Em «Janelas para a filosofia», Aires Almeida e Desidério Murcho, autores de manuais escolares do 10º e 11º ano de escolaridade em Portugal, membros influentes do «lobby» da filosofia analítica que inclui Ricardo Santos, João Branquinho, Pedro Galvão, Sara Bizarro e outros académicos, ensaiam uma exposição sobre os problemas centrais da filosofia. Acontece que as janelas que aqueles dois autores abriram dão para o pátio da sofística e, acidentalmente, para a planície vasta da filosofia, olhada de viés, neste livro.
UMA EQUÍVOCA DEFINIÇÃO DE RELATIVISMO
Um dos erros teóricos de Almeida e Murcho patentes neste livro, seguindo aliás o célebre Peter Singer, é o seu conceito de relativismo. Escrevem:
«1. Relativismo
«O relativismo defende que os juízos de valor são relativos às sociedades. Quando uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor não pode estar enganada. Isto contrasta com os juízos de facto...» (Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 40; o destaque a negrito é colocado por mim).
Esta definição é parcialmente incorrecta: diz que os juízos de valor variam de sociedade para sociedade, o que é verdade, em princípio, mas oculta ou escamoteia o facto de relativismo ser a variação de valores no interior de uma mesma sociedade, segundo as classes sociais, os grupos políticos, religiosos e artísticos. É relativismo haver em Portugal uma lei que consagra o casamento de gays e lésbicas e uma maioria social que condena este tipo de casamento, é relativismo haver dentro da mesma sociedade portuguesa defensores dos valores de esquerda e defensores dos valores de direita, religiosos católicos, islâmicos, budistas, agnósticos e ateus,etc.
A frase «Quando uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor não pode estar enganada», incluída na definição de relativismo, é um verdadeiro absurdo. É apresentar relativismo como um dogmatismo absolutista e prova a debilidade do pensamento de Aires Almeida e Desidério Murcho, pseudo-filósofos que fazem «copy paste» de Simon Blackburn, de Peter Singer e outros. Eles não pensam: dizem coisas sem nexo como, por exemplo, que "segundo o relativismo, uma sociedade não pode estar enganada ao condenar ou aceitar algo"...
A PSEUDO-REFUTAÇÃO DA DEFINIÇÃO DE CONHECIMENTO COMO «CRENÇA VERDADEIRA JUSTIFICADA»
Edmund Gettier refutou, aparentemente, a definição clássica de conhecimento como «crença verdadeira justificada». Almeida e Murcho dão razão a Gettier e escrevem:
« Vejamos um exemplo diferente do de Gettier mas que estabelece o mesmo resultado filosófico. A Rita é apreciadora de carros antigos e tem reparado no Citroen boca-de-sapo estacionado num dos lugares reservado à administração, na garagem do edifício da empresa onde trabalha. Ela forma a crença de que um dos administradores da empresa tem um boca-de-sapo. Algum tempo depois, a Rita veio a descobrir, com grande surpresa, que o boca-de-sapo que viu era afinal de um morador daquela zona que se aproveitava para estacionar discretamente ali o seu estimado carro. O morador oportunista só tinha conseguido estacionar ali o seu cargo simplesmente porque o segurança julgava ser o boca-de-sapo de colecção que, por coincidência, a administradora Paula possuía. Até ter sido apanhado».
«O que mostra esta história? Em primeiro lugar, mostra-nos que a Rita formou uma crença verdadeira: que um dos administradores tem um boca-de-sapo. Em segundo lugar, que a Rita tem uma justificação razoável para esta crença: ela própria viu um boca-de-sapo vários dias estacionado num lugar onde apenas podem ser estacionados veículos dos administradores.(...) Parece, pois, que a Rita tem uma crença verdadeira justificada mas não tem conhecimento. Isto parece mostrar que não basta que uma crença verdadeira esteja justificada para haver conhecimento.»(Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 180-181; o destaque a negrito é colocado por mim).
Qual é o erro de raciocínio de Gettier, de Almeida e Murcho relativo a este exemplo da Rita?
É o facto de considerarem que a Rita tinha uma crença verdadeira justificada ao saber que uma administradora tinha um Citroen boca-de-sapo e que um destes automóveis estava estacionado no lugar reservado junto ao edifício da administração da empresa. Pobres Gettier, Almeida e Murcho! A Rita não tinha uma crença verdadeira justificada porque não conhecia a matrícula do boca-de-sapo da administradora Paula e, portanto, não podia garantir, com segurança que o boca-de-sapo, afinal pertença de um vizinho, pertencesse à administradora. Portanto, o argumento de Gettier/ Aires/ Desidério é uma pseudo-refutação da tese de que o conhecimento é crença verdadeira justificada: o conhecimento da Rita é insuficiente, não está justificado.
