma essência geral, universal, em que todos os entes se banham, em particular o "ser-aí" (cada homem).
Heidegger não faz explicitamente esta distinção.
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Teodorico de Freiberg, um pensador dominicano alemão (1250? - 1320) que se opôs à doutrina de Tomás de Aquino, escreveu sobre o ente:
«1. Ora o ente é o que há de mais geral. Compreende em si, na sua extensão, tudo, quer segundo a coisa quer segundo a significação. Significa a essência de tudo aquilo de que é predicado, seja predicado de uma substância seja de um acidente, conforme diz o Filósofo no princípio do Livro IV da Metafísica. Não há inconveniente em ser predicado da substância e do acidente, indicando a essência daquilo de que é predicado. Isto porque o ser é predicado da substância e do acidente segundo uma noção diferente, dado que a substância e o acidente derivam de noções diferentes, enquanto são entes.»
«2. De facto ambos são ditos "ente" enquanto têm uma certa essência. Mas a substância tem a essência segundo uma noção diferente da que o acidente tem. Isto é claro com base naquilo que Agostinho diz no capítulo 16 de A Imortalidade da Alma: «O que faz com que qualquer essência seja uma essência é o facto de ser.» Contudo o ser que convém à substância tem uma dada noção e enquanto pertence ao acidente tem uma noção diferente.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pags. 27-28; o negrito é colocado por mim).
Teodorico não é de uma clareza absoluta porque não distingue as propriedades do ser das propriedades da essência. Joga na ambiguidade do termo "ser" que, ora é interpretado como existir ora como configuração, quid. E invoca Santo Agostinho mas, de facto, este equivocou-se: não é o ser que faz com que uma essência seja essência; o ser faz com que uma essência exista enquanto essência, ou seja, esteja impressa, plasmada, numa matéria indeterminada (o ser) gerando um ente concreto. Ser é ontologia e essência é eidologia. Em certo sentido, esta é anterior à ontologia. Se eu pensar em um cavalo com tromba de elefante e barbatanas de peixe em vez de patas traseiras penso numa essência que não existe no mundo biocósmico, mas que existe apenas na minha imaginação. Logo, não é o ser que faz com que a essência seja: é a forma, como princípio, que desenha ou estrutura a essência, não o ser. Há essências que são e outras que não são. Homem de sangue verde é uma essência imaginária, que não é (não existe no real), mas homem de sangue vermelho é uma essência real. Logo não é o ser que faz a essência: o ser é um correlato da essência, não o autor ou causa eficiente, fabricante, daquela. Parece que Platão, sem embargo de deslizar anfibologicamente em dois sentidos da palavra ser - existência e conjunto das formas imóveis inteligíveis - terá teorizado a Díade do Grande e do Pequeno como fonte das formas ou essências e o Uno como fonte do ser.
Também não parece que «o ser que convém à substância tem uma dada noção e enquanto pertence ao acidente tem uma noção diferente». Se entendermos por ser o existir, a mesma noção de existir se aplica à substância - a forma permanente do ente - e ao acidente - a forma transitória e parcelar do ente.
O ente (tó on) é para Aristóteles um sujeito indeterminado, universal, apto a contrair-se em qualquer substância: as suas características primordiais são existir e ser uno. « E o ente constitui o comum a todas as coisas» (Aristóteles, Metafísica, 1004 b, 20-25) .A filosofia - séculos mais tarde designada ontologia - é a ciência do ente, do que é. Género, espécie, substância primeira e acidente são modos do ente.
Teodorico distingue a quididade - uma qualidade determinada e estrutural; a essência ou forma da espécie, em Aristóteles - do quid ( que o tradutor Mário Santiago de Carvalho traduz por "o que" e nós por "o quê é») - a qualidade determinada particularizada ou individuada em tal ou qual ente. Mas mistura o quid com o quod e nesse sentido afasta-se de Aristóteles:
«4. Mas "quididade", que deriva de "o que" por abstracção, significa apenas o princípio formal que faz com que uma coisa seja essencialmente qualquer coisa. E é isto que comunmente se diz, e bem, ou seja, que nos simples a quididade e aquilo que é "o que" se identificam. Ora isto não acontece nos compostos de matéria e de forma. Nestes só a forma é quididade.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pag 32; o negrito é colocado por mim).
