Em um artigo de sete páginas do «Dicionário do Pensamento Contemporâneo» sobre o Criticismo, o catedrático de filosofia António Marques não demonstra entender, genuinamente, o conceito de criticismo em Kant.
Em nenhum parágrafo do artigo António Marques afirma um princípio basilar do criticismo de Kant: o idealismo ou irrealismo da matéria, do mundo dos fenómenos (casas, comboios, árvores, paisagens, etc). É esse princípio que constitui a base da revolução coperniciana do conhecimento que, antes de Kant, já Berkeley e David Hume haviam operado.
Marques insiste em falar no sistema da dualidade da filosofia crítica, querendo com isso referir a dualidade entre fenómeno e númeno, sujeito e objecto, razão e entendimento. E opõe a filosofia da identidade de Schelling e Hegel à filosofia crítica de Kant sem perceber que as primeiras são ideal-realismo e esta última é puro idealismo físico como o idealismo de Berkeley. Ademais, a filosofia do absoluto de Hegel do uno englobante de tudo, baseia-se também em dualidades - real e racional, conceito objectivo e conceito subjectivo, finito e infinito, etc - e trinalidades - tese, antítese e síntese, ser em si, ser fora de si e ser para si,etc- o que retira clareza ao fio do raciocínio de António Marques pois a identidade não exclui a dualidade. Este escreve, referindo-se ao idealismo alemão:
«Ainda que, de formas diferentes, os seus autores fundamentais (Fichte, Schelling, Hegel) insistiram na artificialidade, na inconsistência lógica ou nas insuficiências ontológicas do dualismo próprio do criticismo. Pares conceptuais fundamentais como entendimento/ razão, sujeito/ objecto, activo/ passivo, fenómeno/ coisa em si foram objecto de uma crítica que via no dualismo desta filosofia o principal obstáculo à fundação da filosofia do absoluto.» (António Marques, Criticismo, Dicionário do Pensamento Contemporâneo, direcção de Manuel Maria Carrilho, página 62, Círculo de Leitores, 1991).
Sublinho que a expressão «idealismo alemão», empregue com excessiva leveza nas histórias e dicionários de filosofia, é profundamente ambígua: o idealismo material de Kant opõe-se ao idealismo formal de Hegel que é um realismo de matriz espiritualista. Como é que Kant caracterizou a filosofia crítica ou criticismo? Do seguinte modo:
«Só a crítica pode cortar pela raíz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que se podem tornar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e cepticismo. (...)
«A crítica não se opõe ao procedimento dogmático da razão no seu conhecimento puro, enquanto ciência (pois esta é sempre dogmática, isto é, estritamente demonstrativa, baseando-se em princípios a priori, seguros) mas sim ao dogmatismo, quer dizer, à presunção de seguir por diante apenas com um conhecimento puro por conceitos (conhecimento filosófico), apoiado em princípios...» (Kant, Crítica da Razão Pura, Prefácio da Segunda Edição (1787), pagina 30, Fundação Calouste Gulbenkian).
Não é clara a diferença entre materialismo e ateísmo na frase de Kant acima - a menos que este queira significar por materialismo o que se chama realismo, doutrina da existência de um mundo físico independente das consciências humanas. É paradoxal que Kant use a «crítica» contra o idealismo quando ele mesmo admite ser idealista transcendental - a menos que esteja a visar como idealismo apenas a doutrina de Berkeley.
Marques escreveu:
«Lembremo-nos que característica inamovível do programa crítico é uma síntese entre os interesses pela estrutura transcendental do conhecimento e a preservação da estrutura dualista, estrutura de toda a teoria da experiência que lhe é própria. Por outro lado o problema do sentido não é, como se viu, limitado à positividade da experiência, pelo que o criticismo se afasta decisivamente de teses neo-empiristas que na primeira metade do nosso século ocuparam um espaço importante e por onde aliás passaram alguns autores fundamentais.» ( António Marques, Criticismo, in Dicionário do Pensamento Contemporâneo, direcção de Manuel Maria Carrilho, página 62-63 , Círculo de Leitores, 1991).
