Diversas imprecisões sobre David Hume são veiculadas nos manuais de filosofia para o ensino secundário. Um exemplo é o do manual «A arte de pensar» da Didáctica Editora, no qual se lê que «David Hume reconhece que há conhecimento a priori»:
«A priori e a posteriori»
«Os exemplos mais óbvios de verdades necessárias são as verdades matemáticas, as quais se limitam a exprimir relações de ideias. Mas são também conhecidas a priori, pois basta-nos usar o conhecimento para conhecê-las ou o raciocínio dedutivo para demonstrá-las. Por sua vez as verdades sobre questões de facto são contingentes e são conhecidas a posteriori, defende Hume. Mas o que significa tudo isto? »
«Significa que o conhecimento a priori, apesar de absolutamente certo, não é acerca do mundo, pois a sua verdade é independente de qualquer observação do mundo. Portanto, Hume reconhece que há conhecimento a priori, mas acrescenta que este conhecimento não é substancial, no sentido em que nada nos diz sobre o que existe fora do pensamento, nem nos diz como são as coisas no mundo. Isso só a posteriori podemos sabê-lo. » (Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, Filosofia 11º ano, pag. 158, Didáctica Editora; o destaque a negrito é posto por mim).
Ora, David Hume disse exatamente o oposto: em matemática, não há conhecimentos a priori. Vejamos o que escreveu:
«Geralmente, os matemáticos alegam que as ideias que lhes servem de objeto são de natureza tão refinada e tão espiritual que não entram na concepção da imaginação, mas devem ser compreendidas por uma visão pura e intelectual, de que só as faculdades da alma são capazes. A mesma opinião anda espalhada pela maior parte da filosofia e é principalmente utilizada para explicar as nossas ideias abstratas e para formar a ideia de um triângulo que, por exemplo, não seja nem isósceles, nem escaleno, nem se restrinja a um determinado comprimento e proporção dos lados. É fácil de ver por que é que os filósofos gostam tanto desta teoria das percepções espirituais e refinadas: é que por este meio encobrem muitos dos seus absurdos e podem recusar submeter-se ao juízo das ideias claras, recorrendo a ideias obscuras e incertas. Porém, para destruir este artifício não temos senão que refletir no princípio tantas vezes repetido de que todas as nossas ideias são cópias das nossas impressões.»( David Hume, Tratado da natureza humana, pags 106-107, Fundação Calouste Gulbenkian; o destaque a negrito é colocado por mim).
Hume diz que é um absurdo pretender, como o fazem muitos matemáticos e filósofos, que as ideias abstratas são obtidas por uma visão pura e intelectual, que não derivam de dados empíricos, isto é, que são obtidas a priori. Para Hume, esta teoria das percepções espirituais ou refinadas, a priori, esquece que as ideias são sempre singulares e a ideia de triângulo isósceles é cópia de impressões sensíveis de um triângulo isósceles determinado. Não há, segundo Hume, ideias nem cálculos matemáticos a priori, ao contrário do que acima afirmam os autores de «A arte de pensar».
HUME É CÉTICO OU NÃO?
Escreve ainda a «Arte de pensar»:
«Cepticismo moderado»
«Apesar das suas conclusões céticas, Hume não é um cético. Isto porque, ao contrário dos céticos, Hume defende que não devemos abandonar as nossas crenças intuitivas na existência do mundo exterior ou na existência de relações causais reais. Isto porque abandonar as nossas crenças tornaria a nossa vida impossível e poria em causa o nosso instinto de sobrevivência.» (Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, Filosofia 11º ano, pag. 163, Didáctica Editora; o destaque a negrito é posto por mim).
Assim, segundo este texto, Hume produz conclusões céticas mas não é um cético. É cético e não é cético, diz a «Arte de pensar». É um pouco confuso, convenhamos...Quererão os autores dizer que Hume é cético em algumas áreas e dogmático noutras? É preciso ser claro. Em quais? É realista? É idealista? Sobre isto, a «Arte de Pensar» é omissa. Basta dizer que é cético? Não, porque, pelos vistos, o nevoeiro do ceticismo não cobre a totalidade das afirmações de Hume.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O "paradoxo de Burali-Forti" é um argumento da teoria dos conjuntos considerado verdadeiro pela filosofia analítica anglo-saxónica. Blackburn enuncia-o assim:
«Paradoxo de Burali-Forti - O primeiro paradoxo a ser descoberto na teoria dos conjuntos. A todos os conjuntos bem ordenados é atribuído um número ordinal. Estes ordinais podem ser comparados: de quaisquer dois se pode dizer que são iguais, ou que um é mais pequeno e o outro maior. Eles formam, por sua vez, um conjunto bem ordenado. O ordinal deste conjunto tem de ser maior do que qualquer ordinal que pertença ao conjunto. Seja C o conjunto de todos os ordinais. Uma vez que é um conjunto bem ordenado, tem um número ordinal, w, que tem de ser maior do que qualquer elemento do conjunto. Mas C era o conjunto de todos os ordinais e tem de incluir w.»
(Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, pag 316, Gradiva, 2007; o destaque a negrito é posto por mim).
Trata-se de um pseudoparadoxo. Exemplifiquemos. Apliquemos este problema da teoria dos conjuntos aos 10 países latinos que existem na Europa, partindo do princípio que cada país é um conjunto de habitantes, atribuindo um número a cada um : a San Marino (cerca de 30 000 habitantes) o número 1, ao Mónaco (cerca de 32 000 habitantes) o número 2, a Andorra (cerca de 78 000 habitantes) o número 3, à Suíça (cerca de 7,8 milhões de habitantes) o número 4, à Bélgica (cerca de 10,4 milhões de habitantes) que tem a Valónia, região de língua francesa, o numero 5, a Portugal cerca de 10,5 milhões de habitantes) o numero 6, à Roménia (cerca de 22,2 milhões de habitantes) o número 7, a Espanha (cerca de 46 milhões de habitantes) o número 8, a Itália (cerca de 60,3 milhões de habitantes) o número 9, a França (cerca de 65,4 milhões de habitantes) o número 10.
Assim C é o conjunto de todos estes ordinais (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10) e tem de ter um número w - seja por exemplo 11 - maior do que qualquer elemento do conjunto.
E Blackburn escreve acima, delineando o dito paradoxo: «Mas C era o conjunto de todos os ordinais e tem de incluir w.»
Perguntamos: por que carga de água C tem de incluir w? O conjunto [1,2,3...10] tem de incluir o número 11? É absurdo. É evidente que C não se inclui a si mesmo enquanto número 11 (w) ao lado dos números de escalão inferior que são os seus elementos. O erro aqui é similar ao do paradoxo de Russel que rebaixa a espécie - um conjunto de entes similares - à condição de elemento ou parte de si mesma.
Os matemáticos não são fiáveis, no plano da especulação, não se inserem, em regra, no raciocínio multidimensional que caracteriza a verdadeira filosofia. É muito simples desmascarar este pseudoparadoxo da teoria dos conjuntos mas, pelos vistos, nem Russel, nem Wittgenstein, nem Quine, nem Samuel Kripke, nem Nagel, nem Blackburn, nem Anthony Kenny, nem João Branquinho, nem José Gil, nem a generalidade dos académicos actuais e do século passado o fizeram. Teremos que nos curvar e calar ante uma universidade de obnóxios doutorados em filosofia que veneram pseudoraciocínios de aparência matemática?
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A filosofia Aristóteles distingue-se da de Platão na medida em que procura demonstrar que as essências não existem separadamente em si mesmas, fora do mundo material e vital. Assim acontece com a essência infinito espacial :
«Ora bem, é impossível que o infinito seja separável das coisas sensíveis e que algo seja infinito em si mesmo. Porque se o próprio infinito não fosse uma magnitude nem uma pluralidade, mas sim uma substância e não um atributo, seria então indivisível; porque o divisível ou é uma magnitude ou uma pluralidade. Mas se é indivisível não é infinito, salvo que o fosse como a voz é invisível. Mas os que afirmam a realidade do infinito não dizem que seja desta maneira, nem que é isso o que buscamos, mas que o infinito é algo "que não pode ser percorrido". Mas se o infinito existe como atributo nunca poderá ser, enquanto infinito, um elemento constitutivo das coisas, como tampouco o invisível o é da linguagem, ainda que a voz seja invisível.»
«Ademais, como é possível que exista o próprio Infinito, se não existem o próprio Número e a própria Magnitude, dos quais o infinito é em si uma propriedade? A necessidade de que exista este infinito é ainda menor do que a do número ou da magnitude em si.» (Aristóteles, Física, Livro III, 204 a, 5-20; a letra negrita é posta por mim)
É muito interessante a visão aristotélica: o infinito no espaço e no mundo corporal é uma abstração, não existe em si mesmo, salvo na imaginação. As coisas são finitas. O infinito é uma ilusão da mente. É nele, a meu ver, que a física se converte em matemática, uma vez que o universo físico material é limitado, por muito que falem da divisibilidade infinita dos corpos, e a matemática devido à sua natureza monádica (os números não ocupam lugar) suscita a ideia de infinito. A matemática faz a ponte entre a física e a metafísica. Não espanta que Aristóteles a classifique como a primeira das ciências a seguir à filosofia primeira ou - termo não usado pelo filósofo grego - ontologia-eidologia. Aristóteles sabia , verdadeiramente, produzir ontologia: o ser real é o finito ou o conjunto dos finitos, mas não o infinito que é ser virtual, atributo. A crença de Einstein de que o universo é finito, como uma esfera fechada, radica, assim, na concepção aristotélica do mundo.
