Eis um teste de filosofia para o 10º ano da escolaridade em Portugal para o terceiro período lectivo, inspirado no princípio da substancialidade inteligente dos conteúdos: deve dar-se aos alunos múltiplos conteúdos filosóficos, definições claras, ricas e precisas, porque o filosofar não se alimenta do vazio e da vagueza, e deve-se pedir aos alunos que relacionem esses conteúdos.
A grande maioria dos professores de filosofia em Portugal, subsidiária dos clichés da lógica proposicional e de obtusos autores de manuais da linha filosófica "analítica", poderia ensinar muito melhor os seus alunos se pensasse em profundidade, dominasse os conceitos substanciais e ampliasse o horizonte de conteúdos a leccionar. Por exemplo, quantos professores sabem distinguir realismo crítico de realismo natural, em gnosiologia? Poucos...Por isso, expor com clareza conteúdos (exemplos: vitalismo, mecanicismo, leis da dialética, teoria dos três mundos em Platão, teorias aristotélicas da forma e da matéria, do acto e da potência, das quatro causas de um ente, estoicismo de Marco Aurélio, taoísmo, hegelianismo) é muito mais importante do que dar regras ou formas vazias (tabelas de verdade, derivações, etc) porque os conteúdos encerram ideias, teses substanciais e só isso permite o pensamento autêntico.
Vejamos o teste, centrado na Dimensão Estética:
Escola Secundária Diogo de Gouveia com 3º Ciclo, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA A
Maio de 2012. Professor: Francisco Queiroz
I
“O carácter heterocósmico da obra de arte liga-se ao facto de esta ser símbolo. A teoria da cor em Hegel exprime o realismo crítico deste e nessa teoria o azul e o vermelho desempenham funções diferentes na pintura medieval e renascentista. Objectivismo estético não implica necessariamente realismo estético. Kant postulou três modalidades do sublime, que se distingue do belo.»
1) Explique, concretamente, cada uma destas frases.
II
2) Relacione, justificando:
A) As três fases da ideia absoluta em Hegel e a lei da tríade.
B) Artes não plásticas e catarse.
C) Cubismo e teoria cosmológica de Pitágoras de Samos.
D) Forma e conteúdo na obra de arte, segundo Hegel, e racionalismo/ empirismo.
E) Teoria da forma e da matéria-prima universal (hylé), em Aristóteles, e leis do salto qualitativo e dos dois aspectos da contradição.
III
3)Disserte livremente, a partir do seguinte tema e abordando as seguintes questões e outras que entender:
«A arte. Há obras de arte sem conteúdo? Haverá arte sem arquétipos? É preferível a arte pela arte ou a arte ideológica? É a razão ou os sentidos ou outra instância a fonte do sentimento estético? A arte é filosófica ou anti-filosófica?
CORREÇÃO DO TESTE (COTADO PARA UM TOTAL DE 20 VALORES)
1) O carácter heterocósmico ( hetero significa outro, em grego, e cosmos é um universo ordenado) da obra de arte significa que esta é um mundo à parte da natureza biofísica e ao mesmo tempo um símbolo, isto é, um sinal gráfico-visual, auditivo, etc, de uma realidade ausente, metafísica ou não. Assim, por exemplo, o quadro de Salvador Dali com os relógios dobrados ou derretidos é um outro cosmos, na tela, e simboliza ou representa o passar do tempo de uma maneira diferente ou qualquer outra ideia. (nota: estas frases valem um total de 2 valores). A teoria da cor em Hegel sustenta que a luz é incolor e que a cor nasce da incidência da luz sobre as diferentes escuridades da matéria. Isso já constitui realismo crítico, isto é, doutrina de que há um mundo de matéria fora das nossas mentes que estas não captam tal como é. Realismo crítico em Hegel é também este sustentar que o céu é negro, de dia, embora pareça azul claro devido à dispersão