Quinta-feira, 25 de Junho de 2009
A ética de Cirne-Lima supera as de Habermas e Apel?

Cirne-Lima oferece uma definição insubstancial, formal, de Bem e de Mal na sua «ética da coerência dialéctica» que não é, senão, uma cópia retocada das éticas procedimentalistas de Habermas e Apel.

 

«Qual é o critério que deve reger nossas decisões livres? Evidentemente aquele que é expresso pelo princípio da coerência universal. Bom é tudo aquilo que é coerente consigo mesmo, com o seu meio ambiente imediato - os outros homens -  e mediato - a natureza -  e, em última instância, com todo o universo. Mau é aquilo que é incoerente em qualquer dos níveis citados. Tanto o bem como o mal se constituem através da coerência ou da incoerência, ambas entendidas em seu sentido pleno, que do individual vai para o universal, e deste retorna àquele, num movimento de vai-e-vem que caracteriza e constitui tanto o indivíduo em seu bom sentido como o universal concreto que é o universo. Mas, em casos do dia-a-dia, como saber se uma decisão é coerente em todos esses níveis? Aí é preciso, primeiro, conversar consigo mesmo, para ver se há coerência interna. Logo depois, conversar com os homens ao meu redor, de minha família e de minha sociedade, para ver se minha decisão pode ser por eles aceite sem prejudicá-los. A seguir, devo ampliar essa conversa real, feita na roda do discurso do meu mundo real, de maneira que ela se transforme numa conversa na roda ideal do discurso, roda esta que abrange todos os homens, mais, todos os seres do universo. A decisão é boa se e quando ela pode ser inserida harmoniosamente na rede de relações que constituem o universo. A acção é eticamente boa se e enquanto ela possui, dentro de si, coerência universal. Má, se e quando não há coerência universal.»

«Vemos, de imediato, a semelhança entre a teoria proposta e a ética do discurso de Apel e Habermas. Certo, correctíssimo. Meu princípio de coerência, quando aplicado ao espírito, é uma formulação do imperativo categórico de Kant, do princípio U de Apel e Habermas. Só que minha proposta explica coisas que eles não conseguem explicar, como, por exemplo, as regras do bem-viver (dês guten Lebens), que eles confessam não poder fundamentar e que eu fundamento de maneira bem simples através da coerência consigo mesmo, pensada – é claro – como etapa que leva do eu individual ao eu que se sabe o universo. Apel e Habermas não conseguem fundamentar a eticidade só com os princípios D e U, e dizem expressamente que tem de haver no discurso Gründe, razões, que são decisivas. Isso não obstante, não introduzem um terceiro princípio, um princípio G (Gründe), sem o qual a ética do discurso não subsiste, por recair no formalismo vazio. (Carlos Cirne Lima, Ética de coerência dialéctica, in Manfredo A.Oliveira, organizador, Correntes fundamentais da Ética Contemporânea, Editora Vozes, pag 226-227; o bold é nosso) 

 

O coerentismo ético de Cirne-Lima, segundo o qual o bem é coerência consigo mesmo, com os outros e com o universo, é um formalismo. Não é uma ética substancialista como a de Aristóteles, Nietzschze ou Marx que indicam, expressamente, o que é o bem e o que é o mal em dadas circunstâncias. Na verdade, Cirne-Lima não nos diz nada em concreto sobre o conteúdo sensível-ideal do bem e do mal. Por isso, é uma ética formalista-procedimentalista, uma cópia das de Apel e Habermas,  a que se adiciona a palavra «coerência».

 

A coerência é um princípio insuficiente para discernir o bem do mal. Imaginemos um carrasco ao serviço da Inquisição ou um membro da Santa Vehm, organização antijudia existente na Alemanha já no século XIV, que assassina homens ou mulheres à traição porque são judeus ou ricos detestados pela população da zona e se sente bem consigo mesmo após cada homicídio (coerência consigo mesmo). Suponhamos que a própria população do bairro ou da aldeia aplaude os crimes (coerência com os outros) uma vez que participa do mesmo espírito sanguinário colectivo. Suponhamos ainda que abutres ou outras aves de rapina vêm devorar os cadáveres das vítimas (coerência com o universo: reciclagem natural de resíduos). Segundo o princípio da coerência de Cirne-Lima estes homicídios de judeus ou outros, cometidos por gente sem remorsos (em coerência consigo mesma) com o consentimento da larga maioria ou da totalidade da população em redor e em harmonia com o universo, são, necessariamente, actos bons.