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Lançou a Plátano Editora, de Lisboa, em Setembro de 2009, uma segunda edição do Dicionário Escolar de Filosofia, com entradas de 12 autores, entre eles o organizador, Aires Almeida. Apesar de conter um bom número de tópicos interessantes, e propiciar um certo número de conhecimentos úteis aos leitores, este dicionário é portador de um considerável número de equívocos teóricos, de erros e imprecisões. Vejamos alguns deles.
OMISSÃO DA DISTINÇÃO ENTRE EIDOS PLATÓNICO E EIDOS ARISTOTÉLICO
Um dos artigos equívocos é o que se refere ao eidos:
Eidos
«Termo grego que significa «forma» ou «ideia». PLATÃO considerava que as formas ou ideias eram imutáveis, imateriais e não podiam ser percepcionadas pelos sentidos, mas eram a realidade última, sendo as coisas apenas uma pálida sombra das formas.» DM (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 95).
O que há de impreciso, omisso, equívoco, nesta definição fornecida por Desidério Murcho (DM)? Antes de mais, o ocultar o carácter eterno das ideias, segundo Platão, e a sua permanência no Mundo do Mesmo ou Inteligível, acima do céu visível.
Em segundo lugar, o esquecimento de que o termo eidos designa essência.
Em terceiro lugar, a omissão das diferentes concepções que Platão e Aristóteles perfilhavam sobre o termo eidos: para Platão, a essência é ideia, uma forma singular e única, própria, - em grego, próprio diz-se idios - que não existe no mundo material; para Aristóteles, a essência é uma forma comum ou espécie (eidos), existente no mundo físico em todos os entes singulares por ela abrangidos (exemplo: a essência ou eidos cavalo está neste cavalo de raça lusitano, naqueles cavalos andaluzes, e, enfim, em todos os cavalos físicos do mundo). O eidos segundo Aristóteles, omisso na definição de DM, não é exterior ao mundo físico como o eidos teorizado por Platão e possui, ademais, um carácter intrinsecamente agrupador.
CONFUSÃO SOBRE O RELATIVISMO MORAL ENUNCIADO COMO UM ABSOLUTISMO EM CADA SOCIEDADE
A definição fornecida de relativismo moral, neste dicionário, é parcialmente errónea:
«Relativismo moral»
«Teoria Metaética segundo a qual os factos morais são instituídos pela sociedade e, portanto, podem variar de sociedade para sociedade ou de época para época. Se numa sociedade a maior parte das pessoas acredita, por exemplo, que a pena de morte é justa, então nessa sociedade a pena de morte é justa. Para o relativista, os juízos morais limitam-se a reflectir certos costumes sociais. Quando os costumes ou as crenças morais de uma sociedade mudam, também os factos morais se alteram.» PG
(Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 222).
Pedro Galvão (PG), tal como Peter Singer, James Rachels e outros famosos da ética, não tem um conceito correcto de relativismo. Que é o relativismo? É a doutrina segundo a qual a verdade é relativa às epocas e lugares, isto é, varia de época a época e de lugar a lugar, varia de povo a povo, de país a país, varia segundo as classes e grupos sociais no interior de cada país ou sociedade.
A democracia liberal é, por essência, um regime relativista: o facto de em Setembro de 2009, o PS de Sócrates ter vencido as eleições legislativas em Portugal não torna a ideologia do PS - ou as ideologias europeístas do PS e do PSD que em conjunto abarcam a maioria dos eleitores portugueses votantes - a verdade única para toda a sociedade. Não. Continuam a subsistir segmentos sociais, políticos e culturais diversos - a direita nacional neosalazarista do PNR, a direita conservadora CDS, a esquerda neoestalinista do PCP, a esquerda radical ou semianarquista do BE, etc; os católicos e os islâmicos opositores da legalização das uniões homossexuais, etc - com outras verdades éticas e políticas. É este mosaico multicor que constitui o relativismo.
Há, pois, relativismo no seio de cada sociedade - várias verdades ou interpretações sobre a mesma coisa (por exemplo: defensores e detractores do aborto livre; comunistas e não comunistas, etc)-mas Galvão não concebe isso: sustenta a unicidade e uniformidade ética, isto é, que a verdade da maioria é a verdade de todos. É absolutismo de maiorias e não relativismo o que Pedro Galvão define como "relativismo". O único relativismo que reconhece é o da variação de leis ou costumes dominantes de sociedade para sociedade - por exemplo, a liberdade da mulher nas democracias ocidentais em contraste con a opressão da mulher na Arábia Saudita e em outros países de gritante hegemonia masculina. É uma concepção "coxa", parcialmente deformada, de relativismo.
