Vários equívocos caracterizam o livro do professor Cogito, Filosofia 11º ano, de Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, da Asa.
DESASTRE EM PERGUNTAS DE ESCOLHA MÚLTIPLA
O manual comporta várias questões de escolha múltipla mal concebidas. Vejamos exemplos:
«Para cada uma das questões que se seguem, indique a única resposta correcta.
«1. De acordo com a definição tradicional de conhecimento proposicional, uma crença é conhecimento:
a. se for verdadeira.
b. só se derivar da experiência.
c. só se for verdadeira
d. se derivar da experiência.»
(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, Asa, pág. 181)
Segundo os autores do manual a única resposta certa é a 1-c.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
Crítica minha: há duas respostas certas, 1-a e 1-c. A palavra «só» da hipótese c é redundante. Como se pode negar que a resposta a está correcta? Só por miopia, ultra-detalhismo deformante...
Eis outra questão da ficha informativa da página 181 do manual:
«2. O conhecimento a priori:
a. tem de basear-se na experiência
b. pode não se basear na experiência.
c. resulta de ideias inatas.
d. não pode basear-se na experiência.»
(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, Asa, pág. 181)
Segundo os autores do manual a única resposta certa é a 2-b.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
Crítica minha: Há duas respostas certas , c e d, e uma semi certa, b. De facto, o conhecimento a priori resulta de ideias inatas, anteriores à experiência, e, como tal não pode basear-se na experiência. Custa a crer como os autores se equivocam e equivocam os alunos de forma tão grosseira...
Vejamos outro exemplo:
«4. De acordo com o falibilismo, uma crença justificada:
a. baseia-se na experiência.
b. pode ser falsa.
c. não pode ser falsa
d. baseia-se na intuição racional.»
(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, Asa, pág. 181)
Segundo os autores do manual a única resposta certa é 4-c.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
Crítica minha: a resposta correcta é b, e não c como assevera o manual. Senão vejamos: a teoria de Popper sobre as ciências é falibilista, isto é, admite que qualquer tese ou crença justificada das ciências empíricas - como por exemplo: «a molécula de água é composta por dois átomos de hidrogénio e um átomo de oxigénio», «o efeito Doppler, a deslocação da luz para o vermelho prova que o universo está a expandir-se» - pode ser falsa, ou sendo verdadeira, apresentar falhas, excepções significativas às regras..
Outro exemplo:
«2. Para dar uma explicação científica de um fenómeno é preciso:
a. referir uma previsão útil. que melhore a vida da humanidade.
b. indicar a lei geral dentro da qual o fenómeno não podia deixar de ocorrer, considerando as condições iniciais verificáveis.
c. descrever uma regularidade observável, em termos muito exactos.
d. subsumir o fenómeno numa lei geral muito precisa e informativa, que apenas permite explicar outras ocorrências do mesmo fenómeno.»
(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, Asa, pág. 248).
b.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
Crítica minha: há três respostas certas, b,c,d. As respostas b e d são praticamente indistinguíveis. Com que direito e racionalidade opta o manual por excluir a d? A resposta c também está certa porque «descrever uma regularidade observável» é esboçar ou formular uma explicação científica. Exemplo: ainda que não se saiba bem o que é um OVNI, várias aparições de objectos deste tipo nos céus possibilitam descrever certo tipo de comportamentos físicos e electromagnéticos, com regularidades.
Com este tipo de questões, de resposta errónea ou equívoca, os alunos ficam sujeitos à pura arbitrariedade, o que é desastroso para a justiça na avaliação de conhecimentos e para a imagem da filosofia como disciplina prestigiada e ensinável.
A EXISTÊNCIA DO EU É UMA QUESTÃO DE FACTO PARA HUME?
Nas páginas que se referem à teoria de David Hume o manual propõe como actividade:
1. "Eu existo" é uma relação de ideias ou uma questão de facto?»
E dá a seguinte resposta:
«1. Uma questão de facto. Ao afirmar a minha existência, estou a afirmar a existência de uma entidade concreta. Além disso, eu poderia não ter existido: negar a proposição não leva a uma contradição.»
(Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,Cogito, Filosofia 11º ano, Asa, pág. 153).
