Sem embargo de ser um pensador universitário de relevo, Paul Ricoeur, filósofo francês, nascido a 27 de Fevereiro de 1913, em Valence, falecido a 20 de maio de 2005, em Chatenay-Malabry, aluno de Gabriel Marcel e professor nas Universidades de Sorbonne e Chicago, não foi um exímio pensador dialético, se por dialética entendermos a ciência da arrumação e do movimento dos contrários e dos intermédios.
Sustentou, em consonância com a teoria platónica das Ideias ou Essências Eternas e Perfeitas pré-existentes num mundo inteligível acima do céu visível, que «nós somos da raça das Ideias; o Eros que se dirige para o Ser é também o que se lembra do Ser como a sua origem.»
Escreveu, num texto em que avultam ressonâncias heideggerianas como o ser-com, o ser-para e o ser-em:
«Por intermédio desta breve esquematização do sentimento ontológico, acedemos ao que se poderia chamar a polaridade entre o Coração (Coeur) e o Cuidado (Souci). O "coração" é simultaneamente o orgão e o símbolo daquilo a que acabamos de chamar os "esquemas" do sentimento ontológico. Aí descobrimos não só os esquemas interpessoais do ser-com como também os esquemas supra-pessoais do ser-para e o visar fundamental do ser-em; aí o Coração aparece sempre como o outro lado do Cuidado, a sua disponibilidade fundamental opõe-se sempre à avareza do corpo e da vida; o sacrifício é a forma dramática que, numa situação de catástrofe, reveste a sua transcendência. Ora o sacrifício atesta, no limite da vida, que é a mesma coisa dar a vida pelos seus amigos e morrer por uma ideia. O sacrifício manifesta a unidade fundamental dos dois esquemas de pertença, o esquema da amizade e o esquema da devoção (ou da lealdade). A amizade está para outrém tal como a devoção está para a ideia e os dois em conjunto constituem a perspectiva - a Aussicht - sobre uma ordem na qual só nós podemos continuar a existir.»
(Paul Ricoeur, O Homem Falível, Edições 70, pp 135-136; o destaque a negrito é posto por nós).
Ricoeur revela falta de pensamento dialético nesta divisão: o Coração não se opõe ao Cuidado. Pois o Coração também cuida tanto ou mais dos outros como de si mesmo. Platão opunha o Coração (em grego: Thymós ) ao Ventre (em grego: Epithymia), sede dos instintos mais primários, egoístas, vitais. Ricoeur poderia ter definido o Ventre ou Sistema Neuro-Vegetativo Individualizado como contraponto do Coração - ventre e coração pertencem ao mesmo género, ao género orgão do corpo humano, e por isso são contrários.. Mas, confusamente, definiu o termo Cuidado.
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© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz
O livro "A metáfora vive", editado pela primeira vez em 1975, de Paul Ricoeur (1913-2005), reune oito ensaios deste filósofo francês. Sem embargo da sua escrita cuidada e rica em pensamento, há algumas teses e alguma terminologia usada que me parecem equívocas. Passo a expor.
O ESQUEMA É A MATRIZ DA CATEGORIA? É NECESSÁRIO POSTERGAR A IMAGINAÇÃO REPRODUTORA PARA ENTENDER A METÁFORA?
No ensaio «O trabalho da semelhança» Ricoeur escreveu:
«A questão é precisamente saber se o momento icónico da metáfora é estranho a todo o tratamento semântico e se não é possível dar-se conta disso a partir da estrutura paradoxal da semelhança. A imaginação não teria a ver com o conflito da identidade e da diferença?
«A bem dizer, não falamos ainda aqui ainda da imaginação no seu aspecto sensível, quase sensual, que ´consideramos no parágrafo seguinte. Temos interesse em pôr em primeiro lugar entre parenteses este núcleo não verbal da imaginação, quer dizer, o imaginário entendido no sentido de quase visual, quase auditivo, quase táctil, quase olfactivo. A única maneira de abordar o problema da imaginação vindo de uma teoria semântica, quer dizer, do plano verbal, é começar pela imaginação produtiva, no sentido kantiano, e adiar tanto tempo quanto possível o da imaginação reprodutiva, do imaginário. Tratada como esquema, a imagem tem uma dimensão verbal; antes de ser o lugar das percepções desbotadas, é o das significações nascentes. Do mesmo modo que o esquema é a matriz da categoria, o ícone é-o da nova pertinência semântica que nasce do desmantelamento das áreas semânticas sob o choque da contradição. » (Paul Ricoeur, La metaphore vive, pag 253; o negrito é da minha autoria).