da luz solar ao entrar na atmosfera. O azul é a cor maternal nos quadros renascentistas - a Virgem Maria segurando o menino Jesus, tem manto azul - o vermelho a cor viril da realeza - a Virgem Maria como rainha do céu tem manto vermelho. (nota: estas frases valem um total de 2 valores). Objectivismo estético é a doutrina segundo a qual os valores de belo e feio são os mesmos para todas ou quase todas as pessoas a respeito de cada caso, quer esses valores existam só nas mentes (irrealismo estético) ou no mundo exterior físico (realismo estético) ou mundo exterior arquetípico ( realismo estético platónico). (nota: estas frases valem um total de 2 valores). Para Kant, o sublime, isto é, o grandioso espiritual, como a filosofia e o masculino, distingue-se do belo, isto é, o pequeno, adornado e perfeito do ponto de vista visual, como a arte da cerâmica e o feminino. O subline divide-se em três modalidades: o sublime nobre, grandioso e simples, como a planície alentejana, ou o mar azul imenso e calmo; o sublime terrível, grandioso e criador de medo ou horror, como um quadro do Inferno do catolicismo ou um precipício imenso à beira do qual estamos; o sublime magnífico, grandioso e repleto de riquezas materiais, adornos, como a basílica de São Pedro e as igrejas barrocas cheias de talha dourada, pratas, mármores raros, etc. (nota: estas frases valem um total de 2 valores; no seu todo, a interpretação do texto da pergunta I vale 8 valores).
2) A) As três fases da ideia absoluta em Hegel são: a fase lógica ou do ser em si, que é a ideia absoluta ou Deus antes de criar o universo, o espaço e o tempo ( é a tese da tríade); a fase da natureza ou do ser fora de si, que é a da ideia absoluta alenada em natureza biofísica, Deus transformado em astros, montanhas, árvores, rios, animais, etc, sem reflectir ( é a antítese ou negação da primeira fase); a fase da humanidade ou do ser para si em que a ideia absoluta encarna em homens e sociedades que, ao longo dos séculos se vão espiritualizando grau a grau, através das formas de estado, da arte, da religião e da filosofia (é a síntese ou negação da negação que resume as duas anteriores; neste caso, a humanidade incorpora o espírito da primeira fase e a matéria corporal da segunda). A lei da tríade sustenta que o desenvolvimento se baseia em tese-antítese- síntese ( a resposta vale 2 valores).
2) B) As artes não plásticas são aquelas que não se plasmam ou fixam na matéria: música, cinema, poesia, dança, teatro. Em todas estas há a catarsis ou purificação da alma, do espectador e do artista: ao ver uma cena comovente num filme ou no teatro, vêm lágrimas aos olhos de muitos espectadores e isso é catarse; ao ouvir uma música rock ou pop, a pessoa balança o corpo, salta, dança e faz catarse ao libertar emoções. ( vale um valor)
2) C) O cubismo é uma corrente artística, de inícios do século XX, que transfigura a realidade natural reduzindo-a a figuras geométricas, nomeadamente a cubos, paralelipípedos, cilindros, etc. A cosmologia de Pitágoras de Samos sustenta que o cosmos se formou a partir de figuras geométricas que são números: do vazio veio um ponto (este representa o número um); o ponto desdobrou-se em dois que formam uma recta (esta representa o número dois); da recta sai um ponto que projetando-se sobre ela de infinitos modos tece um plano ( este representa o número três); do plano sai um ponto que projetando-se segundo três rectas gera um tetraedro ou pirâmide de três lados e uma base (esta representa o número quatro). Planos, linhas e pirãmides são comuns à doutrina de Pitágoras e ao cubismo na descrição ou reconstrução dos objectos do mundo real. (vale dois valores).