Crítica minha: Ao contrário do teor desta resposta, Hume considerava o "eu" uma relação de ideias, não um facto provado. Cito Hume:
«Mas o eu ou pessoa não é uma impressão, mas aquilo a que se supõe que as várias impressões têm referência. (...) Nunca consigo apanhar-me a mim próprio, em qualquer momento, sem uma percepção, e nada posso observar a não ser a percepção».
(David Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág 300).
Portanto, a existência do eu é indemonstrável, segundo Hume. É uma suposição pois os homens são fluxos de perceções em constante devir:
«... Atrevo-me a afirmar do resto dos homens que cada um deles não passa de um feixe ou colecção de diferentes percepções que se sucedem umas às outras com inconcebível rapidez e que estão em perpétuo fluxo e movimento.» (David Hume, ibidem, pág 301).
Lembra a teoria budista dos dharma ( à letra: lei) ou qualidades existenciais de cada ser humano ( exemplo: percepção visual, percepção táctil, memória, inteligência, etc) que flutuam como átomos no espaço vazio e se juntam, por acaso, para produzir este ou aquele indivíduo concreto.
HUME ACEITA O REALISMO INDIRECTO OU REALISMO CRÍTICO?
Na ficha formativa da página 181 deste manual «Cogito» figura a seguinte questão:
«3. Leia o texto seguinte:
«Os realistas indirectos aceitam que a minha chávena de café existe independentemente de mim. Consideram, no entanto, que eu não tenho uma percepção directa desta chávena. O realismo indirecto afirma que a percepção envolve imagens mediadoras. Quando olhamos para um objecto não é esse objecto que vemos directamente, mas sim um intermediário perceptual. (...) Para o realista indirecto, a chávena de café na minha secretária causa a presença de um dado dos sentidos bidimensional: vermelho na minha mente, e é este objecto que eu percepciono directamente. Consequentemente, a chávena de café só é por mim percepcionada indirectamente, isto é, eu só a percepciono porque estou ciente do dado dos sentidos que a causou na minha mente.» (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Lisboa, Gradiva, 2013, pag 82).
3.1. Será que Descartes defende o realismo indirecto? Porquê?
3.2 Será que Hume defende o realismo indirecto? Porquê? »
(Cogito, Filosofia 11º ano, de Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, Asa, pág. 181)
As respostas que os autores dão são as seguintes:
«3.1.
Sim Descartes defende o realismo indirecto.
- Em seu entender, os objectos imediatos da percepção são ideias. Embora coloque a possibilidade céptica de as ideias sensíveis não serem representações de objectos físicos. Descartes argumenta que provando que Deus existe e não é um ser enganador, podemos ficar certos de que as nossas ideias sensíveis são, de facto, "imagens mediadoras" de objectos físicos.
- Assim, através dessas ideias, percepcionamos realmente objectos físicos.»
(Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
3.2
«Hume aceita o realismo indirecto, mas não parece defendê-lo propriamente.
«- Acredita, sem dúvida, que os objectos imediatos da percepção são impressões e que estas são causadas por objectos físicos.
«- No entanto, julga ser impossível justificar esta crença. Pois, em seu entender, só podemos estabelecer relações causais a partir de conjunções constantes observadas. Mas, acrescenta, nunca podemos observar uma conjunção constante entre impressões e objectos físicos, pois só as primeiras podem ser directamente percepcionadas». (Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
Crítica minha:
3.1.
Descartes perfilha, sim, o realismo indirecto ou crítico. Os autores enganam-se ao dizer que «os objectos imediatos da percepção são ideias». É uma confusão: os objectos imediatos da percepção são as cadeiras, as nuvens, os corpos de animais ou de humanos, isto é, os corpos físicos, as ideias essas, são, sim, as percepções - refiro-me às ideias adventícias.
Os autores manifestam ignorância ao não distinguirem, na gnosiologia de Descartes, as qualidades primárias (forma, tamanho, movimento, número) existentes realmente nos objectos físicos e as qualidades secundárias (peso, dureza, cor, odor, som, prazer, dor, etc) que existem apenas dentro da mente e não nos objectos exteriores. Por isso quando dizem «Assim, através dessas ideias, percepcionamos realmente objectos físicos.» fica-se sem perceber de que tipo de ideias se trata em concreto, isto é, não se percebe como são os objectos físicos segundo Descartes: a rosa vermelha na visão (ideia adventícia) corresponde a uma rosa vermelha na realidade exterior? Vaguismo, nebulosidade do manual, incompreensão da ontognoseologia cartesiana... Eis uma amostra do saber dos que pontificam na universidade portuguesa actual e na Sociedade Portuguesa de Filosofia.
