O existencialismo de Sartre, exaltando a vontade individual e o livre-arbítrio, menospreza o carácter inevitável da fisiologia ou condições de nascimento e vivência de cada um, a necessidade corporal e material, planetária (os planetas são enormes massas de matéria que telecomandam a massa corporal e encefálica de cada um de nós), que governa o homem a cada instante. Sartre escreveu:
« Nascimento, passado, contingência, necessidade de um ponto de vista, condição de facto de toda a acção possível sobre o mundo: tal é o corpo, tal é ele para mim. Logo, ele não é de forma alguma uma adição contingente à minha alma, mas, pelo contrário, uma estrutura permanente do meu ser e a condição permanente de possibilidade da minha consciência como consciência do mundo e como projecto transcendente em relação ao meu futuro. Desse ponto de vista, devemos reconhecer que é de todo em todo contingente e absurdo que eu seja enfermo, filho de funcionário ou de operário, irrascível e preguiçoso, e que é não obstante necessário que eu seja isso ou outra coisa, francês ou alemão ou inglês, etc, proletário ou burguês ou aristocrata, etc, enfermo e enfezado ou vigoroso, irascível ou de carácter conciliador, precisamente porque não posso sobrevoar o mundo sem que o mundo se desvaneça (...) O meu nascimento.(.. )a minha raça (...) a minha classe (...) a minha nacionalidade (...) a minha estrutura fisiológica (...) o meu carácter, o meu passado, enquanto tudo o que eu vivi é indicado como ponto de vista sobre o mundo pelo próprio mundo: tudo isso, enquanto o supero na unidade sintética do meu ser-no-mundo, é o meu corpo, como condição necessária da existência de um mundo e como realização contingente dessa condição. Entendemos agora em toda a sua clareza a definição do corpo no seu ser-para-nós: o corpo é a forma contingente tomada pela necessidade da minha contingência.» (Jean Paul Sartre, O ser e o nada, pag. 335-336, Círculo de Leitores, 1993; o destaque a negrito é posto por mim).
Neste texto, Sartre erra ao dizer que «o corpo é a forma contingente tomada pela necessidade da minha contingência». O corpo é uma forma necessária, é o suporte das leis infalíveis da natureza que operam em nós. Decerto, está sujeito às contingências da vida - engorda ou adoece mediante uma errónea alimentação assente em vida economicamente desafogada, modifica-se mediante uma cirurgia plástica, envelhece, etc. Mas a contingência do corpo assenta na sua estrutura psicofisiológica feita de necessidade (ADN, estrutura óssea, etc): a inteligência é inata, necessária, mas pode exercitar-se e «crescer» mediante exercícios. Para Sartre a contingência é necessária - com o que estou de acordo - mas ele ilude a necessidade biofisiológica que é, ontologicamente, prévia à contingência.
Nascemos um corpo dotado de certas linhas de desenvolvimento futuro e não podemos fugir a isso. Sartre está muito preso à filosofia estóica de Marco Aurélio no aspecto de exaltar o livre-arbítrio racional que anularia as dores e as necessidades corporais.
Por outro lado, Sartre evidencia a sua posição fenomenológica de que «o mundo não existe sem mim, sujeito cognoscente», ao escrever: «enquanto o supero na unidade sintética do meu ser-no-mundo, é o meu corpo, como condição necessária da existência de um mundo». Ainda aqui Sartre é muito cartesiano: substitui o «Cogito» de Descartes pelo «Sinto, corporalmente».
O meu corpo não é necessário à existência de um mundo, se este é uma totalidade real e objectiva, independente das consciências. Essa é a posição do realismo em geral. Sucede que Sartre interpreta o termo «mundo» de modo heideggeriano como uma totalidade de entes correlatas do ser humano e que só este capta e interpreta, uma espécie de tela onde passa um filme visível em três dimensões.
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