CONFUSÃO DE DETERMINISMO COM FATALISMO
Um erro em que o próprio Thomas Nagel, premiado internacionalmente em filosofia (!), incorre, e que o presente dicionário escolar repete, é a confusão entre determinismo e fatalismo:
Determinismo/Indeterminismo
«O determinismo é uma tese que nos diz que o passado, mais as leis da natureza, determinam a cada instante, um único futuro. Assim, num mundo determinista não há mais do que uma forma de o mundo ser a cada instante. Esta apresenta-se como uma linha de comboio sem bifurcações ou encruzilhadas. O indeterminismo é a tese oposta: a ideia de que o estado do mundo num dado momento é compatível com vários estádios distintos num momento posterior. Ou seja, a linha de comboio tem bifurcações, momentos claros de possibilidades alternativas. Actualmente, não sabemos se o determinismo é verdadeiro ou não. A questão é empírica, e não há razões suficientes para decidir a questão.» MA
(Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 88; o bold é nosso).
Determinismo está mal definido por Miguel Almeida (MA). Que é o determinismo? É o princípio de repetição segundo o qual nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. É uma das modalidades da Necessidade. A lei da gravidade exerce-se, de forma determinista, sobre os milhares de páraquedistas que se atiram de aviões mas o livre arbítrio de cada um deles, operando a abertura dos paraquedas, impede que o determinismo da queda livre actue plenamente e os faça esmagar-se na terra. O que MA define acima como «linha de comboio sem bifurcações» é o fatalismo, a predestinação, diferente do determismo. Este só na aparência traduz predestinação visto que pode ser «desviado» ou contrariado pelo livre-arbítrio e pelo acaso. O determinismo, ao contrário do que sustenta Miguel Almeida, é uma «linha de comboio com ramificações e bifurcações»: usando as "agulhas" do livre-arbítrio - ou sendo o acaso a mudá-las - o maquinista pode fazer o comboio ir pela via da esquerda ou pela via da direita, avançar ou parar. O que não pode é fazer sair o comboio dos carris do determinismo...
O nosso mundo rege-se pelo determinismo mas a guerra do Iraque, lançada pelos EUA e Grã-Bretanha em 2003, podia, ao menos teoricamente, ter sido evitada se Barack Obama e não George Bush ocupasse a presidência dos EUA.
Indeterminismo está igualmente mal definido no artigo acima. Há que distinguir indeterminismo no resultado final - que é compatível em regra com o determinismo biofísico visto que a este se adiciona certa dose de acaso- de indeterminismo estrutural ou modal, que é a negação do determinismo ou conexão necessária, infalível, entre causas de tipo A e efeitos de tipo B.
Que sentido tem definir compatibilismo como «coexistência do determinismo com o livre-arbítrio» como o faz este Dicionário se neste artigo se toma o termo determinismo como fatalismo, predestinação absoluta? É uma incoerência, tal como é incoerência distinguir determinismo moderado de determinismo absoluto.
A "DEFINIÇÃO" PELA NEGATIVA DE CORROBORAÇÃO
Herdeiro de uma certa falta de clareza intelectual de Karl Popper, o presente Dicionário não define claramente o que é corroboração para este filósofo inglês:
corroboração
«Na sua FILOSOFIA DA CIÊNCIA, POPPER rejeita a INDUÇÂO e, consequentemente, a ideia de que uma hipótese ou teoria científica pode ser confirmada por dados empíricos. Assim, no seu FALSIFICACIONISMO a noção de CONFIRMAÇÂO dá lugar à de corroboração. Uma hipótese ou teoria científica é corroborada por dados empíricos quando sobrevive a testes experimentais, isto é, quando não é refutada depois de ter sido posta à prova. E quanto mais severos são os testes, maior é o grau de corroboração que a teoria adquire» PG (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 76).
Se repararmos bem, corroboração não é definida nesta entrada: são apenas definidos os efeitos que produz, ou seja, a sobrevivência da hipótese a sucessivos testes experimentais. É como se ao definir automóvel o fizéssemos da seguinte maneira:« automóvel é quando se percorre a 100 quilómetros por hora estradas de asfalto». Não estamos a definir o veículo mas efeitos da sua acção. Pedro Galvão (PG) não nos oferece uma definição positiva, clara, de "corroboração"- talvez nem Popper o faça. Mas nós vamos fazê-lo: a corroboração é a confirmação, por testes empíricos, de um ou mais casos particulares de uma hipótese ou teoria dentro da respectiva série de casos possíveis. É uma tolice dissociar o conceito de "confirmação" do de "corroboração": ambos significam o mesmo, ainda que Popper pretenda dar maior amplitude ao primeiro.