Crítica minha:
3.2.
A frase dos autores «Hume aceita o realismo indirecto, mas não parece defendê-lo propriamente» é confusa, incoerente. Hume não aceita o realismo, seja este directo, ingénuo, ou indirecto, crítico. É um erro grave dizer que Hume «acredita, sem dúvida, que os objectos imediatos da percepção são impressões e que estas são causadas por objectos físicos». Se assim fosse, Hume seria realista. Um dos pilares da doutrina idealista de Hume é, justamente, afirmar a impossibilidade de demonstrar que há um mundo físico real fora das nossas mentes. Logo, ao contrário do que diz o manual, Hume não acreditava que as impressões eram causadas por objectos físicos exteriores:
«Esta mesa que, neste momento, se me apresenta, é apenas uma percepção e todas as suas qualidades são qualidades de uma percepção. Ora a mais óbvia de todas as suas qualidades é a extensão». (David Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág 286).
«Não temos ideias perfeitas de nada senão das percepções. Uma substância é inteiramente diferente de uma percepção. Não temos, pois, nenhuma ideia de substância. A inerência a qualquer coisa é, segundo se supõe, necessária, como suporte das nossas percepções. Nada parece necessário para servir de suporte à existência de uma percepção.» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág 280; o destaque a negrito é posto por mim).
Ricardo Santos, Paula Mateus ou Pedro Galvão são doutorados? São. E são «especialistas em lógica proposicional»? Diz-se que sim. E de que lhes serve isso, se não são capazes de visualização ontológica das doutrinas de Descartes, Hume, Kant, etc, o que só uma lógica intuitiva, informal, dialética pode proporcionar? Note-se que, neste manual, por não dominarem a ontognosiologia, os autores omitem a oposição frontal entre idealismo material e realismo material e, no seio deste, entre realismo ingénuo e realismo crítico, em particular na teoria de Descartes, evitam definir o idealismo de Kant, etc.
A filosofia analítica é uma filosofia menor, feita de cortes e sobreposições de conceitos, organizados em hierarquias mais ou menos disformes. As universidades oficiais são um viveiro de doutorados medianamente inteligentes que burocratizam a filosofia, isto é, a fazem decair rapidamente na vulgaridade e no lodo dos equívocos. As perguntas de escolha múltipla, tão em voga nos manuais e testes escolares de quase todos os docentes de filosofia do secundário, são um exemplo dessa burocratização e fraca qualidade de pensamento.
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© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O manual «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» de António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, da Porto Editora apresenta diversas incorrecções teóricas. É inferior, em qualidade teórica, ao manual «Novos Contextos» de José Ferreira Borges, Marta Paiva e Orlando Tavares, da mesma editora, ainda que ambos estejam bem concebidos no plano gráfico.
A INCAPACIDADE DE DEFINIR CLARAMENTE DETERMINISMO E DE CRITICAR, NO ESSENCIAL, O «DILEMA DO DETERMINISMO»
Escrevem António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus:
«Hoje, como o determinismo se revelou duvidoso, poucos filósofos se descreveriam como deterministas radicais. Ainda assim, muitos negam o livre-arbítrio porque pensam que a verdade do determinismo é irrelevante para a questão: quer o mundo seja determinista quer seja indeterminista, não somos agentes livres. O seu argumento, conhecido por dilema do determinismo, é o seguinte:
(1) - Ou o mundo é determinista ou é indeterminista.
(2) - Se o mundo é determinista, não temos livre-arbítrio.
(3) - Mas se o mundo é indeterminista, também não temos livre-arbítrio.
(4)- Logo, não temos livre-arbítrio.
É na premissa (3) que temos de nos concentrar. Por que razão havemos de crer que o indeterminismo, como nos diz esta premissa, é incompatível com a liberdade humana?