FALTA DE CLAREZA SOBRE O QUE SÃO OBJECTIVISMO E VALORES OBJECTIVOS
Escrevem Almeida e Murcho:
«Valores objectivos
«O objectivismo defende que alguns valores são objectivos (e não que todos o são). Isto significa que quando uma pessoa ou uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor pode estar enganada, tal como acontece com os juízos de facto.» (Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 44; o destaque a negrito é posto por mim).
O facto de ser falível a condenação por uma pessoa de um juízo de valor, isto é, o facto de uma pessoa se poder enganar nesse juízo, não acarreta que este juízo seja objectivo. A definição de objectivismo dada por estes autores é obscura. Afirmar que objectivismo é o facto de que« quando uma pessoa ou uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor pode estar enganada» é um absurdo. Desidério Murcho e Aires Almeida são incapazes de fornecer uma definição clara de objectivismo dos valores: metem-se por vielas escuras e obscuras do pensamento, onde não há a luz da clareza racional. Não sabem distinguir objectivismo intra-anima ( por exemplo: o número 7 só existe nas mentes humanas mas é objectivo por ser comum a quase todas as mentes) de objectivismo extra-anima (por exemplo: o Mosteiro dos Jerónimos existe em Belém, como edifício de pedra, e é fisicamente objectivo).
Escrevem ainda no mesmo estilo retorcido de contornar as definições claras:
«Para compreender melhor o objectivista, temos de compreender melhor o próprio conceito de objectividade. Há várias concepções de objectividade, mas a mais relevante no que respeita à natureza dos valores considera que a imparcialidade é uma condição necessária da objectividade. O que isto significa é que os juízos de valor que são objectivos são imparciais. Por exemplo, imaginemos que a Daniela defende o juízo de valor de que quem tem olhos azuis deve ter mais direitos do que os outros. Quando lhe perguntamos porquê, responde, com toda a honestidade, que tem olhos azuis, e por isso essa medida iria beneficiá-la. É óbvio que a justificação do seu juízo de valor não é imparcial»
(Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 44; o destaque a negrito é posto por mim).
Há aqui incoerências: Desidério e Aires falam em haver vários conceitos de objectividade, mas não explicitam mais que um, a imparcialidade, e isto é vaguismo; os juízos de valor objectivos não são imparciais, porque são juízos de valor, mas estes dois autores proclamam a sua imparcialidade; o exemplo da Daniela e do seu juízo parcial de favorecer quem tem olhos azuis está envolto numa nuvem de ambiguidade, não se percebe, com clareza, se ilustra o objectivismo ou o subjectivismo dos valores.
Almeida e Murcho não pensam dialecticamente, escarnecem da autêntica filosofia: escrevem de forma elíptica, rodeando o cerne dos assuntos, à maneira dos filósofos analíticos actuais. São o exemplo da anti-filosofia entronizada nas universidades portuguesas e brasileiras e nas grandes editoras que as secundam. Que leva a Gradiva de Guilherme Valente a editar estes frágeis pensadores? Ah, pois: o professor Aires Almeida é o responsável da secção de filosofia da editora Gradiva...Pode ser um pensador medíocre, mas tem poder editorial.
Se querem mergulhar na confusão e citar definições erróneas, no todo ou em parte, assimilem e citem acriticamente o conteúdo deste pobre livro «Janelas para a Filosofia».
www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Desde há mais de uma década, procura impor-se, em Portugal como noutros países do mundo, uma corrente revisionista do ensino da filosofia que visa expurgar deste ou reduzir nele a uma ínfima dimensão, a história da filosofia. Desidério Murcho, um dos arautos desta corrente, escreveu no seu blog «www.pensologosou.no.sapo.pt» um artigo «O que é a Filosofia?» no qual diz o seguinte:
«Nas nossas escolas confunde-se filosofia com história da filosofia e esta última com história das ideias. Uma vez mais, esta confusão parece resultar da ideia de que a filosofia "morreu"; logo, só resta fazer a sua história. Isto é de tal forma subterrâneo que as pessoas não sabem distinguir filosofia de história da filosofia, havendo até quem afirme, com sabor a Hegel, que a filosofia consiste na sua história. É impressionante a quantidade de coisas que se inventam para fugir à filosofia; parece que a filosofia incomoda muita gente.
