Em «Janelas para a filosofia», Aires Almeida e Desidério Murcho, autores de manuais escolares do 10º e 11º ano de escolaridade em Portugal, membros influentes do «lobby» da filosofia analítica que inclui Ricardo Santos, João Branquinho, Pedro Galvão, Sara Bizarro e outros académicos, ensaiam uma exposição sobre os problemas centrais da filosofia. Acontece que as janelas que aqueles dois autores abriram dão para o pátio da sofística e, acidentalmente, para a planície vasta da filosofia, olhada de viés, neste livro.
UMA EQUÍVOCA DEFINIÇÃO DE RELATIVISMO
Um dos erros teóricos de Almeida e Murcho patentes neste livro, seguindo aliás o célebre Peter Singer, é o seu conceito de relativismo. Escrevem:
«1. Relativismo
«O relativismo defende que os juízos de valor são relativos às sociedades. Quando uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor não pode estar enganada. Isto contrasta com os juízos de facto...» (Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 40; o destaque a negrito é colocado por mim).
Esta definição é parcialmente incorrecta: diz que os juízos de valor variam de sociedade para sociedade, o que é verdade, em princípio, mas oculta ou escamoteia o facto de relativismo ser a variação de valores no interior de uma mesma sociedade, segundo as classes sociais, os grupos políticos, religiosos e artísticos. É relativismo haver em Portugal uma lei que consagra o casamento de gays e lésbicas e uma maioria social que condena este tipo de casamento, é relativismo haver dentro da mesma sociedade portuguesa defensores dos valores de esquerda e defensores dos valores de direita, religiosos católicos, islâmicos, budistas, agnósticos e ateus,etc.
A frase «Quando uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor não pode estar enganada», incluída na definição de relativismo, é um verdadeiro absurdo. É apresentar relativismo como um dogmatismo absolutista e prova a debilidade do pensamento de Aires Almeida e Desidério Murcho, pseudo-filósofos que fazem «copy paste» de Simon Blackburn, de Peter Singer e outros. Eles não pensam: dizem coisas sem nexo como, por exemplo, que "segundo o relativismo, uma sociedade não pode estar enganada ao condenar ou aceitar algo"...
A PSEUDO-REFUTAÇÃO DA DEFINIÇÃO DE CONHECIMENTO COMO «CRENÇA VERDADEIRA JUSTIFICADA»
Edmund Gettier refutou, aparentemente, a definição clássica de conhecimento como «crença verdadeira justificada». Almeida e Murcho dão razão a Gettier e escrevem:
« Vejamos um exemplo diferente do de Gettier mas que estabelece o mesmo resultado filosófico. A Rita é apreciadora de carros antigos e tem reparado no Citroen boca-de-sapo estacionado num dos lugares reservado à administração, na garagem do edifício da empresa onde trabalha. Ela forma a crença de que um dos administradores da empresa tem um boca-de-sapo. Algum tempo depois, a Rita veio a descobrir, com grande surpresa, que o boca-de-sapo que viu era afinal de um morador daquela zona que se aproveitava para estacionar discretamente ali o seu estimado carro. O morador oportunista só tinha conseguido estacionar ali o seu cargo simplesmente porque o segurança julgava ser o boca-de-sapo de colecção que, por coincidência, a administradora Paula possuía. Até ter sido apanhado».
«O que mostra esta história? Em primeiro lugar, mostra-nos que a Rita formou uma crença verdadeira: que um dos administradores tem um boca-de-sapo. Em segundo lugar, que a Rita tem uma justificação razoável para esta crença: ela própria viu um boca-de-sapo vários dias estacionado num lugar onde apenas podem ser estacionados veículos dos administradores.(...) Parece, pois, que a Rita tem uma crença verdadeira justificada mas não tem conhecimento. Isto parece mostrar que não basta que uma crença verdadeira esteja justificada para haver conhecimento.»(Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 180-181; o destaque a negrito é colocado por mim).