Este discurso de Ricoeur é bastante retórico - no sentido de inflaccionado de palavras grandiloquentes e algo deflacionado de ideias.
A primeira questão, de saber se o momento icónico da metáfora se reveste de semântica (palavras ligadas a referentes), está envolta numa nuvem de ambiguidade: o momento icónico da metáfora - exemplo: a metáfora «coração de oiro» - tem e não tem a ver com a semântica. A meu ver, a génese da metáfora é extra-semântica - é uma associação de ideias, dispensa as palavras - mas a continuidade e a ressurgência da metáfora brota da semântica, que é a sinalética das ideias.
Uma frase como «A imaginação não teria a ver com o conflito da identidade e da diferença?» é absolutamente redundante, retórica, quase vazia, porque o conflito identidade-diferença atravessa todas as regiões do pensamento, da linguagem escrita ou oral, da imaginação, das percepções empíricas.
Saberá Ricoeur, em rigor, a distinção entre imaginação produtiva e imaginação reprodutiva, em Kant?
Kant escreveu (o negrito não é dele):
«A imaginação é a faculdade de representar um objecto mesmo sem a presença deste na intuição. Mas, visto que toda a nossa intuição é sensível , a imaginação pertence à sensibilidade, porque a condição subjectiva é a única pela qual pode ser dada aos conceitos do entendimento uma intuição correspondente; na medida, porém, em que a sua síntese é um exercício de espontaneidade, que é determinante, e não apenas, como o sentido, determinável, pode determinar a priori o sentido quanto à forma, de acordo com a unidade da apercepção; é portanto uma faculdade de determinar a priori a sensibilidade; e a sua síntese das intuições, de conformidade com as categorias, tem de ser a síntese transcendental da imaginação, que é um efeito do entendimento sobre a sensibilidade e que é a primeira aplicação do entendimento (e simultaneamente o fundamento de todas as restantes) a objectos da intuição possível para nós. Sendo figurada é distinta da síntese intelectual, que se realiza simplesmente pelo entendimento, sem o auxílio da imaginação. Mas na medida em que a imaginação é espontaneidade, também por vezes lhe chamo imaginação produtiva e assim a distingo da imaginação reprodutiva, cuja síntese está submetida a leis meramente empíricas, as da associação, e não contribui portanto, para o esclarecimento da possibilidade de conhecimento a priori, pelo que não pertence à filosofia transcendental, mas à psicologia.»
(Kant. Crítica da Razão Pura, pp. 151-152; )
Ora como pode Ricoeur dizer que para abordar a semântica é preciso começar por postergar a imaginação reprodutora - que está na origem das metáforas como, por exemplo, «barco de vinho», «músculo de harpas», «laranja da decadência» - e privilegiar a imaginação produtora? E em que consiste esta, em concreto? Aliás, o próprio Kant não é claro a distinguir imaginação produtiva de reprodutiva. A própria imaginação reprodutiva, na medida em que associa, tem carácter de espontaneidade, isto é, de autonomia criadora - o que Kant parece não ter discernido. Qual das imaginações engendrou, por exemplo, o conceito de átomo? Ambas? Nenhuma? Seria preciso entrar no terreno de exemplos concretos o que, neste campo, nem Kant nem Ricoeur fazem. Como é doce a torre enevoada das imprecisões filosóficas cujos contornos não se deixam ver...
Como é que o esquema é a matriz da categoria? Falta explicar, em concreto, esta asserção. Ricoeur não fornece exemplos concretos
ESPECULATIVO É O MESMO QUE TRANSCENDENTAL?
O conhecimento especulativo (de speculum, espelho em latim) é o conhecimento baseado na reflexão. O espelho, instrumento que opera a reflexão da imagem, revela uma grande parte da realidade física mas inverte a posição das partes do objecto: por exemplo, o braço esquerdo de um sujeito que se olha ao espelho surge neste como se fosse o braço direito; uma frase escrita surge, à primeira vista, como ilegível no espelho. Assim, espelhar não é mostrar com absoluta exactidão a realidade. É mostrar esta com uma deformação posicional.