«8. Neste segundo modo de significação, tomado em sentido comum, é evidente que "brancura" e "branco" diferem quanto à significação. "Brancura" significa somente a qualidade, e "branco" significa o agregado do sujeito e da qualidade. E assim se pode dizer, acerca de "quididade" e daquilo que "o que" é, que "quididade" significa apenas a forma, mas "o que", mesmo nas coisas compostas, significa toda a essência da coisa, quer dizer, o agregado de matéria e de forma.» (ibid, pags 36-37; o negrito é colocado por mim).
A minha discordância relativamente a esta posição, inteligentemente explanada, é a seguinte: o quid ou quê-é, na perspectiva aristotélica, não engloba a totalidade do ente, mas constitui, de certo modo, o invólucro, a configuração, a estrutura deste. Uma estátua de mármore é um quid, não pelo mármore em bruto, mas pela forma que neste o escultor imprimiu. O quod é o ente abstractamente considerado, como algo existente, sem forma determinada.
A CONFUSÃO DA EXISTÊNCIA COM A ESSÊNCIA
A incoerência fende,subtilmente, o texto de Teodorico:
«5. O ser e "o que é" diferem no seguinte. O ser designa toda a essência da coisa. "O que é" significa uma parte da coisa, nas coisas compostas.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pag 45; o negrito é colocado por mim).
Ora isto contradiz a seguinte passagem acima citada:
«E assim se pode dizer, acerca de "quididade" e daquilo que "o que" é, que "quididade" significa apenas a forma, mas "o que", mesmo nas coisas compostas, significa toda a essência da coisa, quer dizer, o agregado de matéria e de forma.»(ibid, pags 36-37; o negrito é colocado por mim).
Comparando estas dois pensamentos, deduzimos que, na interpretação de Teodorico, o ser e o quê-é (na sua terminologia: "o que") são uma e a mesma coisa já que «significam toda a essência da coisa». Isto é um equívoco, uma confusão entre existência (ser) e essência ("quê-é, "o que").
O prefaciador Mário Santiago de Carvalho, sem embargo dos seus altos méritos na difusão da filosofia medieval, não parece ter detectado o equívoco do dominicano alemão do século XIV, equívoco que se desmonta assim: se "o que" ou quid constitui toda a essência da coisa, isto é, o composto forma-matéria, como sustentou Teodorico, então a substância primeira ou ente individualizado - exemplo: este vaso azul de barro - em nada se distingue da sua espécie ou substância segunda - o conjunto dos vasos azuis de barro. Aristóteles apontou a matéria como princípio de individuação mas essa teoria está aqui ausente. Em Teodorico, a matéria, originariamente destituída de forma, está incluída no quid, o que constitui um desvio do pensamento aristotélico e uma confusão entre a forma, acidental ou essencial (quid) e a não forma (matéria-prima, hylé).
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São Tomás de Aquino escreveu:
«Mas, como se disse, a determinação da espécie, em relação ao género, realiza-se por meio da forma,enquanto que a determinação do individual, em relação à espécie, por meio da matéria.» (Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, Contraponto, pag. 80-81; o negrito é meu).
Esta tese aristotélica é ilógica. A individuação é aqui confundida com materialização. Sendo, por definição, a matéria prima destituída de forma, toda ela geraria a mesma coisa se unida com uma dada forma ou essência. Seria uma materialização sem verdadeira individuação. Esta seria meramente numérica mas não quiditativa. Por exemplo, a forma específica homem unida à matéria prima (hylé) geraria uma série de homens absolutamente iguais entre si. O que permite distinguir um homem do outro, isto é, revelar o quid de cada um? É a matéria prima, pura? Não. É uma matéria impregnada de uma dada forma aqui e outra ali.
É, pois, pela forma imanente à matéria que os diversos indivíduos se distinguem entre si.