Qual é o erro de raciocínio de Gettier, de Almeida e Murcho relativo a este exemplo da Rita?
É o facto de considerarem que a Rita tinha uma crença verdadeira justificada ao saber que uma administradora tinha um Citroen boca-de-sapo e que um destes automóveis estava estacionado no lugar reservado junto ao edifício da administração da empresa. Pobres Gettier, Almeida e Murcho! A Rita não tinha uma crença verdadeira justificada porque não conhecia a matrícula do boca-de-sapo da administradora Paula e, portanto, não podia garantir, com segurança que o boca-de-sapo, afinal pertença de um vizinho, pertencesse à administradora. Portanto, o argumento de Gettier/ Aires/ Desidério é uma pseudo-refutação da tese de que o conhecimento é crença verdadeira justificada: o conhecimento da Rita é insuficiente, não está justificado.
FALTA DE CLAREZA SOBRE O QUE SÃO OBJECTIVISMO E VALORES OBJECTIVOS
Escrevem Almeida e Murcho:
«Valores objectivos
«O objectivismo defende que alguns valores são objectivos (e não que todos o são). Isto significa que quando uma pessoa ou uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor pode estar enganada, tal como acontece com os juízos de facto.» (Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 44; o destaque a negrito é posto por mim).
O facto de ser falível a condenação por uma pessoa de um juízo de valor, isto é, o facto de uma pessoa se poder enganar nesse juízo, não acarreta que este juízo seja objectivo. A definição de objectivismo dada por estes autores é obscura. Afirmar que objectivismo é o facto de que« quando uma pessoa ou uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor pode estar enganada» é um absurdo. Desidério Murcho e Aires Almeida são incapazes de fornecer uma definição clara de objectivismo dos valores: metem-se por vielas escuras e obscuras do pensamento, onde não há a luz da clareza racional. Não sabem distinguir objectivismo intra-anima ( por exemplo: o número 7 só existe nas mentes humanas mas é objectivo por ser comum a quase todas as mentes) de objectivismo extra-anima (por exemplo: o Mosteiro dos Jerónimos existe em Belém, como edifício de pedra, e é fisicamente objectivo).
Escrevem ainda no mesmo estilo retorcido de contornar as definições claras:
«Para compreender melhor o objectivista, temos de compreender melhor o próprio conceito de objectividade. Há várias concepções de objectividade, mas a mais relevante no que respeita à natureza dos valores considera que a imparcialidade é uma condição necessária da objectividade. O que isto significa é que os juízos de valor que são objectivos são imparciais. Por exemplo, imaginemos que a Daniela defende o juízo de valor de que quem tem olhos azuis deve ter mais direitos do que os outros. Quando lhe perguntamos porquê, responde, com toda a honestidade, que tem olhos azuis, e por isso essa medida iria beneficiá-la. É óbvio que a justificação do seu juízo de valor não é imparcial»
(Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 44; o destaque a negrito é posto por mim).
Há aqui incoerências: Desidério e Aires falam em haver vários conceitos de objectividade, mas não explicitam mais que um, a imparcialidade, e isto é vaguismo; os juízos de valor objectivos não são imparciais, porque são juízos de valor, mas estes dois autores proclamam a sua imparcialidade; o exemplo da Daniela e do seu juízo parcial de favorecer quem tem olhos azuis está envolto numa nuvem de ambiguidade, não se percebe, com clareza, se ilustra o objectivismo ou o subjectivismo dos valores.
Almeida e Murcho não pensam dialecticamente, escarnecem da autêntica filosofia: escrevem de forma elíptica, rodeando o cerne dos assuntos, à maneira dos filósofos analíticos actuais. São o exemplo da anti-filosofia entronizada nas universidades portuguesas e brasileiras e nas grandes editoras que as secundam. Que leva a Gradiva de Guilherme Valente a editar estes frágeis pensadores? Ah, pois: o professor Aires Almeida é o responsável da secção de filosofia da editora Gradiva...Pode ser um pensador medíocre, mas tem poder editorial.