A ERRÓNEA IDENTIFICAÇÃO DE PENSAMENTO E PROPOSIÇÃO
A incapacidade de definir conceito manifesta-se na correspondente entrada deste dicionário:
«conceito
«Os constituintes dos pensamentos (ou proposições). A PROPOSIÇÃO de que Lisboa é uma bela cidade tem como um dos seus constituintes o conceito de cidade. Ter um conceito é, argumentavelmente, saber usá-lo correctamente. Por exemplo,se alguém apontar para uma bola e disser que é um tigre, é porque não tem o conceito de tigre (nem de bola); mas se for competente no uso o termo "tigre", tem o conceito em causa. Uma das muitas questões em aberto é a de saber se os conceitos são entidades abstractas independentes da mente ou se dependem desta para existiem.» CT (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 68; o bold é nosso).
Esta definição de Célia Teixeira (CT), caracterizada pela vagueza, omite que um conceito é uma representação intelectual simples, uma ideia de algo (ao invés, Schopenhauer distinguia entre ideia, singular e superior, e conceito, designando um colectivo).
É uma definição parcialmente errónea ao dizer que «os conceitos são os constituintes do pensamento». Também os juízos e os raciocínios são constituintes do pensamento. Ademais, CT identifica pensamento e proposição, o que constitui, em rigor, um erro. A proposição é expressão de um pensamento mas nem todo o pensamento se traduz em proposições. Os conceitos de «átomo», «quark», «metafísica», «Deus» são pensamentos mas não são proposições.
A FILOSOFIA NÃO DISPÕE DE MEIOS DE PROVA, EMPÍRICOS E FORMAIS?
A distinção entre ciência e filosofia é superficial neste Dicionário como se torna patente na seguinte entrada:
problema filosófico
«A filosofia tal como a ciência, procura resolver problemas que nos afectam a todos. A diferença entre os problemas da filosofia está no tipo de problemas que ambas enfrentam. A filosofia trata de problemas para os quais não dispomos de meios empíricos nem formais de prova. São problemas reais, embora muitas vezes de carácter conceptual àcerca dos fundamentos da ciência, da religião, da arte, e até do nosso dia a dia. Por exemplo, problemas como o de saber o que é a justiça, o que é o conhecimento, qual o mecanismo através do qual os nomes referem as coisas que referem, etc. Muitas vezes tomam-se como filosóficos problemas que claramente o não são. Por exemplo, saber se a religião contribui para a coesão das sociedades não é um problema filosófico, mas sociológico.» (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 209; o bold é nosso).
Equivoca-se Aires Almeida (AA) sobre a natureza da filosofia. A filosofia não dispõe de meios formais de prova? Se não dispusesse destes meios não servia para nada, não tinha sequer o estatuto de pensamento reflexivo superior. É a filosofia, através do seu ramo lógico, que hierarquiza os entes em indivíduo ou substância individual, espécie e género. Ora esta divisão conceptual é um meio formal de prova de milhões de asserções entre elas a seguinte: «A Rússia é um país euroasiático ( Euro-Ásia é espécie) do planeta Terra (Terra é género)».
São Tomás de Aquino provou formalmente por cinco vias a existência de Deus. Objectar-se-á: falta a prova empírica. Mas as provas formais estão na Suma Teológica.
A filosofia usa igualmente provas empíricas para numerosas das suas teses. Exemplo: as filosofias liberal, conservadora, socialista democrática e anarquista atacam a filosofia marxista-leninista e os Estados que a adoptam com provas empíricas variadas, como os 3 milhões de mortos pelo Goulag estaliniano no século XX, o fuzilamento do general Ochoa em 1990 pelos sicários de Fidel Castro após uma vergonhosa auto-crítica fruto de brutais ameaças, o massacre dos marinheiros de Cronstad em Março de 1921, as barbaridades da Grande Revolução Cultural Proletária de Mao Ze Dong, etc.
Aires Almeida distancia a filosofia da ciência como o céu da terra mas, de facto, as coisas não são assim: a alma oculta e rebelde de cada ciência é a filosofia, na sombra de cada tese científica desponta a lanterna indagadora da filosofia.
A filosofia está para as ciências, para a religião e para a ontologia como o género para a espécie, como o género animal está para as espécies homem, elefante, zebra e outras: ela contém as ciências, ainda que estas se diferenciem dela - pela diferença específica, que inclui a necessidade e o modo de ser próprio de cada ciência. A relação entre filosofia e ciência não é a relação entre duas espécies do mesmo género ou dois géneros diferentes, como supõem Aires Almeida e outros. É, sim, a relação entre o todo (filosofia) e as suas partes (ciências: química, sociologia, matemática, biologia, etc).