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En una de sus lecciones de metafísica, Ortega habla de dos mesas: la mesa primaria, del realismo natural, que los sentidos nos ofrecen (de madera o de vidrio, rectangular o circular, etc., que veo e toco aquí) y la mesa científica, del realismo crítico, pensada, casi «insustancial», porque está llena de espacio vacío y átomos moviéndose sin cesar, diferente a las sensaciones que la primera mesa nos produce. Y, reflexionando sobre una y otra, acaba concluyendo que ambas no tienen ser sino serventía para el hombre, en un caso el hombre común, incluso el salvaje, en otro caso el hombre científico:
«Y ahora pregunto: cuando leyendo a Eddington digo que me acerco a la mesa para escribir, ese hacer y esa situación de mi vida que tales palabras enuncian ¿puede consistir en que me acerco a unos electrones? Un salvaje puede también acercarse a la mesa , ya que no para escribir, no para sentarse sobre ella, y ese salvaje, ¿se acerca también a unos electrones?»
«Pero lo mismo vale para la mesa como sustancia. En rigor, la mesa primaria no es uno ni lo otro ni nada. No tiene ser por si: está ahí facilitando o dificultando mi vida, como elemento de ella, me sirve o me desirve, me favorece o me perturba. Cabía decir que eso, favorecerme, es el ser de la mesa. Sin embargo y ¿si huyo porque hay fuego? La mesa me estorba. Y aun ese mismo ser ser facilidad, ser dificultad no es ella, sino que depende de lo que yo tenga que hacer: escribir o huir.»
«Por tanto, la circunstancia, por lo pronto y como tal, no tiene ser; ese mínimo que parecería tener no es de ella, sino de mí. Depende lo que la circunstancia sea de quién sea yo: el que tiene que escribir o el que tiene que correr.»
«Eso transfiere a mí el problema del ser de las cosas. Para responder a ¿que son las cosas? Tengo que preguntarme ¿qué soy yo?»
«Pero yo soy el que tiene que habérselas con la circunstancia, el que tiene que ser en ella. Lo que yo puedo y debo ser depende, pues, a su vez, de ella.»
«El hombre y su circunstancia pelotean el problema del ser se lo devuelven uno al otro lo que indica que el problema del ser es el de lo uno y lo otro, el del hombre y de su circunstancia; el del Todo.»
El hecho radical e irremediable es que el hombre viviendo se encuentra con que ni las cosas ni él tienen ser; con que no tiene más remedio que hacer algo para vivir, que decidir su hacer en cada instante, o lo que es igual, que decidir su ser, y esto incluye, como hemos visto, el ser de las cosas.» ((Ortega y Gasset, Unas lecciones de metafísica, Revista de Occidente en Alianza Editoral, Pág 119-120; la letra negrita es añadida por mí).
Ortega separa aquí, en modo artificial, la causa formal - el qué, o quid- del ser - o consistencia existencial - de la mesa como si solo la causa final - la serventía de algo, el para qué - concediera ser a las cosas. La mesa no tiene ser, consistencia en si misma: solo tiene ser para mí, instrumental. Es una deriva hacía el idealismo pragmático. Es el pragmatismo acoplado a la fenomenología, cambiando esta en un insustancialismo movilista.
Ortega se halla así en la línea de Jean Paul Sartre, aunque no coincidan en todo, pero no en la de Heidegger y la tradición platónica que sostienen que el ser precede el agir Zubiri diría: la actuidad - el ser o acto primero,previo a la potencia - precede a la actualidad y la actualización.
Heidegger díce que el ser-ahí, cada hombre, lleva dentro el ser y que las cosas ante los ojos, llevan, en otro modo, también el ser pero Ortega tiene posición distinta: el hombre y las cosas no poseen ser, esto solo existe en la interconexión hombre-mundo: es el Todo, la vida.
En Ortega, el movimiento de la dualidad origina el ser, la unidad, que es la vida. En Platón, el uno y la díada del pequeño y de lo grande constituyen de suyo el ser y originan, después, el movimiento y las cosas móviles y efímeras. Ortega sustituye la ontología esencialista por la ontología existencialista insustancialista.
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