Se querem mergulhar na confusão e citar definições erróneas, no todo ou em parte, assimilem e citem acriticamente o conteúdo deste pobre livro «Janelas para a Filosofia».
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Algumas imprecisões impregnam o livro do professor Essencial, Filosofia 11º ,de Amândio Fontoura, Mafalda Afonso e Maria de Fátima Vasconcelos, Santillana, sem embargo de me parecer ser o melhor para o ensino secundário, em rigor conceptual, no mercado português, neste momento .
A SENSAÇÃO NÃO É UNICAMENTE EXTERNA
Diz o manual:
«A experiência pode ser externa ou interna: a externa refere-se à sensação, ou seja à forma como apreendemos as impressões fornecidas pela experiência sensível» (Amândio Fontoura, Mafalda Afonso e Maria de Fátima Vasconcelos, Essencial, Filosofia 11º, Santillana Editores, pag 199).
Crítica minha:há sensações internas, como por exemplo, o prazer e a dor, as cenestesias (sensações interiores de calor e frio, de circulação, de batimentos do coração, etc) ; a sensação não é a forma como apreendemos as impressões, é essas mesmas impressões. A sensação é a impressão resultante de estímulos exteriores, em regra.
EQUÍVOCA DEFINIÇÃO DO PRINCÍPIO DO DETERMINISMO
O manual define assim os princípios da causalidade e do determinismo:
«O princípio da causalidade afirma que tudo tem de ter uma causa e, nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos.»
«O princípio do determinismo afirma que os fenómenos naturais são determinados por outros fenómenos que os precedem e originam.» (ibid, pág. 23).
Há confusão nestas definições. O princípio do determinismo enuncia-se assim: «nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos.»
NO OBJECTIVISMO, NEM SEMPRE O OBJECTO DETERMINA O SUJEITO
Diz ainda o manual:
«O que é o objectivismo?
Para o objectivismo é o objecto que determina o sujeito; o sujeito apenas recebe as características do objecto, fazendo uma mera reprodução destas em si.
«Platão pode ser considerado um objectivista, uma vez que a sua Teoria das Ideias defende que estas são realidades objectivas; o reino objectivo das ideias é onde assenta o conhecimento.»
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso e Maria de Fátima Vasconcelos, Essencial, Filosofia 11º, Santillana Editores, pag 210)
Nem todo o objectivismo implica a preponderância do objecto sobre o sujeito. A definição dada pelo manual de objectivismo como uma aceitação passiva das propriedades do objecto exterior pelo sujeito (reprodução) não se aplica ao racionalismo ou realismo crítico das ciências onde, segundo Bachelard, "nada é dado, tudo é construído": as ideias de átomo com o seu núcleo e as órbitas electrónicas ou de Big Bang são objectivas porque partilhadas por centenas de milhar de pessoas no mundo inteiro, mas são, de certo modo, subjectivas porque criação do sujeito, da mente científica, não estão patentes aos sentidos de toda a gente.
Em sentido físico, a árvore que está diante de nós ou a Torre de Belém, em Lisboa, é muito mais objectiva (objectivismo extra anima) do que a explosão do Big Bang há 15 000 milhões de anos (objectivismo intra anima ou intersubjectivismo) Na verdade, só alguns átomos são visíveis ao microscópio electrónico, os outros são descrições da imaginação e razão científicas, tal como o Big Bang que ninguém fotografou ou filmou.
Objectivismo é uma noção que pertence ao género sociológico: assenta no número de pessoas que coincidem na visão ou compreensão do mundo ou de um dado aspecto da natureza. A definição correcta é: objectivismo é a doutrina segundo a qual a totalidade das pessoas ou a grande maioria das pessoas de um país ou continente interpreta ou conhece da mesma maneira a realidade exterior ou interior. . Há dois tipos de objectivismo:
A) Extra anima. Exemplo: o Mosteiro dos Jerónimos é uma realidade objectiva, exterior e consensual.