Não é integralmente verdade o que António Marques escreve acima. O criticismo de Kant, ao negar validade, no plano positivo, da verificação, à metafísica, abriu caminho ao neoempirismo lógico, em particular do círculo de Viena. O problema do sentido, entendido como campo verificacionista da verdade, é similar no kantismo e no neoempirismo lógico: só os objectos da experiência empírica e os objectos matemáticos formam o campo do cognoscível, o campo das ciências.
As teses capitais da «Crítica da Razão pura» como «os corpos não são objectos em si, que nos estejam presentes, mas uma simples manifestação fenoménica, sabe-se lá de que objecto desconhecido» (CRP, pág. 363, nota de rodapé, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é colocado por mim) passam desapercebidas a António Marques, tal como não foram entendidas por Bertrand Russell, Wittgenstein, José Gil e a generalidade dos catedráticos de filosofia.
Na medida em que é idealista material - a matéria não passa de representação, ilusão tridimensional no espaço - Kant é ainda mais monista do que as filosofias da identidade de Schelling e Hegel porque estas separam a matéria do indivíduo humano, fazem desta uma exterioridade real frente ao homem (realismo material ou físico).´O criticismo de Kant não se reduz às teses da idealidade/ irrealidade dos objectos materiais e da impossibilidade de demonstrar os objectos metafísicos como Deus e a alma imortal. Engloba ainda a teoria das qualidades primárias e secundárias, originada na Antiguidade clásica com Demócrito, retomada por Galileu, Descartes e John Locke, e o sistema das formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e do entendimento (categorias e juízos puros) e a apercepção transcendental. Kant escreveu:
«O sabor agradável de um vinho não pertence às propriedades objectivas desse vinho, portanto de um objecto, mesmo considerado como fenómeno, mas à natureza especial do sentido do sujeito que o saboreia. As cores não são propriedades dos corpos...» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag. 69, nota de rodapé, Fundação Calouste Gulbenkian).
O discurso retórico, grandiloquente, de António Marques sobre o criticismo de Kant passa por cima destas «minúcias» que são a pedra de toque que distingue os que entenderam Kant com profundidade - tão poucos são! - e os que não o entenderam mais do que a 50% .
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Ao contrário da generalidade dos académicos de hoje, que interpretam Kant como um realista crítico ou realista fenomenológico (exemplificando como interpretam Kant: há fora de mim uma árvore material que é númeno, incognoscível, e a árvore que eu vejo é fenómeno, representação) Schopenhauer compreendeu muito bem o sentido da expressão "realismo empírico" em Kant. Escreveu:
«Sem embargo, o idealismo transcendental não disputa de maneira alguma ao mundo existente a sua realidade empírica, mas diz unicamente que esta não é incondicional, posto que tem por condição as nossas funções cerebrais das quais resultam as formas de percepção, quer dizer, tempo, espaço e causalidade; que por conseguinte, essa mesma realidade empírica não é mais que a realidade de um fenómeno.» (Arthur Schopenhauer, Historia de la filosofía (de los Presocraticos a Hegel) , pag 65, Editorial Quadrata).
E escreveu ainda:
« Vemos pois que Locke desconta da qualidade das coisas em si que recebemos de fora, o que é ação dos nervos dos sentidos; este é princípio simples, compreensível e indiscutível. Mas neste caminho deu Kant, mais tarde, o grande passo gigantesco descontando também o que é ação do nosso cérebro (de essa massa nervosa relativamente muito maior) pelo qual se reduziram então todas as supostas propriedades primárias a secundárias, e as supostas coisas em si, a simples fenómenos, mas ficando então a verdadeira coisa em si despojada de aquelas propriedades e como uma quantidade completamente incógnita, como um verdadeiro x.» (Schopenhauer, ibid, pag 118; o destaque a negrito é de mimha autoria).
Ao falar da redução das qualidades primárias (forma, tamanho, movimento, extensão, substância indefinida) a qualidades secundárias (as que só existem na nossa percepção, na nossa mente) Schopenhauer acentua bem o idealismo de Kant, em que a matéria é interna ao espírito humano. No entanto, é de assinalar que Kant manteve, na esfera idealista do espírito, a distinção das qualidades primárias- que no seu sistema são intersubjetivas, apenas empiricamente reais (realismo empírico) - e das qualidades secundárias - cor, cheiro, sabor, calor e frio, grau de dureza, etc, - que no seu sistema são subjetivas, absolutamente irreais.
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