Vários erros pautam a construção de perguntas de escolha múltipla no exame Nacional de Filosofia, Prova 714/ 2ª Fase, realizada em 17 de Julho de 2014. Vejamos exemplos de questões em que se pede seleccionar a «única opção correcta» entre quatro hipóteses, na versão 1 desta prova.
«2. Os deterministas moderados defendem que:
(A) Nenhuma acção é causada
(B) todas as acções são causadas e algumas são livres
(C) nenhuma acção é livre.
(D) todas as acções são livres e algumas não são causadas.»
Segundo o autor ou autores da prova a resposta certa é a (B).
Crítica minha: nenhuma das respostas está correcta. A hipótese B é incoerente: se todas as acções são causadas ( isto é: determinadas por um mecanismo não livre; o termo «causadas» é uma das imperfeições da filosofia analítica) então algumas não podem ser livres porque livre exclui causado/determinado. Ora o que dizem os «deterministas moderados»? Que grande parte das acções humanas são causadas, isto é determinadas, obedecem a leis necessárias - exemplos: escolher um emprego a ganhar menos que o salário mínimo nacional porque há fome em casa (determinismo biológico) e é preciso empregar-se de imediato; encher-se de pânico e fugir de um incêndio que irrompe em um compartimento - e a outra parte são acções livres, geradas no livre-arbítrio - exemplos: optar racionalmente entre frequentar a faculdade de arquitectura ou a faculdade de letras; escolher o lugar onde se vai passar férias, após estudar as rotas, os preços, a paisagem, etc.
Vejamos outra questão.
«7. Considere as seguintes afirmações:
1. Os juízos de valor são apenas uma questão de gosto pessoal.
2. Em matéria de valores, todas as opiniões são erradas.
3. Os juízos de valor dependem dos contextos sociais.
Acerca dos valores os relativistas consideram que:
(A) 1, 2 e 3 são verdadeiras.
(B) 1 e 2 são verdadeiras; 3 é falsa.
(C) 3 é verdadeira; 1 e 2 são falsas.
(D) 1 e 3 são verdadeiras; 2 é falsa.»
Segundo os autores da prova, a resposta certa é a (C).
Crítica minha: A resposta correcta é a (D). O que é o relativismo? É a doutrina segundo a qual a verdade, os valores, variam de época a época, de país a país, de classe a classe social no interior de cada país, de pessoa a pessoa (subjectivismo). O relativismo inclui o subjectivismo, expresso no conteúdo na frase « 1. Os juízos de valor são apenas uma questão de gosto pessoal.» . Logo, os juízos 1 e 3 são professados pelo relativismo (note-se que o autor do exame nem tem clareza suficiente para definir relativismo) e, portanto, só a resposta D está correcta.
«8. De acordo com Rawls, o véu da ignorância garante:
(A) Que nenhum sujeito se encontra na posição original.
(B) que a posição original tem um carácter hipotético.
(C) a equidade na criação de uma sociedade igualitária.
(D) a equidade na escolha dos princípios da justiça.»
Segundo o autor da prova, a única resposta certa é a (D).
Crítica minha: há duas respostas correctas, a (B) e a (D). A posição original é, na teoria de Rawls, a situação de uma democracia de base, uma grande assembleia de cidadãos, que desconhecem a riqueza e a influência político-social uns dos outros (véu de ignorância) e que debatem livremente e escolhem as leis do país ou região a que pertencem. Trata-se de uma situação hipotética pois é impossível abstrair das pessoas reais que debatem e do seu currículo - o grande empresário X, o deputado Y, o ex presidente da república Z. Portanto, a resposta B está certa, além da D.
Vejamos outra questão superficialmente concebida.
«10. Segundo Kuhn existem períodos de ciência normal, durante os quais:
(A) se registam progressos cumulativos.
(B) diversos paradigmas competem entre si.
(C) os cientistas procuram a falsificação de teorias.
(D) nunca se descobrem anomalias.
Segundo os autores, a única resposta certa é a (A).
Crítica minha: as respostas A e B estão correctas. De facto, na fase da ciência normal, isto é, durante a década ou décadas ou séculos em que um paradigma reina incontestado - exemplo: a vacinação, desde o início do século XX - há sempre resistência a esse paradigma, competição com outros paradigmas, ainda que essa competição seja abafada, silenciada. No caso da vacinação, desde o século XIX até hoje sempre houve o paradigma da não vacinação, que apresenta as vacinas como perigosas, factores de degenerescência da raça humana, e apresenta a saúde natural (alimentação de base frutariana, exercício físico adequado, etc) como alternativa à inoculação no homem de toxinas de animais, em competição com o paradigma oficial.