Vimos já como se pode argumentar que o determinismo exclui o livre-arbítrio. Se o determinismo é verdadeiro, as nossas acções não são livres porque resultam de factores que estão fora do nosso controlo: as leis da natureza e as circunstâncias anteriores à nossa existência.»
(António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» página 62, Porto Editora).
Os autores passam por cima da premissa (2) sem detectar que ela se baseia na falsa dicotomia «ou há determinismo ou há livre-arbítrio». O que é o determinismo? Não definem com clareza. Aceitam acriticamente o «argumento da consequência» de Peter van Ingwagen, que reproduzem na página 59 do manual:
«Se o determinismo é verdadeiro, então os nossos actos são consequência das leis da natureza e de acontecimentos situados no passado remoto. Mas o que aconteceu antes de termos nascido não depende de nós; tão-pouco as leis da natureza dependem de nós. Logo as consequências destas coisas (incluindo as nossas ações) também não dependem de nós.» ( Um ensaio sobre o livre-arbítrio, pag 16).
O erro de Peter van Inwagen, filósofo norte-americano, - e de António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, que o seguem, de forma acrítica - é considerar livre-arbítrio e determinismo como contrários excludentes (princípio do terceiro excluído) quando, de facto, são contrários coexistentes num termo intermédio: o determinismo limita-se ao mundo biofísico mas não penetra na esfera humana psíquica onde reina o livre-arbítrio, a razão que faz frente aos impulsos da natureza e delibera. Ambos, o determinismo e o livre-arbítrio, coexistem no tecido do ser, o ser cósmico e o ser humano. Portanto, a premissa (2) do dilema do determinismo é uma falácia. Isto é ignorado pelos autores do manual. A filosofia analítica não conceptualiza a diferença entre contrários excludentes, incompatíveis, e contrários coexistentes, compatíveis.
O FALACIOSO SILOGISMO «MODUS TOLLENS» DO LIBERTISTA
Prossegue o manual:
«Vamos examinar agora as perspectivas que nos dizem que os agentes humanos têm uma vontade livre. Uma delas é o libertismo, que é também uma forma de incompatibilismo. Porém, em vez de afirmar o determinismo para negar o livre-arbítrio, que é a via escolhida pelo determinista radical, o libertista afirma o livre-arbítrio e nega o determinismo. Partindo do argumento da consequência, ele raciocina desta forma:
(1) Se o determinismo é verdadeiro, então não temos livre-arbítrio.
(2) Temos livre-arbítrio.
(3) Logo, o determinismo não é verdadeiro.»
«O grande desafio que se coloca ao libertista é defender a premissa (2), o que implica descobrir uma forma de escapar ao dilema do determinismo.»
(António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» páginas 62-63, Porto Editora)
A grande crítica que cabe fazer é à premissa (1). O erro deste silogismo condicional falácia de modus tollens está aí (para ser um modus tollens correcto a segunda premissa seria Não temos livre-arbítrio). O determinismo é verdadeiro em que região do ser? Na natureza biofísica. E o livre-arbítrio, onde vigora? No mundo psíquico e racional humano. Portanto, não podem excluir-se mutuamente, no quadro global. Há lugar para ambos. Os autores do manual não colocam assim a questão com esta clareza e arrastam uma nuvem de confusão raciocinante. Escapar ao dilema do determinismo? Mas é um falso dilema. É esta a mediocridade da filosofia analítica: pseudo dilemas, isto é, falácias de dicotomia, pseudo paradoxos como o de Russel, etc.
O ACASO NÃO CONTRIBUI PARA TORNAR AS ACÇÕES LIVRES?
Escrevem ainda os autores, a propósito de acções livres:
«Como devemos, então, conceber as acções livres? Estas têm de ser acontecimentos indeterminados, segundo o libertista. Mas os acontecimentos indeterminados parecem ser apenas aqueles que ocorrem em parte por acaso. E o acaso, como vimos, nada contribui para tornar uma acção realmente livre.»
(António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» página 63, Porto Editora; o destaque a negrito é posto por mim).