 

A VACUIDADE ÉTICA DO «UNIVERSAL CONCRETO» DE CIRNE LIMA

 

«O erro cometido por Kant e pelos kantianos, por Apel e Habermas, consiste, a meu ver, em pensar o princípio da universalização como um universal abstracto como todos nós, depois do nominalismo de Ockham, o fazemos. O universal, pensado assim, é uma classe e, ao contrário das ideias platónicas e das formas aristotélicas, é um construto linguístico, um fruto da criação colectiva, e é, por isso, algo arbitrário. Hoje sabemos que um conceito universal, neste sentido contemporâneo do termo, possui sentido conforme seu uso; o uso define, assim, o universal. O princípio da universalização, entendido desta forma, como universal abstracto, não leva a um critério universal do dever-ser que seja defensável, porque universal tomado nesse sentido significa sempre algo de particular, histórico, contingente, pertencente a uma determinada cultura.»

(Carlos Cirne Lima, Ética de coerência dialéctica, in Manfredo A.Oliveira, organizador, Correntes fundamentais da Ética Contemporânea, Editora Vozes, pag 228; o bold é nosso)

 

A primeira frase do excerto acima é paradoxal: então os teoremas e as operações matemáticas, concebidas ou repensadas após Ockham, são arbitrárias pelo facto de serem universais? Em que é que o nominalismo de Ockam, que afirmou a irrealidade dos universais, mudou a posterior maneira de pensar os universais pela grande maioria dos pensadores pós Ockham?

 Não consta que todos nós pensemos, desde Ockham, o universal como um constructo linguístico, algo arbitrário.  

Vejamos como Cirne-Lima caracteriza o «universal concreto» que a sua ética veicularia, e que, segundo ele, «não existe nas éticas de Habermas e Apel»:  

 

«O panorama muda completamente se tomamos o princípio de universalização e/ou imperativo categórico não como um universal abstracto mas como o universal concreto. O universal concreto, termo típico da filosofia de Hegel mas já prefigurado em toda a tradição neoplatónica, significa não um pigmento da mente, mas algo existente no mundo real e concreto. Assim - exemplos de Hegel - a família, a sociedade e o Estado são formas de universal concreto. Eu acrescentaria: a linguagem falada por um povo é um universal concreto; uma passeata de grevistas protestando contra o fechamento de uma fábrica e gritando, em uníssono, palavras de ordem, os hinos cantados em cantochão pelos monges de uma abadia medieval, os movimentos de ordem unida exibidos por um grupo de elite de fuzileiros, tudo isso são universais concretos, nos quais o indivíduo como que desaparece, ficando no primeiro plano aquele todo maior, real, existente, concreto, visível, ordenado. O universal concreto em seu sentido pleno é, nisso sigo fielmente Hegel, o universo. » (…)

«Este sim, é o critério último da eticidade: a universalização, entendida como possibilidade de inserção harmoniosa na totalidade, camada por camada, através de todas as mediações, até chegar ao universal concreto que é o universo. Este é o terceiro princípio do meu projecto de sistema, o princípio da coerência universal. Ele difere do imperativo categórico de Kant e do princípio U de Habermas porque o universal nele não é abstracto mas sim concreto.»  

(Carlos Cirne Lima, Ética de coerência dialéctica, in Manfredo A.Oliveira, organizador, Correntes fundamentais da Ética Contemporânea, Editora Vozes, pag 228-229; o bold é nosso)

 

Esta universalização entendida como encaixe harmonioso das peças da máquina mundi e da societas umas nas outras continua a ser formalismo ético, ainda que Cirne Lima tente fazer parecer que não.