Igualmente se equivoca AA ao dizer que «saber se a religião contribui para a coesão das sociedades não é um problema filosófico, mas sociológico». O erro reside em separar mecanicamente sociologia de filosofia. Ora, a filosofia penetra no húmus da sociologia, como as raízes da árvore penetram na terra. Saber se a religião coesiona as sociedades é, formalmente, um problema filosófico, e materialmemte um problema sociológico.Tão simples quanto isto.
A INCOMPREENSÃO SOBRE A CONTRADIÇÃO/LUTA DE CONTRÁRIOS COMO ESSÊNCIA DE TODAS AS COISAS
Não tendo entre os seus 12 autores nenhum verdadeiro conhecedor da dialéctica enquanto ontologia, isto é, enquanto modo de ser da realidade, este Dicionário Escolar de Filosofia só poderia dar uma definição truncada, parcialmente errónea, de contradição:
«Contradição
1. Uma falsidade lógica; isto é, uma proposição cuja falsidade se pode determinar exclusivamente por meios lógicos. Por exemplo, a afirmação "Sócrates é mortal e não é mortal" é uma contradição.
2. Duas proposições são mutuamente contraditórias quando têm valores de verdade opostos em qualquer circunstância logicamente possível. Por exemplo, as afirmações "Tudo é relativo" e "Algumas coisas não são relativas" são contraditórias. Não se deve confundir inconsistência com contradição; todas as contradições são inconsistências, mas nem todas as inconsistências são contradições. Ver consistência/inconsistência. DM» (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag ;75 o bold é nosso).
Comecemos por descortinar que, ao contrário do que sustenta DM, a proposição «Sócrates é mortal e não é mortal» não é, necessariamente, uma falsidade lógica. Se a metafísica religiosa espiritualista fôr verdadeira -isto é se a nossa alma racional, o nous, o atmã, fôr imortal - é consistente dizer que Sócrates é mortal nos seus corpos físico, vital e de desejos e imortal no seu corpo espiritual racional. Isto é dialéctica. Não viola o princípio da não contradição porque a contrariedade se exerce entre aspectos diferentes do mesmo ente. A lógica proposicional que Desidério Murcho (DM) defende é, em muitos aspectos, antidialéctica, unilateral, falsificadora da realidade.
Aquilo que Desidério Murcho ignora - decerto não compreendeu Heráclito, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Hegel, Marx, Althusser e tantos outros - é que a contradição consistente, a oposição de contrários - por exemplo: protões de carga positiva, e electrões, de carga negativa, no átomo; assimilação e desassimilação, na célula; inverno e verão, no ritmo das estações; sístole e diástole no bater do coração, etc - é a essência de todos os fenómenos da natureza biofísica e humano social e individual.
Afirmar que «todas as contradições são inconsistências» é um grave erro: é esvaziar a palavra contradição do seu sentido real, ontológico - «um divide-se em dois que lutam entre si e coexistem» - e atribuir-lhe o sentido de paradoxo. De facto há contradições inconsistentes - exemplo: «eu sou homem e cavalo, fisicamente falando» - e contradições consistentes que, aos biliões, constituem a trama ontológica da realidade - exemplo: «sou bom e mau em simultâneo, bom para com os cidadãos pacíficos e honestos e mau para com os arrogantes e prepotentes». DM não concebe esta distinção, preso que está na masmorra do castelo da antidialéctica.
A INCAPACIDADE DE DELIMITAR ONTOLOGICAMENTE FENOMENOLOGIA
A incapacidade de definir fenomenologia, de a situar ontologicamente face ao realismo e ao idealismo, é outro traço deste Dicionário:
«fenomenologia
«Termo pelo qual é designado o movimento filosófico surgido a partir da obra de Edmund Husserl (1859-1938) e que tem por objectivo principal a investigação e a descrição dos fenómenos (ver fenómeno) tal como ocorrem na consciência, independentemente de quaisquer preconceitos, pressupostos ou teorias explicativas. É possível detectar pelo menos quatro tendências principais neste movimento: a fenomenologia realista, que põe ênfase na descrição das essências (ver essência) universais (Nicolai Hartman, Max Scheler); a fenomenologia constitutiva, que procura dar conta dos objectos em termos da consciência que temos deles (Dorion Cairns, Aron Gurwitsch); a fenomenologia existencial (ver existência), que realça a existência humana no mundo (Hannah Arendt, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty); e a fenomenologia hermenêutica (ver hermenêutica), que realça o papel da interpretação em todas as esferas da vida (Hans-Georg Gadamer, Paul Ricoeur). O termo é também usado para a descrição qualitativa de experiências. Em geral, a fenomenologia de uma experiência é a descrição da qualidade dessa experiência, do modo como essa experiência se dá na nossa consciência.» AN (ibidem, pag 120; o bold é nosso)
Há uma fenomenologia realista e uma fenomenologia anti realista? É a fenomenologia idealismo ou distingue-se deste? Nada disto é esclarecido por Álvaro Nunes (AN) neste artigo onde a profusão de referências historicistas e a descrição da fenomenologia como método disfarça a incapacidade de definir ontologicamente fenomenologia.