Este tipo de erros em uma prova nacional de filosofia demonstra bem a mediocridade intelectual do autor ou autores, provavelmente académico/os a leccionar filosofia na universidade. E é o espelho de uma universidade portuguesa onde predomina o discurso retórico falacioso, a ignorância do pensamento dialético, o sectarismo vesgo dos «lógicos» da filosofia analítica.
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Vários equívocos impregnam o manual do professor Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano, de Domingos Faria, Luís Veríssimo e Rolando Almeida, revisão científica de Sofia Miguens, da editora Sebenta
O CEPTICISMO É AUTORREFUTANTE? É INSUSTENTÁVEL?
Sobre o cepticismo, lê-se no manual:
« Objecções ao cepticismo
O cepticismo é insustentável
«Alguns autores encaram o cepticismo como uma posição autorrefutante. Uma perspectiva é autorrefutante quando se refuta a si mesma, isto é, quando demonstra a sua própria falsidade. Em que medida se pode considerar que o cepticismo incorre neste tipo de erro? Bem, a resposta salta à vista: é simplesmente contraditório afirmar que se sabe que o conhecimento não é possível. Afinal de contas, se o conhecimento fosse verdadeiramente impossível nem isso se poderia saber. Mas será que isto constitui uma ameaça séria para o cepticismo?» (...)
«Há, contudo, uma crítica mais séria com a qual o cepticismo tem de lidar. No texto que se segue, Bertrand Russell, um dos mais importantes filósofos do século XX, faz notar que, embora possamos ter razões para suspender a crença em relação a este ou àquele assunto, é implausível pensarmos que temos razões para colocar em suspenso todas as nossas crenças em simultâneo.
"É claro que é possível que todas ou qualquer uma das nossas crenças possa estar errada, e consequentemente todas devem ser adoptadas com pelo menos um ligeiro elemento de dúvida. Mas não poderemos ter razão para rejeitar uma crença excepto com base noutra crença qualquer" . (Bertrand Russell, Os problemas da filosofia, Trad. Desidério Murcho, Lisboa, Edições 70, 2008, p.87)
«Com estas palavras, Russell pretende defender que, embora uma certa forma de cepticismo seja recomendada para nos prevenir de dar assentimento precipitado a algumas crenças, o cepticismo extremo é uma posição insustentável do ponto de vista racional. »
(Domingos Faria, Luís Veríssimo e Rolando Almeida, Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano, revisão científica de Sofia Miguens, editora Sebenta, pág. 137)
Esta argumentação dos autores do manual, e de Bertrand Russell, de que "o cepticismo é autorrefutante, insustentável" cai pela base se atentarmos na definição integral de cepticismo: «Corrente filosófica que afirma ser impossível o conhecimento em todos os domínios, à excepção do conhecimento da tese de que "nada se pode conhecer, tudo são aparências fugazes ou ilusões". Esta definição não se auto contradiz. A definição é a ilha no meio do mar da incerteza. O mar não submerge a ilha. Uma das falhas do pensamento analítico é a destruição da barreira entre definição e objecto definido, fazendo com que este último absorva e destrua a definição que o engloba e transcende.
Qual é o valor da argumentação de Russell contra o cepticismo? Nenhum. Ao dizer que «não podemos refutar uma crença a não ser que tenhamos outra» Russell não demonstra nada, faz uma profissão de fé (pistis, em grego) nos orgãos dos sentidos e nos conhecimentos erguidos a partir de estes. Ademais o cepticismo radical rejeita todos os conhecimentos/ crenças, com base na crença de que «nada se pode conhecer», portanto, cumpre a exigência de Russell no texto acima de não se ficar no vazio, sem crer em nada.
Por que razão podemos, segundo Russell, ser parcialmente cépticos mas não globalmente cépticos? Já sabemos que o céptico global é só 99% céptico porque aceita um único dogma, o de que «tudo é incognoscível»; em todo o yang há um pouco de yin. Russell não justificou a sua tese. Ninguém pode justificar o anti cepticismo de maneira categórica, excluente. É uma questão de gosto, de perspectiva. Do mesmo modo que ninguém pode refutar o comunismo leninista dizendo que «há mais liberdade individual sob o capitalismo de mercado e a democracia parlamentar». A refutação é intersubjectiva: os conservadores, os liberais e socialistas aceitam que o «leninismo é mau, ditatorial», os comunistas, vivendo em democracia capitalista, preferirão sempre a vida da Cuba leninista da "ditadura do proletariado" à vida dos EUA ou da Europa capitalista.