 

Desçamos ao concreto, dividamos cada universal concreto em dois ou mais pólos, o que Cirne-Lima não faz. Se se tratar de movimentos de uma elite de fuzileiros (um universal concreto) reprimindo uma manifestação de grevistas (outro universal concreto), como discernir o bem do mal? De que lado nos devemos colocar? Cirne Lima não responde a isto. Se a coerência for fruto da revolução, aplaudirá os grevistas? Se a coerência nascer da repressão executada pelas forças da ordem, aplaudirá as balas disparadas pelos fuzileiros? Que nos ensina a «ética da coerência dialéctica» sobre a revolução popular democrática que toma forma nas ruas de Teerão em Junho de 2009?

Devemos unir-nos aos conservadores de Amadinejad, à polícia, e preservar a harmonia da sociedade islâmica tradicional? Ou devemos apoiar os revolucionários que querem harmonizar-se com o modelo pluralista das sociedades ocidentais capitalistas? Ou manter-nos neutrais?

 

Coerência é um termo vago ou formal demais para ser suporte de ética não formalista. E Cirne-Lima petende que a sua ética é não formalista. De facto, é formalista regional, ao passo que a de Kant é formalista universal.  Ao contrário de Aristóteles, de São Tomás de Aquino, de Karl Marx, de Max Scheller e de muitos outros filósofos que veiculam éticas materiais, Cirne Lima deixa-nos a flutuar no formalismo e arma-nos com a espada abstracta da «coerência dialéctica» pretendendo superar Kant, Habermas e Apel. Mas acaso Habermas ao preconizar a ética do diálogo/discurso para consensuar valores éticos não está a unir o universal formal ao substancial particular de cada grupo social? Acaso isso não é coerência dialéctica, o mesmo que preconiza Cirne Lima?

A pretensão de Cirne Lima em superiorizar-se a Habermas e Apel é apenas um sofisma, alardeando o valor mágico da palavra «coerência» sem lhe determinar a substância concreta em cada caso.

 

Além disso, esta noção de eticidade orgânica expressa por Cirne Lima acaba por anular a liberdade individual, a dissidência do singular face ao colectivo: ele mesmo o reconhece ao dizer que «tudo isso são universais concretos, nos quais o indivíduo como que desaparece, ficando no primeiro plano aquele todo maior, real, existente, concreto, visível, ordenado.» O fascismo, o estalinismo, as sociedades imperiais e outros modelos sociais encontrariam justificação no «princípio da coerência ética»: afinal, o indivíduo é apenas um elo da cadeia harmónica.

 

Comparado com este organicismo ético não dialéctico - os pilares da ética são o carácter dos grupos sociais, incluídos os povos, e o carácter da natureza biofísica, numa harmonia universal - o formalismo de Kant é muito mais revolucionário porque coloca o centro de gravidade da decisão ética em cada indivíduo.

 

A pretensão de Cirne Lima de ter sido «pioneiro» em estender a ética ao todo é visível no seguinte texto:

 

«Minha divergência está no facto de que a coerência universal, como a penso, perpassa todo um sistema, lógica, natureza e espírito; isso Apel e Habermas não aceitam de maneira alguma. Habermas disse, com muita elegância, que meu projecto é por demais ambicioso (zu ehrgeizig).

«Em compensação, exactamente por ser ambicioso, por ser abrangente, o projecto aqui apresentado consegue dar uma fundamentação sólida à ecologia, o que é um desideratum que praticamente ninguém consegue satisfazer.»

(Carlos Cirne Lima, Ética de coerência dialéctica, in Manfredo A.Oliveira, organizador, Correntes fundamentais da Ética Contemporânea, Editora Vozes, pag 229; o bold é nosso)

 

Antes de Cirne-Lima, Hans Jonas teorizou uma ética de responsabilidade que envolve o respeito pela natureza biofísica. E antes de Hans Jonas, muitos povos primitivos, mágicos, alquimistas e filósofos diversos preconizaram a religião da natureza com a correspondente ética ecológica.

www.filosofar.blogs.sapo.pt

f.limpo.queiroz@sapo.pt

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 20:07
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Janeiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

A ética de Cirne-Lima sup...

arquivos

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

tags

todas as tags

favoritos

Teste de filosofia do 11º...

Suicídios de pilotos de a...

David Icke: a sexualidade...

links
blogs SAPO
subscrever feeds