AMBIVALÊNCIA NA DEFINIÇÃO DE VALIDADE E INVALIDADE DE UM ARGUMENTO
Mesmo no terreno da lógica, este Dicionário tem insuficiências:
«validade/invalidade
«A correcção ou incorrecção de um argumento. Há dois tipos de validade: a dedutiva e a não dedutiva. Um argumento dedutivo é válido quando é impossível que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa; se isso for possível, o argumento é inválido. Um argumento não dedutivo é válido quando é improvável, mas não impossível, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa; se for provável, é inválido. Não deve confundir-se este sentido lógico dos termos "validade" e "invalidade" com o seu sentido popular, que significa "com valor" e "sem valor". Assim, popularmente diz-se que uma proposição é válida ou inválida, querendo dizer que tem valor ou que não tem valor (e, muitas vezes, que é verdadeira ou falsa). Mas não se pode dizer que uma proposição é válida ou inválida no sentido lógico do termo. No sentido lógico do termo só os argumentos podem ser válidos ou inválidos; as proposições são verdadeiras ou falsas, interessantes ou entediantes, e muitas outras coisas, mas nunca podem ter a propriedade da validade argumentativa. » DM
Sendo um «especialista em lógica proposicional», Desidério Murcho (DM) mergulha numa falácia anfibológica centrada na noção de «validade argumentativa». ´Que é validade argumentativa? DM define-a de forma vaga: correcção no argumento. Mas não diz se se trata de uma correcção propriamente formal, indepedendente de todo e qualquer conteúdo material - como é o caso da validade dedutiva - ou se se trata de uma correção formal-material, baseada na realidade empírica do mundo - como é o caso da chamada "validade indutiva".
Neste segundo caso, nunca se deveria chamar validade mas sim outra coisa: verdade material, plausibilidade (verdade plausível), solidez. DM, tão cuidadoso em vincar que «validade nada tem a ver com verdade» acaba por fundar a validade indutiva na verdade material e nem dá conta disso...Usa pois falaciosamente o termo validade, com duplo sentido, com ambiguidade.
Registe-se ainda o erro por vagueza, imprecisão, na definição de argumento não dedutivo fornecida por DM: «Um argumento não dedutivo é válido quando é improvável, mas não impossível, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa; se for provável, é inválido.» Crítica: Improvável é, ontologicamente, o mesmo que provável: ambos estão na esfera da probabilidade. Onde acaba o improvável e começa o provável? Com que escala se medem? Desidério Murcho não é capaz de o dizer. É uma definição trémula, confusa, a da validade não dedutiva.
O PRINCÍPIO DO TERCEIRO EXCLUÍDO É UM PONTO DE CHEGADA E NÃO UM PONTO DE PARTIDA?
Outra definição imperfeita, parcialmente errónea, neste Dicionário é a seguinte:
«princípio do terceiro excluído
«Chama-se "princípio do terceiro excluído" à ideia de que, para qualquer afirmação P, é verdade que P ou não P. Ou seja: o princípio declara que não há uma terceira possibilidade, entre P e não P, seja qual for a afirmação. Por exemplo: relativamente à afirmação "Sócrates é alto", só há estas duas alternativas: "Sócrates é alto" ou "Sócrates não é alto". Quando uma lógica aceita o princípio do terceiro excluído significa que qualquer afirmação com a forma "P ou não P" será uma verdade lógica. Algumas lógicas modernas recusam este princípio, como é o caso da lógica intuicionista. Não se deve confundir o terceiro excluído com o princípio da bivalência: este último é a ideia de que só há dois valores de verdade e que todas as proposições têm um dos dois, e só um dos dois. A relação precisa entre o terceiro excluído e a bivalência é objecto de disputa filosófica. Não se deve também pensar que o terceiro excluído é de alguma maneira um axioma da lógica clássica; na verdade, é um resultado, um ponto de chegada, e não um ponto de partida.» D.M (Dicionário Escolar de Filosofia)
Crítica: o princípio do terceiro excluído não se limita ao plano das afirmações (Logos predicativo), como supõe Desidério Murcho. É, antes de mais, um princípio das coisas, dos conceitos (Logos nominal), situadono plano da conceptualização antepredicativa. Exemplo: Peixe ou não Peixe (isto não é uma proposição). A proposição não é o lugar originário da verdade, mas sim a apreensão das coisas, a conceptualização. O pensamento (Noein) vem antes do discurso (Logos). O terceiro excluído existe já aí, anterior a toda a proposição - por exemplo: ser versus não ser - e por isso é um ponto de partida, um modo do ser, e não um mero ponto de chegada como sustenta DM.
