Quinta-feira, 27 de Junho de 2013
A analítica existenciária do ser-aí não foi exclusivo de Heidegger

Heidegger (26 de Setembro de 1889; 26 de Maio de 1976) foi um filósofo petulante. Mediante mudanças de terminologia no vocabulário filosófico, apresentou-se como um pioneiro na história da filosofia, aparentando romper com a ontologia tradicional.

 

Lembra aqueles políticos com um discurso demagógico do tipo «Eu trago uma nova forma de fazer política que supera a tradicional dicotomia entre esquerdas e direitas. Estas deixaram de existir» Ora, se por esquerda se entender o interesse da maioria - ou de metade - da população, a massa trabalhadora assalariada, e se por direita se entender o interesse da minoria - ou metade - da população, a massa empresarial privada, não é possível fugir sistematicamente a esta dicotomia: ou se alinha à direita ou se alinha à esquerda, em cada caso. Por exemplo, uma medida como a liberalização dos despedimentos é de direita e outra medida como impedir os bancos de expulsar de suas casas os devedores que ficaram desempregados e não podem pagar a prestação mensal do empréstimo à habitação é de esquerda. A terceira via não existe.

 

Heidegger escreveu:

 

«O "problema da realidade" no sentido da questão de se é "diante dos olhos" um mundo exterior e se se pode provar, revela-se um problema impossível, não porque conduza a consequências que são outras tantas insolúveis aporias, mas porque o próprio ente que é tema de este problema repele, por assim dizer, a colocação de semelhante questão. Não há que demonstrar nem como é "diante dos olhos" um "mundo exterior" , mas há que mostrar por que razão o "ser aí" tem enquanto "ser no mundo" a tendência de começar sepultando "gnosiologicamente" o "mundo exterior" no nada, para logo prová-lo»(Martin Heidegger, El ser y el tiempo, pag 227, Fondo de Cultura Económica; o destaque a bold é posto por mim).

 

Neste excerto acima Heidegger exprime a posição da fenomenologia: não há certezas sobre a natureza do mundo exterior, nem realismo nem idealismo estão fundamentados. Chama a atenção para o nó do problema do conhecimento estar no "ser aí", isto é, no sujeito acompanhado de mundo. E prossegue:

 

«É necessário, mais precisamente, ver de raíz que as diversas direções gnosiológicas não falham precisamente enquanto gnosiológicas, mas que nem sequer chegam a pisar o terreno de um posicionamento fenomenicamente seguro dos problemas, devido à omissão da analítica existenciária do "ser aí". Tão pouco é possível chegar a este terreno por meio de ulteriores correcções fenomenológicas dos conceitos de sujeito e objecto.» (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 227, Fondo de Cultura Económica; o bold é posto por mim).

 

Heidegger sustenta que, só com ele, se começou a "ver" em profundidade o abismo da ontologia, que só com ele se iniciou, na história da filosofia, a analítica existenciária do "ser aí" que Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Leibniz, Hume, Kant, Hegel, Scheler, Hartman e tantos outros, supostamente, nunca teriam feito.

 

 

KANT FEZ "ANALÍTICA EXISTENCIÁRIA DO SER-AÍ", COM OUTROS NOMES: ESTÉTICA TRANSCENDENTAL E ANALÍTICA TRANSCENDENTAL

 

 

Kant fez uma analítica existenciária do ser-aí, isto é, uma investigação e teorização das estruturas ontognosiológicas do homem, ocultas: determinou que espaço e tempo são estruturas subjectivas, transcendentais ou a priori, e não existem fora do sujeito como mente cósmica, dilatada (estética transcendental); determinou que a unidade, a pluralidade, a causa-efeito, a necessidade (causa-efeito determinista) não são, originariamente, qualidades dos fenómenos da natureza mas «leis» (inter)subjectivas do entendimento (analítica transcendentai). Assim, espaço e tempo, unidade, pluralidade, totalidade, causalidade e outras categorias são existenciários, «ferramentas» primordiais com que o sujeito «constrói» os objectos «materiais» ou fenómenos (céu, casas, árvores, rios, animais, etc).