B) Intra anima. Exemplo: a tabela periódica dos elementos que atribui ao Hélio o número atómico 2 e ao Silício o número atómico 14. É uma realidade verosímil na matéria exterior, mas é realidade ideal, no interior das mentes.
O manual não aprofunda esta questão.
INCOMPREENSÃO PARCELAR SOBRE O IDEALISMO
Lê-se no manual:
«O idealismo é a posição que sustenta que não há coisas reais independentes da consciência. Segundo esta perspectiva, toda a realidade está encerrada na consciência do sujeito; as coisas são somente conteúdos da consciência; apenas os conteúdos da consciência são reais.»
«Berkeley (1685-1753) representa na Filosofia essa forma de abordar o problema, manifestando que o ser das coisas consiste em ser percebidas, o ser das coisas esgota-se no seu ser percebido. Ser é ser percebido - esse es percipi.» (Amândio Fontoura, Mafalda Afonso e Maria de Fátima Vasconcelos, Essencial, Filosofia 11º, Santillana Editores, pag 211).
Ora, existe idealismo sustentador de que há coisas reais fora da consciência: é o caso do idealismo de Kant. Este postula que os númenos «Deus» , «mundo como totalidade», objectos metafísicos, são independentes das mentes humanas. O facto de o manual, à semelhança de todos os outros, não indicar David Hume e Kant como idealistas revela a nebulosidade gnosiológica sobre o que é idealismo, a incompreensão de que Berkeley, Hume e Kant militaram na mesma barricada ontológica do idealismo material, sem embargo das diferenças conceptuais (teísmo, agnosticismo, etc) ou terminológicas entre eles.
UMA ERRADA DEFINIÇÃO DA FALÁCIA DO FALSO DILEMA
Escreve o manual:
«O que é uma falácia do falso dilema?
«A falácia do falso dilema reduz todas as alternativas possíveis apenas a duas. Apresentam-se duas opções, geralmente opostas e injustas, e a pessoa terá de optar por uma delas no dilema que lhe é colocado.
Por exemplo, um aluno vai estudar para uma universidade no estrangeiro. O pai pondera a situação e comenta um pouco contrafeito:
«- Ou compramos um apartamento ou vais para uma residencial».(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso e Maria de Fátima Vasconcelos, Essencial, Filosofia 11º, Santillana Editores, pag 139).
O exemplo aqui dado é de um verdadeiro dilema, não de um falso dilema. Apresentam-se duas opções que se excluem mutuamente e há que optar por uma delas. Não importa que haja outras alternativas. Falso dilema é aquele em que um dos termos da disjunção está contido no outro. Exemplo:
«Ou és bejense ou és alentejano».
Ora, os bejenses fazem parte do conjunto dos alentejanos, pelo que se trata de um falso dilema.
Outro exemplo:
«Ou conduzes um automóvel ou praticas uma acção». Ora, conduzir um automóvel já é praticar uma acção. Trata-se, pois, de um falso dilema.
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Prosseguem as críticas aos erros e imprecisões do Dicionário Escolar de Filosofia da Plátano Editora.
CONFUSÕES SOBRE O LIBERTISMO, O COMPATIBILISMO E O INCOMPATIBILISMO
Os problemas metaéticos consubstanciados nos eixos do determinismo/indeterminismo, livre-arbítrio/ fatalismo recebem uma conceptualização equívoca, falaciosa:
«compatiblismo/incompatibilismo
«O problema do livre-arbítrio consiste em saber se a crença de que somos livres é compatível com a crença de que o mundo é governado por leis e que no mundo todos os acontecimentos, incluindo as nossas acções, são determinados pelas suas causas (ver causa/efeito). Em geral, existem dois tipos de teorias que respondem a este problema: as teorias compatibilistas e as teorias incompatibilistas.