A palavra transcendental recebe na filosofia de Kant um sentido diferente do que os medievais lhe deram: para estes transcendental era o universal. o mais comum a todas as coisas, como, por exemplo, o uno e o alguma coisa (todas as coisas das formigas até às galáxias são unas e são algo); para Kant, o transcendental é não o universal, mas o apriori, a estrutura inata, anterior à experiência.
Ricoeur escreveu:
«Na perspectiva da minha própria investigação sobre a heterogeneidade dos discursos em geral e sobre a irredutibilidade do discurso transcendental ou especulativo ao discurso poético em particular...» (Paul Ricoeur, La metaphore vive, pag 334).
Discurso transcendental é o mesmo que discurso especulativo? Não parece que Ricoeur seja exacto nesta matéria. Na terminologia de Kant, os juízos a priori do entendimento ( exemplos: "17+15 é igual a 32", "o todo é maior do que qualquer uma das suas partes") são transcendentais, isto é, fora do mundo empírico, mas não são especulativos, pois não contêm elementos de incerteza filosófica.
Ricoeur não é, portanto, tão profundo no pensamento como a armação dourada da sua retórica leva a supor.
UMA INCOMPRENSÃO SOBRE A METAFÍSICA DE ARISTÓTELES: CONSIDERAR QUE A ONTOLOGIA ESTÁ CIRCUNSCRITA PELO MOVIMENTO
Há ainda em Ricoeur uma incompreensão essencial da metafísica de Aristóteles, patente no seguinte texto em que o filósofo francês expõe a filosofia do Estagirita assim:
«O divino, é dito, sendo indivisível, não dá lugar à atribuição e só dá lugar a negações. Em contrapartida, a diversidade das significações do ser só pode aplicar-se às coisas físicas, nas quais é possível distinguir substância, qualidade, quantidade, etc. Em última análise, o movimento é a diferença que torna impossível, no seu princípio, a unidade do ser, e que faz com que o ser seja afectado pela divisão entre essência e acidente. Logo, é o movimento que faz com que a ontologia não seja uma teologia mas uma dialéctica da cisão e da finitude (442). Lá onde qualquer coisa devém, a predicação é possível: a predicação estabelece-se sobre a dissociação física introduzida pelo movimento.»( Paul Ricoeur, «La metaphore vive», pag 337; o negrito é colocado por mim)
A tese errónea de Ricoeur sobre Aristóteles é a de supor que este caracterizava a ontologia só pelo movimento, reservando a estática para a teologia. Isto é absurdo. Os princípios primeiros da natureza são imóveis e, portanto, estão para além da própria natureza (físis) ou região ôntica do nascer e morrer das coisas, do devir destas, do movimento: esses princípios são as formas imóveis e eternas e a hyle ou matéria-prima.
No texto seguinte, Aristóteles refere-se às formas eternas chamando-lhes o que é mesmo e substâncias carentes de composição e não lhes atribui movimento algum, referindo, ademais, coisas imóveis como o triângulo:
«Mais precisamente, a verdade e a falsidade consistem nisto: a verdade em captar e enunciar a coisa (pois enunciar e afirmar não são o mesmo), enquanto que ignorá-la consiste em não captá-la (já que não cabe erro acerca do quê é, a não ser acidentalmente; e o mesmo acerca das substâncias carentes de composição: não é possível, certamente, o erro acerca delas; e todas elas são em acto, não em potência, já que, de não ser assim, gerar-se-iam e destruir-se-iam, mas o que é mesmo (tò òn autó) não se gera nem se destrói, pois teria que gerar-se a partir de outra coisa. (...)»