É uma visão errónea: a acção livre comporta sempre uma certa dose de acaso psicológico, espiritual, interno ao agente. De facto, na essência da liberdade está o acaso, o não predestinado, o não determinado por um encadeamento rígido de causas e efeitos. O livre-arbítrio é uma estrutura psíquica mista de acaso e necessidade. Se não houvesse acaso nas escolhas racionais, não haveria livre-arbítrio.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Diversas imprecisões sobre David Hume são veiculadas nos manuais de filosofia para o ensino secundário. Um exemplo é o do manual «A arte de pensar» da Didáctica Editora, no qual se lê que «David Hume reconhece que há conhecimento a priori»:
«A priori e a posteriori»
«Os exemplos mais óbvios de verdades necessárias são as verdades matemáticas, as quais se limitam a exprimir relações de ideias. Mas são também conhecidas a priori, pois basta-nos usar o conhecimento para conhecê-las ou o raciocínio dedutivo para demonstrá-las. Por sua vez as verdades sobre questões de facto são contingentes e são conhecidas a posteriori, defende Hume. Mas o que significa tudo isto? »
«Significa que o conhecimento a priori, apesar de absolutamente certo, não é acerca do mundo, pois a sua verdade é independente de qualquer observação do mundo. Portanto, Hume reconhece que há conhecimento a priori, mas acrescenta que este conhecimento não é substancial, no sentido em que nada nos diz sobre o que existe fora do pensamento, nem nos diz como são as coisas no mundo. Isso só a posteriori podemos sabê-lo. » (Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, Filosofia 11º ano, pag. 158, Didáctica Editora; o destaque a negrito é posto por mim).
Ora, David Hume disse exatamente o oposto: em matemática, não há conhecimentos a priori. Vejamos o que escreveu:
«Geralmente, os matemáticos alegam que as ideias que lhes servem de objeto são de natureza tão refinada e tão espiritual que não entram na concepção da imaginação, mas devem ser compreendidas por uma visão pura e intelectual, de que só as faculdades da alma são capazes. A mesma opinião anda espalhada pela maior parte da filosofia e é principalmente utilizada para explicar as nossas ideias abstratas e para formar a ideia de um triângulo que, por exemplo, não seja nem isósceles, nem escaleno, nem se restrinja a um determinado comprimento e proporção dos lados. É fácil de ver por que é que os filósofos gostam tanto desta teoria das percepções espirituais e refinadas: é que por este meio encobrem muitos dos seus absurdos e podem recusar submeter-se ao juízo das ideias claras, recorrendo a ideias obscuras e incertas. Porém, para destruir este artifício não temos senão que refletir no princípio tantas vezes repetido de que todas as nossas ideias são cópias das nossas impressões.»( David Hume, Tratado da natureza humana, pags 106-107, Fundação Calouste Gulbenkian; o destaque a negrito é colocado por mim).
Hume diz que é um absurdo pretender, como o fazem muitos matemáticos e filósofos, que as ideias abstratas são obtidas por uma visão pura e intelectual, que não derivam de dados empíricos, isto é, que são obtidas a priori. Para Hume, esta teoria das percepções espirituais ou refinadas, a priori, esquece que as ideias são sempre singulares e a ideia de triângulo isósceles é cópia de impressões sensíveis de um triângulo isósceles determinado. Não há, segundo Hume, ideias nem cálculos matemáticos a priori, ao contrário do que acima afirmam os autores de «A arte de pensar».
HUME É CÉTICO OU NÃO?
Escreve ainda a «Arte de pensar»:
«Cepticismo moderado»
«Apesar das suas conclusões céticas, Hume não é um cético. Isto porque, ao contrário dos céticos, Hume defende que não devemos abandonar as nossas crenças intuitivas na existência do mundo exterior ou na existência de relações causais reais. Isto porque abandonar as nossas crenças tornaria a nossa vida impossível e poria em causa o nosso instinto de sobrevivência.» (Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, Filosofia 11º ano, pag. 163, Didáctica Editora; o destaque a negrito é posto por mim).