O compatibilismo é uma concepção metafísica que afirma que o livre-arbítrio é compatível com o determinismo. A posição compatibilista pode ser expressa com a seguinte afirmação condicional: se tudo for determinado, é possível que exista livre-arbítrio.
O determinismo moderado é a teoria compatibilista mais influente. Um determinista moderado, como David Hume, aceita que a acção seja determinada por causas; no entanto, sustenta que essa acção pode ser livre se o agente, ao praticá-la, puder agir de outra forma e se tiver um controlo sobre o desejo e a crença que causam a acção. Por exemplo, entregar um telemóvel a um ladrão é uma acção livre caso nos seja possível recusar fazê-la e se o desejo de viver, assim como a crença de que entregar o telemóvel permite preservar a vida, forem as causas dessa acção. O incompatibilismo é o conjunto de concepções metafísicas que negam que o livre-arbítrio seja compatível com o determinismo. A posição dos incompatibilistas é a seguinte: se tudo for determinado, não é possível que exista livre-arbítrio. As duas teorias incompatibilistas mais importantes são o determinismo radical e o libertismo. Os deterministas radicais argumentam que o livre-arbítrio não existe porque todas acções são efeito de causas remotas e incontroláveis. Os libertistas afirmam que o livre arbítrio existe porque nem todas as acções são o efeito de causas remotas e incontroláveis. » APC (Dicionário Escolar de Filosofia).
. Há ´múltiplas confusões neste artigo. A primeira é a distinção artificial entre «determinismo moderado» e «determinismo radical»: António Paulo Costa (APC) não viu que a quantidade de determinismo que há em ambos é exactamente a mesma. Se o primeiro admite a lei da gravitação universal, o efeito de descida do açúcar no sangue por administração de insulina, a formação de cloreto de sódio por mistura de ácido clorídrico e sódio, o segundo admite o mesmo. O «moderado» e o «radical» não pertencem à natureza do determinismo em si mas enunciam, ambiguamente, o facto de este estar ou não envolto pela mola do livre-arbítrio que o pode pressionar de fora.
Outra confusão é a definição de libertismo: diz-se que é uma doutrina incompatiblista e que «o incompatibilismo é o conjunto das doutrinas metafísicas que negam que o o livre arbítrio seja compatível com o determinismo» e mais adiante diz-se o inverso, isto é, que «os libertistas afirmam que o livre-arbítrio existe porque nem todas as acções são efeito de causas remotas e incontroláveis», ou seja, o libertismo é compatibilismo...
APC define assim determinismo moderado:
«O determinismo moderado é a teoria compatibilista mais influente. Um determinista moderado, como David Hume, aceita que a acção seja determinada por causas; no entanto, sustenta que essa acção pode ser livre se o agente, ao praticá-la, puder agir de outra forma e se tiver um controlo sobre o desejo e a crença que causam a acção.»
Ora isto é exactamente a definição que APC forneceu de libertismo, exceptuando o rótulo que lhe colou de "incompatibilismo". Então determinismo moderado e libertismo são exactamente o mesmo, segundo este nebuloso " Dicionário Escolar de Filosofia", verdadeira casa de fantasmas que se duplicam em aparições: ambos postulam determinismo na natureza e livre-arbítrio. Há uma falta de lógica essencial nesta classificação. Falta de reflexão.