«É também evidente que àcerca das coisas imóveis não é possível o erro a respeito do tempo, se se consideram como imóveis. Por exemplo, se se julga que o triângulo não muda, não se poderá julgar que, em certo momento, os seus ângulos valem dois rectos e, em certo momento, não...»( Aristóteles, Metafísica, Livro IX, 1051 b, 1052 a; o negrito é posto por mim)
As formas eternas e a hyle constituem uma região ontológica, imóvel, uma ontologia, que não é teologia, mas metafísica pura. Ao contrário do que diz Ricoeur acima, a predicação não é possível somente onde qualquer coisa devém, isto é, está em movimento ou transformação: a predicação já é possível na região das formas imóveis e eternas ontologicamente anteriores ao movimento da natureza (phisis). Por exemplo: do triângulo eterno, fora do devir, predica-se que a soma dos três ângulos internos é 180 graus; do cavalo eterno, que não devém, predica-se que é um quadrúpede, mamífero hipomorfo, da ordem dos ungulados, com crinas.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
A distinção entre causalidade e motivação, patente na obra de vários filósofos, entre os quais Paul Ricoeur, é fonte de paralogimos no ensino da Filosofia em Portugal e noutros países. Isto traduz-se numa confusa leccionação do tema «A acção humana» que, nos últimos anos, tem sido um dos eixos da filosofia do 10º ano no ensino secundário.
David Hume sustentou que determinada «causa» pode não gerar sempre, de maneira constante, determinado «efeito», isto é, afirmou o indeterminismo ou contingencialismo absoluto. Ricoeur escreveu, a propósito da separação absoluta entre causa e efeito estabelecida por David Hume:
«Ora esse não é o caso entre intenção e acção, ou entre motivo e projecto. Eu não posso identificar sem mencionar a acção a fazer: existe uma ligação lógica, e não causal (no sentido de Hume). Do mesmo modo eu não posso enunciar os motivos da minha acção sem ligar esses motivos à acção de que são o motivo. Há uma explicação entre motivo e projecto, que não entra no esquema da heteregoneidade lógica da causa e do efeito. Por conseguinte, neste jogo de linguagem, se eu emprego a mesma palavra "porque": "ele fez isto porque" é num outro sentido de "porque". Num caso, pergunta por uma causa; no outro, por uma razão. E. Anscombe opôs fortemente os dois jogos de linguagem, nesses dois empregos das palavras why e because of. Num caso encontro-me na ordem da causalidade; no outro, na ordem da motivação». (Paul Ricoeur, Du Texte à l´Action, Paris, PUF, 1986, pp. 169-170; o negrito é nossa responsabilidade).
É artificial e errónea a separação entre motivo e causa, entre motivo e razão, delineada por Ricoeur neste texto. Motivo vem de motu, movimento: os motivos são as «molas» que impulsionam ou põem em movimento uma acção ou um acontecimento. Na óptica determinista, não há distinção entre motivo e causa: os motivos de uma acção são causas, objectivas ou subjectivas, dessa acção. A palavra causa deve, obviamente, ser entendida em sentido lato: há causas internas e causas externas de um fenómeno ou ser. A causalidade é espécie dentro do género motivação. Outra espécie deste género é a acausalidade, o indeterminismo. E uma outra espécie do género motivação é sincronismo (ocorrência simultânea de fenómenos diversos sem que algum seja causa de outros).
Em resumo: há distinção entre motivo e causa, mas não da forma extrínseca, anti dialéctica, que Ricoeur e outros sustentam. Toda a causa é motivo mas nem todo o motivo é causa. A causa é parte de um todo chamado motivo.
A hiper-análise ou raciocínio fragmentário, de que Ricoeur e outros padecem, separa também artificialmente intenção e motivo, como sucede na seguinte passagem de um Manual de Filosofia do 10º ano:
« A procura do sentido da acção remete para a indagação das suas causas, motivos e intenções;«a intenção deve distinguir-se do motivo: a intenção tem a ver com a consciência que o agente tem dos seus actos, com o significado por ele imprimido às suas acções; o motivo com a formulação de uma explicação que as permita compreender. A intenção remete ainda para o campo da estratégia e, enquanto tal, entra nos terrenos da ética. Finalmente, enquanto procura expor razões, a acção remete para o plano da argumentação» (Rui Alexandre Grácio, José Manuel Girão, Razões em jogo, 10º ano de Filosofia, Texto Editora, Lisboa 1997, página 146; o negrito é nossa responsabilidade).
O erro de hiper-análise neste texto reside em separar motivo de intenção quando, na realidade, o motivo ou força/causa que desencadeia uma acção inclui a intenção. Há motivos intencionais e motivos não intencionais. A intenção não é extrínseca ao motivo: é uma das modalidades deste. Em termos aristotélicos: motivo é género e intenção é uma sua espécie. Intenção é sempre um motivo, um motivo subjectivo, uma causa final, teleológica, na linguagem de Aristóteles.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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