FALSA DICOTOMIA CEPTICISMO-FUNDACIONALISMO
O manual estabelece uma dicotomia entre cepticismo e fundacionalismo (ver gráfico da página 178, com bifurcação entre estes dois conceitos):
«O cepticismo é a perspectiva segundo a qual devemos suspender o juízo relativamente à verdade ou falsidade de uma proposição, pois no geral as nossas pretensões de conhecimento são injustificadas.» (...)
«O fundacionalismo rejeita a conclusão do argumento céptico da regressão infinita, pois defende que nem todas as crenças se justificam com base noutras crenças - existem crenças básicas, que são de tal modo evidentes que se justificam a si mesmas.»
(Domingos Faria, Luís Veríssimo e Rolando Almeida, Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano, revisão científica de Sofia Miguens, editora Sebenta, pág. 178-179)
Esta dicotomia cepticismo-fundacionismo é falsa, fruto do magma da confusão dos autores e revisora. O cepticismo pertence ao género ontognosiológico, ao passo que fundacionismo pertence ao género protológico. Não podem opor-se: são espécies de géneros diferentes. Sobre isto Blackburn, Zizeck e a multidão de autores analíticos ou fenomenológicos nada sabe. É dialéctica, no sentido mais alto do termo.
David Hume era céptico sobre a natureza da matéria exterior ao dizer que não se pode demonstrar que há objectos físicos como mesas, casas e montanhas, fora do nosso espírito, e ao mesmo tempo, era fundacionista ao colocar as impressões empíricas e as relações filosóficas inerentes à razão como fundamento do limitado conhecimento que o ser humano possui.
Os primeiros cépticos gregos Pirron e Timón eram fundacionistas uma vez que afirmavam poder conhecer as aparências - fundavam-se nas aparências - mas não a essência oculta e o sentido oculto das coisas. Assim, fundavam-se nos sentidos. Eram empiristas, de certo modo como David Hume seria séculos mais tarde.
A AUSÊNCIA DE REFERÊNCIA À OPOSIÇÃO REALISMO-IDEALISMO
Se consultarmos o glossário deste manual, não encontramos as definições de idealismo nem de realismo. Ora é impossível explicar cabalmente a gnosiologia de Descartes sem explicar e posicionar as teses do realismo e do idealismo ontognoseológico. Em 20 páginas a explicar o pensamento de Descartes, - da página 141 à página 161 - não há uma única referência aos conceitos de realismo e idealismo gnosiológicos, o que prova a fragilidade teórica do manual.
ERROS NAS RESPOSTAS DE ESCOLHA MÚLTIPLA
Como é habitual nas perguntas de escolha múltipla forjada por autores (de)formados pela escola da filosofia analítica, este manual e guias anexos contêm erros abundantes. Vejamos exemplos no «Guia do Professor, Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano».
No Teste Sumativo 4, figura a seguinte questão que pede uma única resposta certa, excluindo as outras:
6. En filosofia recorre-se à argumentação, ao diálogo e à discussão racional para:
A. descobrir como as coisas realmente são.
B. descobrir como prever o futuro.
C. descobrir a opinião de cada um.
D. descobrir como as coisas são para cada um. («Guia do Professor, Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano», pág. 32)
Segundo o manual, a única resposta certa é a 6-A.
Crítica Minha: não há uma mas três respostas certas, a 6-A, 6-C e 6-D. É absolutamente arbitrário e ilógico dizer que a filosofia visa «descobrir como as coisas realmente são» (hipótese A) mas não visa «descobrir como as coisas são para cada um» (hipótese D). Isso é fechar a porta da subjectividade à filosofia. E está ainda certo dizer que a filosofia visa «descobrir a opinião de cada um» (hipótese C). Por aqui se pode ver a roleta russa a que os alunos estão sujeitos com uma pergunta mal concebida de várias respostas certas.
No Teste Sumativo 5, figura a seguinte questão que pede uma única resposta certa, excluindo as outras:
2. O objecto do conhecimento prático é...
A. uma pessoa, lugar ou objecto.
B. uma proposição.
C. uma proposição verdadeira
D. uma actividade.
(«Guia do Professor, Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano», pág. 32)
Segundo o manual, a única resposta certa é a 6-D.
Crítica minha: há duas respostas certas, 6-A e 6-D. Que é o conhecimento prático? Não é apenas o saber-fazer. É também o conhecimento por contacto, isto é, a visão, audição, tacto, sabor, etc, das coisas diante de nós. Ora ver uma pessoa ou um objecto, vivenciar um lugar, é conhecimento prático. Opõe-se ao conhecimento teórico ou proposicional.
