Uma das linhas de força da filosofia de Heidegger é a tentativa de destruição ou de rectificação da linguagem que foi sedimentando, ao longo dos séculos, no leito do rio da ontologia e da filosofia. Muitos méritos cabem a Heidegger nesta tarefa hermenêutico-etimológica. Recuperou a tradição que Platão expusera no «Crátilo» - as letras e as palavras como «pinturas», imagens, com fundamento analógico, das ideias e objectos físicos e que Aristóteles prosseguiu na «Metafísica» . Mas há esforços de Heidegger que, a meu ver, resultaram inúteis: é o caso, por exemplo, da tentativa de atribuir à palavra mundo um significado distinto do de «meio ou ambiente envolvente de numerosas entidades físicas ou espirituais».
«Mundo, todavia, na expressão «ser-no-mundo», não significa, de modo algum, o ente terreno, em oposição ao celeste, nem mesmo o mundano em oposição ao "espiritual". "Mundo", naquela expressão, não significa de modo algum, um ente e nenhum âmbito do ente, mas a abertura do ser. O homem é e é homem enquanto é o ex-sistente. Ele está postado, num processo de ultrapassagem, na abertura de ser, que é o modo como o próprio ser é; este projectou a essência do homem, como um lance, no cuidado de si. Projectado desta maneira, o homem está postado "na abertura do ser". Mundo é a clareira do ser na qual o homem penetrou a partir da condição de ser-projectado de sua essência. O "ser-no-mundo" nomeia a essência da ek-sistência, com vista à dimensão iluminada, desde a qual desdobra o seu ser o ex da ex-sistência. Pensada a partir da ex-sistência, mundo é, justamente, de certa maneira, o outro lado no seio da e para a ex-sistência.» ((Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães Editores, Págs 99-100; a letra; a letra negrita é posta por mim ).
Em termos simples, o ser compara-se a uma floresta densa da qual é projectada a essência do homem numa clareira da floresta designada por mundo. Mas a clareira é, simultaneamente, interior e exterior ao eu humano. Interior, em parte: o mundo entra dentro do homem, na medida em que só este tem a percepção sensorial-intelectual da totalidade dos seres que o povoam; o mundo está fora do homem porque, como rede, se estende sobre e engloba os "entes diante dos olhos" (exemplo: nuvens, mares, florestas) , os «entes à mão» (exemplo: automóveis, talheres, computadores, utensílios à mão») e até o «ser aí» - cada homem - em certa medida.
Para Heidegger, o mundo não é o universo físico (mundo terreno) nem o espaço metafísico (mundo espiritual divino). Não é o âmbito do ente. O que é então? É a abertura do ser, a clareira do ser.
Mas isto é, de facto, algo incoerente. A abertura e a clareira são, apesar de Heidegger o negar, um âmbito, um espaço, físico ou meramente psíquico, onde são dispostos os entes (árvores, cães, planícies, casas, mares,etc) . Seja intra anima ou extra anima ou ambas a coisas de facto, é ambas as coisas - o mundo é sempre um âmbito, um vasto «círculo» ou «esfera» no seio do qual se plantam os entes.
O mundo pertence ao ser e ao homem, que é o ser-aí. Em O ser e o tempo, Heidegger disse expressamente:
«El mundo no es ontologicamente una determinación de aquellos entes que el ser ahí, por esencia, no es, sino un carácter del "ser-ahí" mismo.» ( Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pag 77).
O mundo é, por conseguinte, um campo sensorial-conceptual que só o homem ( ser aí) possui e no qual se projectam os objectos "físicos" ou "entes diante dos olhos". Idealidade do mundo mas não necessariamente dos objectos que o povoam, pois Heidegger diz:
«Los entes intramundanos son proyectados sin excepción sobre el fondo del mundo, es decir, sobre un todo de significatividad a cuyas relaciones de referencia se ha fijado por anticipado el curarse de en cuanto ser en el mundo. Cuando los entes intramundanos son descubiertos a una con el ser del "ser ahí", es decir, han venido a ser comprendidos, decimos que tienen "sentido"). .» ( Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pag 77; a letra negrita é nossa).
Isto significa que os entes intramundanos rios, campos, animais não fazem parte do ser do homem (ser aí) são-lhe exteriores ou, no mínimo, correlatos (exteriores-imanentes como gémeos siameses). Não sabemos, pois, se a matéria existe em si mesma. Sabemos, sim, que, na óptica de Heidegger, os objectos são exteriores ao ser-aí - mas serão ideias autobsistentes ou corpos físicos reais? Ou algo indeterminado? Na imagem heideggeriana do ser como floresta e do ser-aí (homem) como colocado na abertura ou clareira do ser (mundo) não se esclarece o lugar dos entes intramundanos: estão na clareira mas foram projectados. A partir de onde? Heidegger não o diz. Parece-me lógico que os entes intramundanos (exemplo: a nuvem, a pedra, a montanha) sejam projectados desde o interior da floresta densa onde subsistem, presumivelmente, como «árvores», algo comparáveis aos arquétipos platónicos.
Na passagem abaixo, Heidegger rejeita o realismo e a própria fenomenologia como corrente intermédia dos correlativos para afirmar um ontologismo ´- a realidade, nem material nem espiritual, fora do sujeito, é o ser - que tem, sem dúvida, a influência do idealismo kantiano, fazendo corresponder o ser ao númeno kantiano exterior ( objecto incognoscível, exterior, como Deus e mundo metafísico) e o ser-aí (Dasein) ao númeno kantiano interior (objecto interior, como alma imortal e liberdade).
«O homem jamais é primeiramente do lado de cá do mundo como um «sujeito», pense-se este como «eu» ou como «nós». Nunca é também primeiramente e apenas sujeito, que, na verdade, sempre se refere, ao mesmo tempo, a objectos, de tal maneira que a sua essência consistiria na relação sujeito-objecto. Ao contrário, o homem primeiro é, em sua essência, ex-sistente na abertura do ser, cuja aberta ilumina o «entre» em cujo seio pode «ser» uma «relação» de sujeito e objecto. » (Heidegger, Carta sobre o Humanismo,Págs 99-100).
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«La phénoménologie n´est en fin de compte ni un matérialisme, ni une philosophie de l´esprit. Son opération propre est de dévoiler la couche préthéorétique où les deux idéalisations trouvent leur droit relatif et sont dépassées.» (Maurice Merleau-Ponty, Signes, Folio, Essais, pag 268).
Il faut noter que Merleau-Ponty designe le réalisme gnoseologique par le mot matérialisme et l´idéalisme par l´expression philosophie de l' esprit et classifie les deux como «idéalisations». Cela signifie que la position des deux, émettant un jugement d´existence sur le mond matériel «autour de nous», au delá de la verité donnée dans la perception sensorielle, est vraiment métaphisique et ne peut pas être soutenue avec rigueur. Le depássement du réalisme et de l´idéalisme par la phénoménologie est, à bout de compte, un recul dans l´aréa des certitudes «environnantes».
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