METAFÍSICA É MUITO MAIS QUE ESTUDO CONCEPTUAL GERAL
Também a definição de metafísica neste Dicionário surge envolta em rolos de fumo de ambiguidade:
«metafísica
«O estudo dos aspectos conceptuais mais gerais da estrutura da realidade. Por exemplo: Serão todas as verdades relativas, ou haverá verdades absolutas? E o que é a verdade? Ao longo do tempo um ser humano muda de personalidade, fica fisicamente diferente, perde cabelo, etc. como se pode então dizer que é a mesma pessoa? Será que a vida faz sentido? Será que temos livre-arbítrio? A ontologia é a disciplina da metafísica que estuda quais as categorias de coisas que há. Por exemplo: Será que há números, ou são meras construções humanas? Terão os universais, como a brancura, existência independente dos particulares, isto é, das coisas brancas? Serão as possibilidades não realizadas reais, ou meras fantasias? O que hoje em dia se chama "lógica filosófica" abrange em grande parte os temas da metafísica tradicional, introduzidos na obra Metafísica, de Aristóteles, designadamente o problema da identidade e persistência de objectos ao longo do tempo. A designação de "metafísica", contudo, não foi introduzida por Aristóteles, que usava a expressão "filosofia primeira", muito corrente ainda no séc. XVII, mas hoje pouco usada o que é uma pena, pois não permite o trocadilho informativo que consiste em dizer que a filosofia primeira estuda as questões últimas. No sentido popular do termo, "metafísica" quer dizer algo totalmente diferente: o "estudo" de questões que transcendem a realidade material: ocultismo, espiritismo, etc. Em filosofia, a metafísica não é nada disto. »
«A metafísica é uma das disciplinas centrais e mais gerais da filosofia; muitas outras disciplinas abordam problemas metafísicos particulares. Por exemplo: a filosofia da acção estuda, entre outras coisas, o problema metafísico de saber o que é e como se individua uma acção (isto é, como se distinguem as acções umas das outras); a filosofia da ciência estuda, entre outras coisas, o problema ontológico de saber se as entidades inobserváveis postuladas pelas ciências (como os quarks) têm existência real e independente de nós, ou se são meras construções humanas. »
«Com o desenvolvimento da ciência moderna, a partir do séc. XVII, a metafísica começou a sofrer ataques por não produzir resultados à semelhança da ciência; afinal, era a ciência empírica, como a física, que produzia conhecimento seguro sobre a natureza última das coisas, e não a metafísica. Esses ataques começam com Kant. Posteriormente, algumas escolas de filosofia, como o positivismo lógico, encaravam a metafísica como coisa mítica do passado. Contudo, na filosofia contemporânea, a força dos problemas metafísicos voltou a impor-se, e o seu estudo floresceu uma vez mais. » DM (Dicionário Escolar de Filosofia).
Desidério Murcho (DM) define metafísica de forma ambígua: «o estudo dos aspectos conceptuais mais gerais da estrutura da realidade.» Esta definição poderia aplicar-se à lógica, que não é própriamente metafísica, e estuda conceitos gerais da estrutura da realidade.
Desidério vive no mundo do símbolo lógico, num átrio pré filosófico - é um pouco como aquele frade, metido à força num convento, que, como não capta a transcendência de Deus, multiplica o estudo conceptual das regras monásticas, visando tranquilizar-se sobre o que para si é incompreensível - e isso impede-o de conceber a verdadeira essência da metafísica que não é ser estudo conceptual mas sim realidade transfísica.
Metafísica é, por exemplo, o lado transfísico do copo em que pego e do vinho que nele está contido. Não é um estudo de conceitos porque os conceitos são representações de realidades, excepto no hegelianismo. Há, decerto, conceitos de metafísica. Metafísica é realidade transfísica -o que não significa necessariamente seres sobrenaturais.
Também se equivoca DM ao dizer que «a ontologia é a disciplina da metafísica que estuda as categorias do que há». A ontologia é a doutrina do ser e há ser fora da metafísica. Cada ciência possui ser metafísico e ser não metafísico e também nesta última medida é ontologia. O facto de a matemática comportar no seu ser números pares e ímpares é ontologia mas não necessariamente metafísica.
