Kant, idealista transcendental, sustentou que há três níveis essenciais do espírito humano: a sensibilidade, onde se formam as planícies, as árvores e todo o mundo físico; o entendimento (Verstand), onde se pensam as planícies, as árvores e todos os objectos físicos segundo conceitos e juízos; a razão (Vernunft), inteiramente desligada do universo material, pesquisando o mundo metafísico dos númenos, onde se pensa Deus, o mundo não físico, a liberdade, a imortalidade da alma. O conhecimento, segundo Kant, resulta da união entre a sensibilidade e do entendimento. O objecto do conhecimento, o fenómeno físico, está dentro da sensibilidade cognoscente, facto que a Heidegger e a grande maioria dos interpretes de Kant passa despercebido.
A sensibilidade não é apenas uma faculdade gnoseológica, um espelho deformante de uma realidade exterior ao espírito humano no caso de Kant, esta realidade é o númeno. É uma faculdade ontológica, ontogenética, produtora de ser - concretamente de seres materiais ou fenómenos físicos. Os cavalos e os rios não existem fora da sensibilidade segundo Kant. Existem no espaço que é a camada periférica, exterior da sensibilidade e são percepcionados pela camada interior dessa mesma sensibilidade, o tempo, a apercepção transcendental pura. Toda a realidade visível e palpável, material ou psíquica, se passa dentro do sujeito, na óptica de Kant. Mas o sujeito transcende o seu corpo físico e comporta o contorno ou mundo circundante.
«O nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do espírito, das quais a primeira consiste em receber as representações (a receptividade das impressões) e a segunda é a capacidade de conhecer um objecto mediante estas representações (espontaneidade dos conceitos); pela primeira é-nos dado um objecto; pela segunda é pensado em relação com aquela representação (como simples determinação do espírito). (Kant, Crítica da Razão Pura, II parte, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Pág 88; a letra a negrito é posta por nós).
A deficiente formulação de Kant sobre a sensibilidade patenteia-se na expressão segundo a qual por ela «é-nos dado um objecto». Deveria dizer: pela sensibilidade é criado o objecto físico que nos dá uma intuição negativa, obscura, do objecto metafísico ou númeno.
Portanto, a sensibilidade é muito mais que mera receptividade. Ela é mãe geradora. Não é espelho reflector do exterior. É tela criadora segundo as suas leis apriorísticas e apenas recebe um impulso, um «estremeção», do númeno exterior, que espalha as «tintas» nela existentes, «tintas» depois ordenadas e configuradas pelo espaço (extensão, figuras geométricas) e pelo tempo. A sensibilidade tem um duplo carácter: receptividade do influxo dos númenos ou objectos metafísicos fora do espaço e do tempo que a afectam desde o exterior; espontaneidade ou carácter criador dos fenómenos físicos interiores à sensibilidade. Este segundo carácter não é salientado, reconhecido, por Kant que, no entanto, confere um papel activo ao espaço e ao tempo, intuições puras da sensibilidade.
De facto, uma torre, uma casa, um automóvel, um cão são fenómenos, objectos criados na sensibilidade e por esta: o espaço e o tempo, intuições puras , são as mãos que moldam todos os objectos exteriores dentro da imensa gruta da sensibilidade do sujeito a partir do caos sensorial provocado «sismicamente» pelos númenos fora da sensibilidade.
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