«A filosofia ocupa-se de problemas, teorias e argumentos. A história da filosofia não se ocupa do estudo dos problemas, teorias e argumentos da filosofia, a não ser como meio e não como fim em si. Para um estudante de filosofia, a história da filosofia é um meio para compreender melhor o que determinado filósofo queria realmente dizer; para compreender melhor determinado problema, teoria ou argumento. Mas é apenas um meio. O fim é perguntar-se se o filósofo tem razão, depois de ter compreendido o que ele queria dizer. Haverá boas razões para pensar que sim? Ou melhores razões para pensar que não? Estudar filosofia é aprender a pensar pela sua própria cabeça nos grandes problemas e argumentos da filosofia, e ter uma atitude crítica em relação às grandes teorias que os filósofos inventaram para tentar resolver esses problemas. » (Desidério Murcho; o negrito é da nossa autoria).
Desmontemos alguns dos sofismas do pseudopensador Desidério:
1) Desidério Murcho opõe, sofisticamente, filosofia a história da filosofia. Segundo ele, ensinar, por exemplo, que Platão sustentava a existência de três mundos - o dos Arquétipos ou do Mesmo; o do Tempo, dos Números Móveis e dos movimentos planetários ou do Semelhante; o da Matéria Física ou do Outro- é «fazer história da Filosofia, mas não filosofia». Destituído da racionalidade holística que é apanágio dos verdadeiros filósofos, Desidério Murcho não compreende sequer que a história da Filosofia é uma exposição de raciocínios e teses de filosofias geradas pelos filósofos A,B,C,D, e que, portanto, é, na sua essência, filosofia ou um mosaico de filosofias.
Pode não ser a filosofia que o aluno deseje mas é filosofia. Pela parte que me toca, na qualidade de professor de Filosofia no ensino secundário, exponho, em regra, aos meus alunos do 11º ano, as bases da teoria de Platão dos três mundos, e da teoria de Pitágoras dos quatro números figuras (um, o ponto; dois, a recta; três, o plano; quatro, o sólido), isto é, dou história da filosofia, que é, simultaneamente, filosofia. Mas não me cinjo a perguntas de memorização nos testes. Elaboro perguntas filosóficas - como por exemplo: Relacione o papel do número nas teorias de Platão e Pitágoras - a partir das quais emergem os alunos criativos e genuinamente filosóficos e toda a turma é solicitada à reflexão filosófica.
A concepção dialéctica é isto: a história da filosofia contém em certa medida o seu contrário, a filosofia, e viceversa.
Os professores que, seguindo Desidério Murcho e os apologistas do vácuo filosófico, não dão teses da história da filosofia e tentam apagar esta em nome da «liberdade de filosofar» conduzem, em regra, os alunos ao analfabetismo filosófico. Abolir a história da filosofia do ensino da filosofia é regressar à idade das cavernas.
É como se os arquitectos do século XXI decidissem derrubar o templo de Diana de Évora, o Mosteiro dos Jerónimos, as catedrais góticas, o Alhambra de Granada e todos os monumentos clássicos do mundo inteiro em nome da liberdade de «descobrir e criar a verdadeira arquitectura». Se as diversas ciências fizessem o mesmo, isto é, se a física não ensinasse as leis de Boyle e Gay-Lussac, a lei da gravitação universal de Newton, o modelo de átomo de Bohr, que aprenderiam os alunos, como se desenvolveriam intelectualmente em tempo útil nas escolas?
2) Não há contradição nenhuma entre ensinar filosofia e ensinar história da filosofia - a não ser, claro, nas mentes confusas de Desidério Murcho e do seu grupo de «iluminados». O ensino da filosofia compõe-se de duas vertentes: história da filosofia (ou história das ideias filosóficas, que é o mesmo) e heurística (arte de pensar e descobrir a verdade por si mesmo). Os professores inteligentes e competentes sabem combinar estas duas vertentes nas suas aulas (a tradição e a criação inovadora). A história da filosofia está dentro da filosofia embora não esgote a extensão desta. Não são mutuamente extrínsecas entre si.