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Os professores que seguem a linha das "perguntas de escolha múltipla com uma só resposta certa, expressa num X colocado pelo aluno em uma das quadrículas", dão, frequentemente, erros na construção dos testes de filosofia. Falta-lhes a visão do uno que é própria da dialética: é comum isolarem a «verdade» numa única proposição de entre quatro, sem se aperceberem que formularam mais que uma resposta certa. Milhares de professores de filosofia cometem este tipo de erro de hiper-análise: vêem a árvore, mas não a floresta.
Presumo que a maioria dos que ensinam filosofia são de nível intelectual mediano ou mesmo medíocre. Há até causas sociológicas que ajudam a explicar este fraco nível: em geral, os professores entre os 30 e os 50 anos de idade não filosofaram nem lutaram como antifascistas antes de 25 de Abril de 1974, não conheceram as doutrinas marxista e anarquista, a dialética, o estruturalismo, nem a metafísica de direita tradicional (Guenón, Évola, Mircea Eliade, etc). São duas gerações deficitárias na amplitude do saber filosófico, sugadas, em muitos casos, pelo buraco negro da "filosofia analítica".
Eis algumas questões mal construídas em um teste de diagnóstico de filosofia do 10º ano de escolaridade em Portugal, de Setembro de 2011 extraído do blog «Dúvida Metódica», de Carlos Pires e Sara Raposo, que a propaganda falaciosa de Domingos Faria e outros amigos de Desidério Murcho e Aires Almeida apresenta como «um dos melhores blogs de filosofia na internet»(!):
1.3) A diversidade de opiniões existe, por exemplo, em relação a assuntos como:
A. A religião, a política e a geometria.
B. As relações sociais e os assuntos da vida.
C. A política e a geometria
D. A religião e a matemática.
E. Nenhuma das respostas anteriores é correcta.
Crítica: À primeira vista, ser-se-ia levado a supor que só a resposta B é correcta. Mas não é assim: a respostas A e C estão igualmente correctas porque na geometria há divergência de opiniões, há geometrias euclidianas e não euclidianas - por exemplo, a concepção de espaço curvo, ondulatório na teoria da relatividade de Einstein, supõe uma geometria não euclidiana e está longe de recolher a unanimidade de opiniões dos geómetras. A questão 1.3 está, pois,mal construída.
1,8) A passagem da teoria geocêntrica para a teoria heliocêntrica é um exemplo que permite demonstrar que:
A) Uma opinião numa época foi rejeitada numa época seguinte.
B) As opiniões mudam de época para época.
C) Todas as opiniões aceites numa época consideram-se erradas na época seguinte.
D) Algumas opiniões erradas consideram-se verdadeiras na época seguinte.
E) Nenhuma das respostas anteriores é correcta.
Crítica: A autora desta questão, Sara R., pretende que só uma das respostas é correcta. Ora, se reflectirmos bem, verificamos que tanto a resposta A) como a B) e a D) estão correctas. Portanto, esta questão está mal construída e vai penalizar alunos que responderam bem mas diferente da única reposta que se considera certa.
E, em um teste de Maio de 2011, de Sara Raposo, figuram as seguinte questões:
2.2 "...Concepção de Deus segundo a qual este é único, todo-poderoso, omnisciente, misericordioso, absolutamente bom, etc" expressa uma posição:
A) ateísta.
B) teísta.
C) religiosa
D) agnóstica
E) Nenhuma das alternativas anteriores é correcta.
Crítica: Há duas respostas correctas e não uma- supostamente a B) teísta - como pensou a autora da questão. O teísmo é espécie dentro do género religião. A resposta C) está também correcta: a crença no Deus único e misericordioso é uma posição religiosa. A questão 2.2 possui, pois, certa ambiguidade.
2.3 A alínea que constitui um exemplo de politeísmo é:
A) Alá.
B) Zeus.
C) os deuses gregos;
D) Jesus Cristo.
E) Nenhuma das alternativas anteriores é correcta.
Crítica: A autora do teste presume que só há uma resposta correcta: a C), os deuses gregos. Mas de facto há duas respostas correctas: a resposta B), Zeus, o pai dos deuses do Olimpo, está igualmente certa, visto que Zeus é apenas a figura mais importante do panteão dos deuses gregos, um politeísmo. Logo, a questão 2.3 é deficiente.