Assim, segundo este texto, Hume produz conclusões céticas mas não é um cético. É cético e não é cético, diz a «Arte de pensar». É um pouco confuso, convenhamos...Quererão os autores dizer que Hume é cético em algumas áreas e dogmático noutras? É preciso ser claro. Em quais? É realista? É idealista? Sobre isto, a «Arte de Pensar» é omissa. Basta dizer que é cético? Não, porque, pelos vistos, o nevoeiro do ceticismo não cobre a totalidade das afirmações de Hume.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Em artigo de «Público» de 25 de Novembro de 2008, intitulado «Escolher conteúdos», escreve Desidério Murcho:
«A operacionalidade cognitiva é o primeiro factor importante na escolha de conteúdos escolares. A operacionalidade cognitiva de um conteúdo escolar é tanto maior quanto mais esse conteúdo pode ser proveitosamente aplicado pelo estudante para adquirir por si outros conteúdos. Em filosofia, por exemplo, insiste-se por vezes em ensinar aspectos irrelevantes da lógica aristotélica, além de a própria lógica aristotélica ser irrelevante, quando se pode ensinar lógica proposicional, que é mais operacional e mais intuitiva. O estudante é assim obrigado a decorar um conjunto de conteúdos sem qualquer aplicação para ele descobrir seja o que for, posteriormente.» (D.Murcho, in «Público», 25-11-2008; o bold é posto por nós).
A lógica proposicional assenta em diversas regras de validade/invalidade erróneas que Murcho e outros apologistas não detectam ou, se acaso já detectaram, insistem em não reconhecer. Não é, por conseguinte, superior à lógica aristotélica: necessita desta para ser corrigida e sobreviver.
Por exemplo, sobre o silogismo hipotético, o manual «A arte de pensar», de que Murcho é co-autor, declara que a afirmação do consequente (na segunda premissa) é uma forma falaciosa, isto é, um raciocínio erróneo:
P ---> Q
Q
Logo P
(Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, Filosofia 11º ano, pag 39)
Assim, segundo Murcho e os adeptos da lógica proposicional é erróneo o seguinte silogismo hipotético:
Se estou em Paris, visito a Torre Eifel.
Visito a Torre Eifel.
Logo, estou em Paris.
Ora, ao contrário do que postula a lógica proposicional, nada há de errado neste raciocínio: é válido tanto do ponto de vista substancial (verdade concreta, lógica informal) como do ponto de vista formal (validade ou verdade abstracta, lógica formal).
Por outro lado, para os defensores da lógica proposicional é necessariamente válida a seguinte forma do silogismo hipotético (modus ponens, isto é, afirmação da primeira parte da premissa condicional):
P ---> Q
P
Logo, Q
Assim segundo Murcho e os formalistas da lógica proposicional seria válido o seguinte raciocínio:
Se estou em Paris, visito a Torre Eifel.
Estou em Paris.
Logo, visito a Torre Eifel.
De facto, este raciocínio não possui validade dedutiva - a conclusão não brota necessariamente das premissas se o conexionamos com o referente, isto é, com a situação real a que se refere; é possível ir a Paris e não visitar a Torre Eifel - mas isso nem Murcho nem os teóricos desta lógica foram capazes de ver por... excesso de «operacionalidade cognitiva». A validade deste raciocínio é indutiva, contingente. A sua suposta «validade dedutiva» é uma mera tautologia.
UM AUTOR DE MANUAIS «CONTRA» OS MANUAIS
Outro dos traços da sofística de Desidério Murcho é criticar, teórica e demagogicamente, práticas que ele mesmo adopta, como se nada tivesse a ver com o assunto. Lembra o ladrão que grita «Agarra que é ladrão»:
«Dada a mentalidade aristocrática, não admira que muitos estudantes se sintam alienados da escola e não a valorizem: os manuais, programas e linguagens foram supostamente concebidos para eles, mas na verdade estão feitos contra muitos deles que reagem desprezando, e com razão, essa escola. Os responsáveis educativos pensam então que a rejeição resulta do desinteresse dos alunos pelos conteúdos, e esvaziam programas e manuais de conteúdos, enchendo-os de mais linguagens rebuscadas, que alienam ainda mais os alunos. » (D.M. in Público de 25-11-2008; o bold é nosso)
Faz sentido esta crítica? Que seriedade existe nestas frases quando sabemos que o manual «Arte de Pensar», da Didáctica Editora, de que Murcho é co-autor, é o modelo (defeituoso) de quase todos os manuais de filosofia para o 10º ano publicados nos últimos anos em Portugal?