2) D) Para Hegel, a forma da obra de arte é os materiais e os contornos e superfícies que a compõem, e o conteúdo é o ideal e o sentimento que transmite. Assim, a Pietá de Miguel Ángelo tem como forma o mármore e a figuras da Virgem com Cristo morto sobre as coxas e como conteúdo o sofrimento da mãe do Salvador, na perspetiva cristã, e a ideia de que a morte de Cristo redimiu a humanidade dos pecados. A forma da obra de arte liga-se sobretudo ao empirismo, corrente que afirma que quase todas as nossas ideias são cópias empalidecidas das percepções empíricas, porque estas nos mostram a cor do quadro, o mármore da estátua, etc. O conteúdo da obra de arte liga-se sobretudo ao racionalismo, corrente que afirma que muitas das nossas ideias não derivam das percepções empíricas e contrariam estas, porque descobrir o conteúdo, o significado de uma obra de arte, envolve muitas vezes o raciocínio, o pensar reflectido. (vale dois valores)
2) E) Segundo Aristóteles, há uma matéria-prima universal (hylé) que ao ser moldada por diversas formas ( a forma de cavalo, a forma de árvore, etc) dá origem a objectos (compostos): esta e aquela árvore, este e aquele cavalo, este e aquele homem, etc. A lei do salto qualitativo diz que a acumulação lenta e gradual de um factor num fenómeno gera um salto brusco de qualidade: assim, podemos imaginar que a forma cavalo começa a introduzir-se lentamente na hylé ou matéria informe até que se dá o salto qualtitativo, o aparecimento de um cavalo físico real. A lei dos dois aspectos diz que numa contradição há dois aspectos em regra desigualmente desenvolvidos: assim, no objecto ou composto cavalo, a forma é o aspecto dominante e a matéria-prima ou hylé é o aspecto dominado. (vale dois valores)
3) A resposta é livre, aflorando as perguntas sectoriais dentro da pergunta (vale três valores).
Nota para a correção: nas perguntas de relacionação entre dois ou mais conceitos, a cotação para cada resposta dada deve obedecer a um princípio de premiar o aluno que estuda e sabe as definições separadamente: assim deverá receber 50% a 60% da cotação da pergunta desde que defina correctamente os conceitos, embora não consiga interligá-los.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O conceito de objectivismo de valores é transmitido de forma confusa em diversos manuais de filosofia. Eis um exemplo, extraído do manual «Pensar Azul», da Texto Editores:
«O objectivismo faz depender o juízo estético de critérios objectivos, por isso, quando se trata de apreciar a arte, o que deve ser determinante são as características formais do objecto.»
«O objectivismo faz depender a apreciação estética de um conjunto de características existentes no objecto estético.»
«Assim para podermos afirmar que «a Pietá é bela» , teríamos de conhecer as características formais da arte do Renascimento e depois avaliar se a Pietá tinha ou não essas qualidades estéticas e em que grau».
(Fátima Alves, José Arêdes, José Carvalho, «Pensar Azul», Texto Editores, pag.184).
Há aqui uma confusão entre objectivismo estético sensorial e objectivismo estético sensório-intelectual. Então não é possível existir objectivismo estético entre os «incultos» e iletrados? É necessária a teoria, o conhecimento formal-intelectual das propriedades do objecto para se possuir a noção objectiva de belo?
Se dezenas de milhar de crianças e adultos contemplam a paisagem marítima e costeira desde a fortaleza de Sagres e emitem o juízo estético «Isto é muito bonito», estamos perante um caso de objectivismo estético que não necessita de teorização, de comparação formal com outras paisagens marítimas, de estudos sobre a coloração do mar e a profundidade do horizonte, etc.
Objectivismo é, no essencial, a unanimidade de opinião entre um conjunto muito vasto de indivíduos sobre um mesmo objecto material (exterior) ou ideal («interior»).
A imprecisão na definição no manual «Pensar Azul» é óbvia: afirmar que «o objectivismo faz depender a apreciação estética de um conjunto de características existentes no objecto estético» não define objectivismo porque também o subjectivismo «faz depender a apreciação estética de um conjunto de características existentes no objecto estético.» O subjectivista, em regra, não nega características ao objecto exterior, até pode descrevê-las de forma razoavelmente objectiva mas adiciona-lhes o seu gosto pessoal, a sua interpretação íntima ...
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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