Platão teve o mérito de definir a dialéctica como a divisão por géneros de uma forma geral que tudo abrange:
«O ESTRANGEIRO- Dividir por géneros e não confundir a mesma forma com outra, ou a outra com a mesma, não diremos que é próprio da ciência dialéctica?
«TEETEO- Sim dizemos.» (Platão, Sofista, in Diálogos, pag 78, Publicações Europa-América).
Os cinco géneros teorizados por Platão em «Sofista» são: o ser, o repouso, o movimento, o mesmo e o outro.
«O ESTRANGEIRO - Ora, os mais importantes destes géneros são três: o próprio ser, o repouso e o movimento.
«TEETETO - Sim, extremamente importantes.»
«O ESTRANGEIRO - Dizemos ainda que estes dois últimos não se podem misturar um com o outro.
«TEETETO- Certamente.
«O ESTRANGEIRO - Mas o ser pode misturar-se com os dois porque, penso, os dois são.»
«TEETETO - Incontestavelmente.
«O ESTRANGEIRO - Portanto, temos três.»
«TEETETO- Seguramente.
«O ESTRANGEIRO - Portanto, cada um deles é outro relativamente aos outros, mas o mesmo relativamente a si mesmo.
«TEETETO- Sim.
«O ESTRANGEIRO- Mas o que queremos dizer com as palavras que acabamos de pronunciar, o mesmo e o outro? São dois géneros diferentes dos três primeiros, embora sempre misturados necessariamente com eles? E devemos concluir o nosso inquérito como se fossem cinco e não três, ou o mesmo e o outro são nomes que damos inconsciente a algum dos nossos três géneros?»
(Platão, Sofista, in Diálogos, pag 79-80, PEA; o negrito é posto por mim ).
Há erros antidialécticos nesta classificação de cinco géneros construída por Platão: o ser não está ao nível do movimento e do repouso mas Platão nivela-os. Estes dois últimos são espécies do género supremo ser. Platão reconhece que o ser pode misturar-se com o movimento e o repouso mas erra ao considerá-los como três géneros enquanto correlacionados: trata-se de um género e duas espécies. Do mesmo modo, o mesmo e o outro são espécies do ser, colocadas, embora. acima da dicotomia movimento-repouso: o mesmo é, o outro é, no sentido de ser como existência. O «mesmo» é género lógico das espécies movimento e repouso - há o mesmo movimento e o mesmo repouso - e o «outro» é também género lógico das espécies movimento e repouso - há outro movimento e outro repouso.
A grande confusão terminológica e ideal de Platão, prosseguida em muitos outros filósofos incluindo Heidegger, é a duplicidade do termo «ser» atribuido indiferentemente a duas dimensões distintas: existência e essência (forma, to tí, quid). Heidegger, apesar de delinear uma ruptura com a tradição ontológica, continuou preso de uma ambígua interpretação do termo "ser". Platão usa o termo "ser" em dois sentidos distintos: forma ou formas eternas, existência. E assim, nos seus diálogos, elabora brilhantes argumentos sofísticos, como por exemplo:
«O ESTRANGEIRO- Contudo, nem o movimento nem o repouso são o outro nem o mesmo.
«TEETETO- Como é isso?
«O ESTRANGEIRO - Seja o que for que atribuamos ao movimento e ao repouso, isso não pode ser nem um nem o outro dos dois.»
(Platão, Sofista, in Diálogos, pag 80, PEA).
A falácia reside na dissociação entre a parte e o todo: o movimento é espécie dos géneros lógicos outro e mesmo e o repouso é espécie dos géneros lógicos outro e mesmo. Não é verdade dizer que «o movimento não é outro nem o mesmo» - o movimento é outro e mesmo, ainda que não abarque a totalidade das qualidades outro e mesmo - do mesmo modo que não é verdade dizer que a parte não é o todo reduzido ou amputado.
Note-se que movimento e repouso são nomes ou substantivos comuns e mesmo e outro são pronomes demonstrativos, isto é, substitutos dos nomes, mais abstratos que estes. Aparentemente, os pronomes pertencerão, em regra, a uma classe mais abstrata, um género mais elevado, do que substantivos como couve, alegria, calor. A determinação mesmo encontra-se em todas as couves ou em todas as alegrias possíveis mas a determinação couve e a determinação alegria não se encontram em todas as conceptualizações ou aplicações de mesmo.
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O diálogo de Platão «Parménides ou Das Ideias» é um modelo na arte da sofística ou falsificação da investigação filosófica autêntica. Todos os parafilósofos e pseudofilósofos que cavalgam hoje cátedras universitárias, redacções de revistas e sociedades de filosofia, gabinetes editoriais, são, como é óbvio, sofistas do século XXI e alguns, em especial os que se acoitam sob a tenda da "filosofia da linguagem" e das "lógicas", rever-se-ão nesta personagem Parménides deste diálogo que utiliza o mesmo termo com sentidos distintos. No excerto seguinte, Platão fabricou conscientemente uma argumentação muito hábil em torno dos conceitos do "mesmo" e do "outro", visando provar que este último nunca pode residir no «mesmo».