O sofrível manual «Arte de Pensar- 10º ano» (volume I, pag 82) classifica as respostas ao problema do livre-arbítrio em 4 correntes: determinismo radical, determinismo moderado, indeterminismo e libertismo. É uma cópia do confuso Simon Blackburn no seu Dicionário de Filosofia - alguém falou em macacos de imitação e na necessidade de os combater?
É tão erróneo distinguir determinismo radical de determinismo moderado como falar de lei da gravidade radical e lei da gravidade moderada: o determinismo é sempre o mesmo, a lei da gravidade é uma só.
É igualmente um erro lógico de palmatória de Simon Blackburn e dos seus imitadores (Murcho, Aires Almeida, Pedro Galvão, António Paulo Costa, Célia Teixeira, Paula Mateus, Luís Rodrigues, etc) colocar o libertismo fora da dicotomia determinismo-indeterminismo: isso viola o princípio do terceiro excluído, segundo o qual uma coisa ou qualidade pertence ao grupo A ou ao grupo não A, exclúindo a terceira hipótese.
O libertismo é uma forma de determinismo ou de indeterminismo ou ambas as coisas, não podendo estar fora da dicotomia. Pelos vistos, o grande apologista da «superioridade» da lógica proposicional não sabe, sequer, aplicar o princípio do terceiro excluído no pensamento...
O problema do ensino da filosofia consiste, antes de mais, na deficiente conceptualização e sistematização das correntes e ideias filosóficas, mais do que na memorização mecânica. Não há filosofia sem memorização, que é o substrato «bruto» da filosofia, sem embargo de esta ultrapassar necessariamente a memorização. A filosofia emerge com a imaginação e a racionalidade construtiva-criativa operando sobre juízos, raciocínios e conceitos memorizados a partir dos textos ou do diálogo vivo.
A «OPERACIONALIDADE COGNITIVA» CONTRA O CONHECIMENTO AUTÊNTICO
Quando se troca a função primordial da filosofia - a delimitação cognitiva dos conceitos, a descoberta das pontes (correlações: juízos, raciocínios) que ligam aqueles - função essencialmente estática, pela "operacionalidade dos conceitos", isto é , do movimento dos conceitos segundo regras mecânicas, não pensadas com madurez, função dinâmica, cai-se inevitavelmente naquilo que Murcho critica com aparente seriedade:
«Alguns professores tendem a complicar o óbvio e a baralhar o simples, para poder depois fazer perguntas de aparência sofisticada. O resultado é treinar o aluno como um macaco fazedor de exames e testes, e não como um ser humano que compreende os conteúdos em causa.» (Desidério Murcho, «Escolher conteúdos», in Público de 25-11-2008).
Ora a lógica proposicional é um fazer mecânico, não um pensar originário e livre. Esta robótica do pensamento para onde alguns subfilósofos "analíticos" empurram os estudantes de filosofia do 10º e 11º ano do ensino secundário ou do curso universitário é, de facto, um treinar «macacos» por fórmulas meramente decoradas.
Não venha Murcho com a sua habitual sobranceria, típica do pensamento superficial, dizer que «ultrapassou Aristóteles» e está na ponta de lança da modernidade. Essa propaganda não colhe junto dos que pensam em profundidade e não se deixam encadear pelo uso nos grandes media da «filosofia» simplex ( existe um paralelismo entre o político José Sócrates com o seu simplex e Murcho com o seu simplismo «lógico proposicional» mas não é tema deste artigo).
A lógica proposicional foi concebida para o raciocínio matemático, quantitativo, não para o raciocínio filosófico e científico-físico, qualitativo. Nestes dois últimos há conceitos intrínsecos a outros conceitos - emerge aqui a tríade substância primeira, espécie e género, posta em relevo por Aristóteles e que a lógica proposicional, defeituosa, esqueceu - como as bonecas russas, em que uma se abre e contêm outras mais pequenas lá dentro.
A lógica proposicional está para a lógica de predicados como a teoria de Newton, do espaço uniforme e formado de linhas rectas , está para a teoria de Einstein, do espaço heterogéneo que encurva na proximidade de grandes massas. É exactamente o oposto do que o lobby da «filosofia analítica/lógica proposicional» em Portugal propaga.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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