ERRO LÓGICO SOBRE A RELAÇÃO DO QUANTIFICADOR EXISTENCIAL COM O QUANTIFICADOR UNIVERSAL
A definição de quantificador existencial na sua relação com quantificador universal está formalmente errada neste Dicionário:
«quantificador existencial
«Expressões como "alguns", "pelo menos um", etc., são quantificadores existenciais, simbolizados habitualmente na lógica clássica com um E ao espelho: ∃. A negação de um quantificador existencial é um quantificador universal, porque negar que alguns filósofos são imortais é o mesmo do que afirmar que todos os filósofos são mortais. »Ver quantificador. DM
Se isto não é um desvario teórico de Desidério Murcho, e consiste numa tese geral da lógica proposicional que, supostamente, ele propaga, é um grave erro desta: a negação de uma proposição particular - proposição iniciada por um quantificador existencial do tipo «Algum», «Alguns», «Poucos», «Muitos» -não autoriza afirmar a proposição universal inversa. Exemplo: a proposição «alguns deuses não são femininos» não é o mesmo que a proposição «todos os deuses são masculinos.» mas DM sustentaria que sim, por aquilo que acima escreveu; a proposição «alguns homens não são ignorantes» não é o mesmo que a proposição «todos os homens são sábios». Portanto, ao invés do que defende DM, a negação de um quantificador existencial não é, não equivale automaticamente a um quantificador universal ("Todos", "Nenhuns").
Eis como o «campeão» da apologia da lógica proposicional entre os professores de filosofia do ensino secundário em Portugal, o campeão do combate à grande filosofia clássica (Platão, Hegel, Aristóteles, Tomás de Aquino, Heidegger, etc) que, equivocamente, baptiza de «história da filosofia», se revela um banal sofista, um decorador de fórmulas cujo sentido não assimilou...
O VALOR NAS COISAS NÃO INCLINA NECESSARIAMENTE A UMA ATITUDE FAVORÁVEL PARA COM ELAS
A definição de valor neste Dicionário é sesgada, fantasmagórica, muito pobre:
«valor
«Quando reconhecemos um valor nas coisas (por exemplo, considerando-as belas, justas ou sagradas), inclinamo-nos a ter uma atitude favorável para com elas que se reflecte nos nossos actos e escolhas (ver acção). Quem tem uma postura objectivista em relação aos valores julga que as coisas são valiosas independentemente de as valorizarmos, mas para um subjectivista as coisas são valiosas simplesmente porque as valorizamos. Atribuir valor instrumental a uma coisa é considerá-la valiosa apenas em virtude de esta ser um meio para alcançar aquilo que julgamos ter valor em si isto é, aquilo que julgamos ter valor intrínseco. Ver hedonismo, objectivismo/subjectivismo, juízo de facto/juízo de valor.» PG
Pedro Galvão (PG) já nos habituou à sua fuga diante das definições. Neste artigo não nos é dito o que é um valor. É substância? Essência? Atitude? Qualidade? Quantidade? Nada diz. É uma onda do mar de vagueza...
A frase :«Quando reconhecemos um valor nas coisas (por exemplo, considerando-as belas, justas ou sagradas), inclinamo-nos a ter uma atitude favorável para com elas que se reflecte nos nossos actos e escolhas (ver acção)» é incorrecta, genericamente falando. Há valores positivos e negativos. Reconhecemos em Hitler e nos símbolos nazis um valor.. negativo e não nos inclinamos favoravelmente para eles.
A frase: «Quem tem uma postura objectivista em relação aos valores julga que as coisas são valiosas independentemente de as valorizarmos, mas para um subjectivista as coisas são valiosas simplesmente porque as valorizamos.» é ambigua. Falta definir objectivismo. Há o objectivismo extra animan e o objectivismo intra animan, este último o conceito de esse objectivum da Escolástica medieval. A qual se refere PG? Também subjectivismo não surge correctamente definido. Não se percebe o que é o mundo subjectivo. A definição de PG prima pela ausência de contornos claros e racionais.
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