Ao invés do que sugere Desidério, estudar as ideias de Platão, Guilherme de Ockam, Nicolau de Cusa, Leibniz ou Schopenhauer não impede ninguém de filosofar, de pensar pela sua própria cabeça, antes pelo contrário, estimula a verve filosófica de cada aluno. Existe o risco da memorização na avaliação? Sim, mas a memória é necessária à inteligência criativa e não é má, em si mesma. Há um risco ainda maior nos que optam por abolir a tradição filosófica: o do vacuismo anti historicista e conteudal, susceptível de produzir alunos «livres» e ignorantes, porque não solicitados aos desafios do pensamento consagrado historicamente.
Aristóteles escreveu, por exemplo:
´
«O agora é a continuidade do tempo, como já dissemos, pois enlaça o tempo passado com o tempo futuro e é o limite do tempo, já que é começo de um tempo e fim de outro. Mas isto não é evidente como é o ponto, que permanece. O agora divide potencialmente, e enquanto divide é sempre distinto, mas enquanto une é sempre o mesmo, como no caso das linhas matemáticas. Porque no pensamento o ponto nem sempre é uno e o mesmo...» (Aristóteles, Física Livro IV, 222 a)
É antifilosófico estudar isto? De que tem medo Desidério Murcho, senão do pensamento profundo de Aristóteles que o ultrapassa infinitamente, como ultrapassa a grande maioria dos catedráticos de filosofia contemporâneos?
3) Não é verdade que a história da filosofia seja apenas um meio para os estudantes compreenderem os problemas filosóficos. É um meio e também um fim porque há correntes - lembro o estruturalismo - que recusam dissociar o conteúdo filosófico do contexto social, político, cultural e religioso em que foi gerado. É também um fim do ensino da Filosofia saber, por exemplo, que o «cogito» de Descartes foi formulado no século XVII no contexto da Contra Reforma e que o «imperativo categórico» de Kant se estruturou nos alvores da revolução burguesa em França de 1789-1795.
Só um pseudopensador antidialéctico como Desidério Murcho, que reduz a slogans superficiais e populistas a sua crítica à filosofia genuína, opõe filosofia a história da filosofia. Separa a reflexão, atitude por excelência filosófica, do seu conteúdo ou produto, tal como Descartes separou o cogito (EU PENSANTE) das ideias pensadas. Mecanicismo...
O sofisma de Desidério formula-se assim:
«A história da filosofia não é filosofia».
«Os professores do secundário ensinam, em regra, história da filosofia,
«Logo, os professores do secundário não ensinam filosofia».
E refuta-se deste modo:
«A história da filosofia é, em parte não filosofia (história) e em parte filosofia.»
«Os professores do secundário ensinam história da filosofia».
«Os professores do secundário ensinam filosofia, sobretudo aqueles que insistem na heurística adicionada à transmissão da filosofia tradicional».
Desidério não é um pensador genuíno, profundo, ainda que a sua produção de artigos, livros e entrevistas seja abundante e o seu trabalho como tradutor de livros de filosofia seja notável. De facto, é um sofista "analítico", um antifilósofo cujas teses e artigos são abundantes em paralogismos que temos posto a nú noutros artigos deste blog. Quase reduz a filosofia à argumentação retórica, não compreendendo sequer que há uma vertente de rigor científico no interior da filosofia que ele não domina e teme - daí o seu «ódio» ao hegelianismo e ao positivismo e a outras correntes.
No entanto, o seu activismo jornalístico de homem do marketing «filosófico» - escreve um pouco de tudo em toda a parte, com a insustentável leveza do «não ser» dos cronistas sociais, aproveita o elogio do Eduardo Prado Coelho, ou de outro catedrático, a amizade de editores de filosofia com fraco critério de qualidade para espalhar, em livros, artigos de jornais e revista, as «suas» teses- conferiram-lhe uma projecção que o elevará ao doutoramento no Kingston College ou no Brasil («para inglês e brasileiro ver»).
Assim, se somará a uma plêiade de catedráticos mais ou menos incompetentes e arrogantes, «bispos» da igreja «filosófica» que se consubstancia nas cátedras de filosofia institucional em Portugal, Reino Unido e noutros países.
Enquanto nós, talvez os genuínos filósofos, meditamos e produzimos teses, na sombra da pirâmide do conhecimento, sem a vertigem do sucesso fácil a que Desidério acedeu.
Nota: Por muito que pareça o contrário, a nossa crítica a Desidério Murcho não é de carácter pessoal. Ele é decerto, uma pessoa estimável, melhor que muitos catedráticos de Filosofia entronizados nas suas vaidades. Criticamos, sim, as suas ideias e o modelo de Universidade que representa.
f.limpo.queiroz@sapo.pt
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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