«PARMÉNIDES
Portanto, o uno é diferente das outras coisas.
ARISTÓTELES
Exacto.
PARMÉNIDES
Diz-me agora, se «o mesmo»e «o outro» não serão contrários.
ARISTÓTELES
São, sem dúvida.
PARMÉNIDES
E será possível que «o mesmo» resida no «outro» e o «outro» no «mesmo»?
ARISTÓTELES
Não, não é possível.
PARMÉNIDES
Pois se o «outro» não pode nunca residir no «mesmo», não há nenhum ser em que o «outro» exista durante algum tempo. Com efeito, se estivesse nele durante algum tempo, o »utro, durante esse tempo, estaria no «mesmo». Não te parece?
ARISTÓTELES
Sim.
PARMÉNIDES
Desde que o «outro» não se encontra nunca no «mesmo», também nunca se encontrará em nenhum ser.
ARISTÓTELES
É certo.
PARMÉNIDES
O «outro», portanto, não existirá nem no que não é uno, nem no que o é.
ARISTÓTELES
Certamente que não.
PARMÉNIDES
Portanto, não será, pelo «outro» que o uno difere do que não é uno, e o que não é uno difere do uno.
ARISTÓTELES
Não.
PARMÉNIDES
Também não será, por si mesmos, que o uno e o que não é uno são reciprocamente diferentes, se nenhum deles participa do diferente.»
(Platão, Parménides ou Das Ideias, pag 74-75; nas frases o negrito é de nossa autoria ).
O principal truque sofístico desta peça retórica reside no duplo sentido da palavra mesmo: por um lado, representa substância, algo idêntico a si, propriedade inerente a todas as coisas, inclusive às outras coisas; por outro lado, é categoria de relação, o pólo do «isto»/«mesmo» que se opõe ao pólo do «outro»/«aquilo». Nesta segunda acepção, o outro é contrário exclusivo de o mesmo, e de facto não podem coexistir, mas na primeira acepção não, ou seja, podem coexistir.
O «mesmo» e o «outro» não são contrários excludentes (que se repelem como água e fogo) quando se tratam de substância e acidente desta. Assim uma árvore é um mesmo em relação a si e um outro em relação a um cão e um cão é outro em relação à árvore mas um mesmo em relação a si. Logo o ´«outro» pode coexistir com o «mesmo» no mesmo ente- coexistência dialéctica, respeitando o princípio da não contradição.
Ao dizer «O outro», portanto, não existirá nem no que não é uno, nem no que o é» a personagem Parménides comete um erro profundo. O «outro» é uma noção relacional e qualifica algo que é uno ou que não é uno.
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Para Levinas, a representação, isto é, o conhecimento empírico («A paisagem que vejo, a música de Bach que ouço») e empírico-racional (exemplo: «A conceptualização da pele da pessoa que vejo, da circulação de fluido nos vasos sanguíneos e a caveira que imagino que tem dentro») dá-se no instante presente, fora do tempo, utilizando a memória de experiências passadas.
« A representação é a espontaneidade pura, embora aquém de toda a actividade. De maneira que a exterioridade do objecto representado se apresenta à reflexão como o sentido que o sujeito representante empresta a um objecto, ele próprio redutível a uma obra de pensamento.» (Emmanuel Levinas, Totalidade e Infinito, Edições 70, Lisboa, 1988, pag. 110).
«No próprio momento da representação, o eu não é marcado pelo passado, mas utiliza-o como um elemento representado e objectivo. Ilusão? Ignorância das suas próprias implicações? A representação é a força de uma tal ilusão e de tais esquecimentos. A representação é puro presente. A posição de um puro presente sem ligação, mesmo tangencial com o tempo, é a maravilha da representação. Vazio do tempo que se interpreta como eternidade. E, certamente, o eu que conduz os seus pensamentos devém (ou, mais exactamente, envelhece) no tempo em que se desenrolam os seus pensamentos sucessivos, através dos quais pensa no presente. Mas o devir no tempo não aparece no plano da representação: a representação não comporta nenhuma passividade. O Mesmo que se refere ao Outro rejeita o que é exterior ao seu próprio instante, à sua própria identidade, para reencontrar no instante, que a nada se deve pura gratuidade tudo o que tinha sido rejeitado, como «sentido emprestado», como noema.» (ibid, pag110).
Assim, para Levinas, a representação actual - o que vejo, sinto, sem pensar, neste mesmo instante- encontra-se fora do tempo, na medida em que está «isenta» de sucessão de momentos, oferece-me a plena realidade. O tempo surge então como reflexão, pensamento. É muito discutível. Aparentemente, Levinas substituiu no dualismo de Bergson - o espaço exterior, quantidade pura / o tempo interior, qualidade pura - o espaço e os corpos materiais nele inscritos pela representação. Ou no triadismo de Platão, substitui o mundo superior das ideias pela representação, imóvel, pura, separada do mundo do Semelhante, onde o tempo e os movimentos dos astros subsistem.
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