É possível distinguir claramente eudemonismo (do grego eudaimonismós, felicidade) de hedonismo (hedoné, em grego, prazer)?
Pedro Madeira, no seu prefácio ao Utilitarismo de John Stuart Mill, uma edição da Gradiva, supõe possível essa distinção nos seguintes moldes(o negrito é nosso):
«O hedonismo afirma que certas experiências mentais são boas e certas experiências mentais são más; mas por que razão pensar que são as experiências mentais que são boas ou más? Os exemplos precedentes parecem mostrar o contrário. A melhor coisa a fazer, para um utilitarista, é simplesmente abandonar o hedonismo e adoptar uma versão de eudemonismo. O eudemonismo é a posição, de inspiração aristotélica, de que o bom é a felicidade. De acordo com o eudemonismo ser feliz não é ter experiências mentais prazenteiras, mas sim ter uma vida boa. Se todos os nossos amigos falassem mal de nós, mas agissem como nossos amigos na nossa presença, então, de acordo com o eudemonismo, talvez pudéssemos ter experiências mentais prazenteiras decorrentes de os tomarmos como amigos, mas não seríamos verdadeiramente felizes.» (Pedro Madeira in prefácio de Utilitarismo, de John Stuart Mill, Gradiva, Lisboa, 2005, pag. 22; o destaque ).
Considero confuso este texto. O que é a felicidade? Um estado de prazer ou uma sucessão de estados de prazer (mental, emocional, físico). A felicidade é o prazer espiritualizado, sentido e depois rememorado.
Separar a felicidade do prazer é impossível, tal como é impossível separar a luz da cor.
O prazer - intelectual da contemplação, sentimental da família e amigos, vital da saúde plena e sensorial do momento- é a determinação essencial da felicidade. O exemplo dado por Pedro Madeira, para tentar distinguir hedonismo (doutrina que assimila o prazer ao bem, e tem, o que Madeira não diz, duas modalidades: epicurista e cirenaísta) de eudemonismo (doutrina que considera a felicidade a contemplação e a filosofia desprendida de interesses materiais; à letra: a prevalência do bom génio interior ou daimon), consistindo na atitude dúplice dos amigos que falam mal de nós nas costas e nos agradam ou nos favorecem diante de nós, é nebuloso: por que razão não poderíamos ser felizes enquanto acreditássemos na bondade aparente de amigos que, por detrás, diziam mal de nós?
Não parece possível, pois, extrair o eudemonismo do ovo do hedonismo a que pertence, como gema. De facto, hedonismo é género e eudemonismo uma sua espécie: o eudemonismo de Aristóteles, expresso no "Ética a Nicómano", coincide praticamente com o hedonismo dos prazeres superiores ( intelecto, amizade intelectual, desprezo das paixões corporais intensas) teorizado por Epicuro e ambos se opõem ao hedonismo dos prazeres inferiores (sensualidade gastronómica, sexual, etc) postulado por Aristipo de Cirene. Hedonismo e eudemonismo não são, globalmente falando, conceitos absolutamente extrínsecos, correntes independentes entre si, como supõem Pedro Madeira e outros estudiosos da ética. Aliás, ao contrário do que propõe o texto acima, um utilitarista nunca pode abandonar o hedonismo porque utilitarismo é, em si mesmo, um hedonismo não egocêntrico.
Pedro Madeira sustenta ainda que só se transitarmos do hedonismo ao eudemonismo podemos hierarquizar consistentemente os prazeres em superiores e inferiores (no texto o negrito é posto por nós):
«Como vimos, Mill defende que certos tipos de prazeres são superiores a outros. Há quem objecte que isso é inconsistente com o hedonismo. Se uma pessoa sente tanto prazer a jogar xadrez como outra a ver televisão, então por que razão pensar que o prazer de jogar xadrez é superior ao prazer de ver televisão?»
«Essa é uma boa objecção, e não é claro como poderia Mill responder-lhe. No entanto, a objecção desaparece se abandonarmos o hedonismo e adoptarmos o eudemonismo. Uma das ideias implícitas no eudemonismo é que podemos estar enganados acerca daquilo que seria uma vida boa para nós. Uma pessoa poderia pensar que o objectivo supremo da sua vida era construir réplicas da Torre Eifel em palitos, e tal actividade poderia até dar-lhe muito prazer; mas um eudemonista típico defenderia que essa pessoa não teria uma vida boa. Por isso, a distinção entre prazeres superiores e inferiores não é, certamente, inconsistente com o eudemonismo.» (Pedro Madeira, in prefácio a Utilitarismo, pags 22 -23).
Neste texto, Pedro Madeira esforça-se por distinguir - quanto a nós de forma confusa e não conseguida - o hedonista do eudemonista. Este levantaria dúvidas ao prazer como fonte de uma vida boa. Mas quem não levanta essas dúvidas? É o hedonista superior menos reflexivo do que o eudemonista? Que se saiba, o hedonismo hierarquiza os prazeres em superiores e inferiores. Por exemplo, o epicurismo, um hedonismo superior, considerava os prazeres da amizade e da filosofia superior aos prazeres da comida e da bebida e da luxúria.
Por que razão um eudemonista típico acharia que construir réplicas da Torre Eifel em palitos não faria feliz um artesão? Pedro Madeira, cujo raciocínio é um modelo do labiríntico "pensar analítico" em voga, sem arquitectónica holística, não no-lo explica racionalmente. Mistério... Sustentamos que, pelo contrário, um artesão que soubesse que as múltiplas torres Eifel que construía para venda ao público, além de o recompensarem monetariamente, ajudavam, com uma fracção do lucro cedida á UNICEF, a matar a fome de milhares de crianças desnutridas em África, teria uma vida boa, sentir-se-ia feliz. E um filósofo eudemonista pode ocupar-se a construir uma torre Eifel de palitos e sentir-se feliz com a sua obra do mesmo modo que Heidegger se sentiu feliz ao construir a sua cabana de madeira numa floresta alemã...Um eudemonista típico subscreveria, decerto, a nossa posição.
Podem distinguir-se entre si eudemonismo e hedonismo? Podem, na medida em que se distingue eudemonismo, que é o hedonismo filosófico e ascético-religioso, da modalidade cirenaísta ou sensualista do hedonismo.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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