 

Eis um exemplo da "analítica do ser aí" em Kant, em concreto, a definição da apercepção pura, anterior a todas as percepções empíricas concretas:

 

«A unidade sintética do diverso das intuições, na medida em que é dada a priori, é pois o princípio da identidade da própria apercepção, que precede a priori todo o meu pensamento determinado. A ligação não está, porém, nos objectos, nem tão-pouco pode ser extraída deles pela percepção e, deste modo, recebida primeiramente no entendimento; é, pelo contrário, unicamente uma operação do entendimento, o qual não é mais  do que a capacidade de ligar a priori e submeter o diverso das representações à unidade da apercepção. Este é o princípio supremo de todo o conhecimento humano.» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag 134, Fundação Calouste Gulbenkian).

 

Esta apercepção pura, vaso da consciência, é um "existenciário" ( terminologia heideggeriana) em Kant e corresponde à compreensão, que é um existenciário na doutrina de Heidegger.

 

É, pois, uma descarada mentira de Heidegger dizer que, antes de si, nenhum filósofo fez uma analítica existenciária do sujeito. David Hume, Kant, entre outros , fizeram-na. Sem ler Kant, intelectualmente maior e mais claro nas definições que Heidegger, este não teria edificado a sua ontologia fenomenológica.

 

A MUDANÇA DE SENTIDO DO TERMO «EXISTÊNCIA», UM TRUQUE DE PRESTIDIGITADOR

 

 

Outro dos eixos da arrogância de Heidegger é o da transmutação de sentido que deu à palavra existência, reservando-a para designar a essência oculta, existenciária, do ser e dos entes. É um puro truque de prestidigitador da linguagem: à estrutura basilar ou essência primordial do homem a que os filósofos deram diferentes nomes («eu transcendental», «cogito», «consciência», «si mesmo», «essência», «corrente da consciência», «alma», «res cogitans», etc,) Heidegger passa a chamar existência. Ao criticar Max Scheler, Heidegger afirma, erroneamente, que Kant interpretou existência como conjunto dos fenónenos ingenuamente percepcionados («ser diante dos olhos») :

 

 «Scheler define uma teoria volitiva da existência. A existência é compreendida em sentido kantiano como "ser diante dos olhos".» (Heidegger, ibid, pag.230).

«Antes de tudo há que advertir expressamente que Kant usa o termo "existência" para designar a forma de ser que na presente investigação se chama "ser diante dos olhos". "Consciência da minha existência" quer dizer para Kant consciência do meu "ser diante dos olhos" no sentido de Descartes. O termo "existência" significa tanto o "ser diante dos olhos" da consciência como o "ser diante dos olhos" das coisas». (Heidegger, ibid, pag 224).

 

Ora, ao contrário do que sustenta Heidegger, Kant incluiu as formas a priori, invisíveis, imanentes ao sujeito, no conceito de existência. Kant não concebeu a existência como «ser diante dos olhos», isto é, numa concepção realista natural que diz, por exemplo, que o céu azul e a montanha verde estão fora de mim e eu sou dissociável, independente, desse céu e dessa montanha. Segundo Kant, o céu e a montanha são imagens tridimensionais (fenómenos) que eu, sujeito, projecto em mim mesmo, no espaço aparentemente fora de mim, no eu exterior.

 

Não são, portanto, "ser diante dos olhos" mas entes gerados por um mecanismo transcendental (existenciário, no vocabulário de Heidegger): a forma a priori do espaço, com as suas figuras,  molda o caos da matéria das sensações e dá-lhe a configuração de céu e montanhas e o sujeito - presume-se: a forma a priori do tempo, - atribui a cor azul ou verde e o som do vento ao céu e à montanha, que não são em si coloridos nem sonoros. Cores, sons e sabores, segundo a gnosiologia de Kant, seguindo Descartes, não são propriedades ´dos objectos (qualidades primárias) mas propriedades do sujeito, aparências (qualidades secundárias).

 

Heidegger não se apercebe disto: é fraco nos «pormenores» da  gnosiologia e distorce, grosseiramente, Kant . «O ser e o tempo» não é um grande livro de filosofia. É inferior à «Crítica da Razão Pura» de Kant, à «Metafísica» e à «Física» de Aristóteles e a muitas outras obras de consagrados. Se Heidegger é venerado por muitos leitores de «O ser e o tempo» é por ser obscuro para esses muitos leitores- o povo venera aquilo que não compreende bem, ajoelha perante os símbolos ambíguos (neste caso o discurso retórico de Heidegger, viveiro de ambiguidade, onde verdade e mentira se combinam).

 

No panorama mundial das universidades, dominadas pela mediocridade de catedráticos e professores agregados de filosofia, salvo raras excepções, impõe-se gritar que o rei Heidegger vai nú.

  

www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 10:00
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