CONFUSÕES SOBRE DETERMINISMO
Sara Raposo, que com Carlos Pires tem a autoria do blog «Dúvida Metódica», escreveu no post «Se o determinismo radical for verdadeiro, salvar 155 pessoas não tem qualquer mérito, publicado em 3 de Fevereiro de 2009 nesse blog:
«A palavra “determinismo” exprime a ideia de que tudo o que acontece é o efeito ou o resultado de um acontecimento anterior. Assim, os acontecimentos não ocorrem devido ao acaso, têm sempre uma causa que, ao ser conhecida, nos permite compreender a razão de ser dos factos.
«Assim, dizemos que o acontecimento X causou o acontecimento Y (por exemplo: ao largar uma caneta, a existência da força gravítica é a causa da sua queda para o solo). Assim, torna-se possível, conhecido o nexo causal entre determinados fenómenos, prever a sua ocorrência, pois supomos que há uma relação necessária entre a causa e o efeito, o que significa que a presença de um conduz inevitavelmente à ocorrência do outro. Esta concepção filosófica permite descrever, segundo a teoria do determinismo radical, não só os fenómenos da natureza como também as acções humanas.» (Sara Raposo. «Se o determinismo radical for verdadeiro, salvar 155 pessoas não tem qualquer mérito»; o bold é posto por mim).
Definir determinismo como "a teoria que exprime a ideia de que tudo o que acontece é o resultado de um acontecimento anterior" é um erro, erro generalizado entre os filósofos analíticos. Esta errónea definição dada por Sara Raposo exprime, sim, o princípio da razão suficiente formulado por Schopenhauer - que poderíamos designar por causalismo: nada acontece sem uma causa - mas não o determinismo que postula que nas mesmas circunstâncias as mesmas causas A produzem sempre os mesmos efeitos B. Quando se diz que Deus criou o mundo por um acto livre existe um acontecimento anterior à criação - a vontade divina - mas não há aí qualquer determinismo, mas sim um «livre-arbítrio» divino, uma causa incausada. Ora o livre-arbítrio é causa de muitos acontecimentos e, onde ele existe, há causa sem determinismo.
NÃO SE PODE CONHECER O QUE É FALSO?
A propósito de conhecimento, pairam igualmente confusões neste blog «Dúvida Metódica». Carlos Pires escreve:
«Só se pode conhecer o que é verdadeiro, aquilo que de facto sucede. Aquilo que não sucede não pode ser conhecido, pois nada há para conhecer.
Tal como uma pessoa se pode enganar e julgar ver algo sem realmente estar a ver, também se pode enganar e julgar que conhece e afinal não conhecer.
Mas isso não significa que a pessoa tenha um conhecimento falso. É comum ouvirmos falar de conhecimentos falsos. No entanto, essa expressão não pode ser entendida literalmente, é apenas uma maneira de falar. Se conhecer é conhecer verdades, se não se podem conhecer falsidades, então não há conhecimentos falsos. Se uma crença é falsa, não é conhecimento. Se uma crença constitui conhecimento, não é falsa. Por isso, há crenças falsas mas não conhecimentos falsos.»
«Em suma: para haver conhecimento é preciso haver verdade. Esta é uma condição necessária do conhecimento.» (Carlos Pires, O carácter factivo do conhecimento, in «Dúvida Metódica»; o bold é posto por mim).
O termo conhecimento possui dois sentidos, como exige a dialética, disciplina estranha a Nigel Warburton, Simon Blackburn, João Branquinho, Desidério Murcho e outros divulgadores da filosofia analítica: o conhecimento de ideias e teorias, que são interpretações da realidade; o conhecimento da realidade, objectiva em si mesma. Por isso, é possível conhecer falsidades, que são ideias, imagens e teorias erróneas. Exemplo: pode conhecer-se a teoria da vacinação, uma falsidade científica que propaga a ideia de imunização através da inoculação de vírus vivos ou atenuados e toxinas no organismo humano; e pode conhecer-se a verdade objectiva de milhares de pessoas não vacinadas que nunca contraíram a "respectiva" doença, a verdade objectiva de pessoas com regimes de saúde natural (veganismo, macrobiótica, lacto-ovo-vegetarianismo, etc) que gozam de maior saúde do que os milhões de infectados por vacinas.
A tese de que "só pode conhecer-se a verdade" é antidialética e totalitária: não há verdade sem falsidade, conhecer a verdade implica conhecer ao menos o vulto da não verdade, isto é, da falsidade. Há duas noções de verdade em foco: a verdade em si mesma, objectiva, e a verdade como apreensão pelo sujeito (aletheia). Isto não é entendido por Carlos Pires nem pelos articulistas da «Crítica na rede», conhecido veículo de divulgação do confuso pensamento analítico em Portugal e Brasil.
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