A AFIRMAÇÃO DO CONSEQUENTE NO SILOGISMO CONDICIONAL NÃO É NECESSARIAMENTE UMA FALÁCIA
Este Dicionário veicula o erro lógico da moderna lógica proposicional àcerca da afirmação do consequente da primeira premissa no silogismo condicional MODUS PONENS:
«falácia da afirmação do consequente
falácia que consiste em supor que da condicional "Se P, então Q" e da afirmação da consequente dessa condicional, "Q", se pode concluir "P". Exemplo: "Se jogamos bem, então ganhamos o jogo. Ganhámos o jogo. Logo, jogámos bem." É fácil apresentar uma refutação desta forma de argumento com um contra-exemplo com a mesma forma lógica: o argumento "Se isso é sardinha então isso é peixe. É peixe. Logo, é sardinha.", implicando a falsidade "Basta ser peixe para ser sardinha", mostra que este padrão argumentativo é falacioso.» JS (in Dicionário Escolar de Filosofia)
Ao contrário do que supõe Júlio Sameiro (JS), afirmar o consequente da primeira premissa de um silogismo condicional na segunda premissa deste não é necessariamente um erro lógico, não é uma falácia.
Eis um exemplo de silogismo condicional válido:
«Se for ao Porto, entro na Torre dos Clérigos.»
«Entrei na Torre dos Clérigos.»
«Logo, fui ao Porto».
Que falácia existe neste raciocínio? Nenhuma. Está correctíssimo. Mas contraria a norma da lógica proposicional que declara inválido afirmar o consequente da primeira premissa. Este silogismo, válido e verdadeiro, demonstra a pseudociência que é a lógica proposicional.
CONFUSÃO DO PRINCÍPIO DA NÃO CONTRADIÇÃO COM O PRINCÍPIO DO TERCEIRO EXCLUÍDO
O artigo sobre o princípio da não contradição revela-se um pântano de confusão:
«não contradição, princípio da
«Chama-se "princípio da não contradição" à ideia de que duas afirmações contraditórias não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas. Por exemplo: dado que as afirmações "Sócrates é alto" e "Sócrates não é alto" são contraditórias, o princípio declara que não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas. Quando uma lógica aceita o princípio da não contradição significa que qualquer afirmação com a forma "P e não P" será uma falsidade lógica. Algumas lógicas modernas recusam este princípio, como é o caso da lógica paraconsistente. Não se deve confundir a não contradição com o princípio da bivalência: este último é a ideia de que só há dois valores de verdade e que todas as proposições têm um dos dois, e só um dos dois. Não se deve também pensar que a não contradição é de alguma maneira um axioma da lógica clássica; na verdade, é um resultado, um ponto de chegada, e não um ponto de partida. Aristóteles defende o princípio na sua obra Metafísica (Γ 4). Note-se que a redução ao absurdo só é válida caso se aceite o princípio da não contradição. DM (Dicionário Escolar de Filosofia).
Desidério Murcho (DM) designa como princípio da não contradição aquilo que é, de facto, o princípio do terceiro excluído. O exemplo escolhido por DM é defeituoso. De facto, alto e não alto não são contrários na lógica aristotélica, mas contraditórios. Dizer " Sócrates é alto ou é não alto" como, no fundo afirma DM, é exemplificar o terceiro excluído. Distracção fatal deste autor brasileiro que parece especialista em lógica mas se confunde no magma de definições algo desconexas. Se queria escolher um exemplo correcto para o princípio da não contradição seria o seguinte: «Sócrates não pode ser alto e baixo ao mesmo tempo e no mesmo aspecto ou sentido».
Aristóteles enuncia assim o princípio da não contradição, definição que não é a dada por DM acima:
«Digamos, em continuação, qual é este princípio; é impossível que o mesmo se dê e não dê no mesmo ao mesmo tempo e no mesmo sentido» (Metafísica, Livro IV, 1005 b).
Em suma, o princípio da não contradição enuncia-se assim: uma coisa não pode ser ao mesmo tempo e no mesmo aspecto duas qualidades ou propriedades contrárias entre si. É diferente do princípio do terceiro excluído.
O SOFISMA DA "METAFILOSOFIA"
Uma definição, surpreendente e sofística, é a de metafilosofia expressa neste Dicionário:
metafilosofia
«Chama-se "metafilosofia" às teorias acerca da natureza da filosofia. Estas teorias não tratam conceitos como, por exemplo, os de verdade, bem, justiça, dever, beleza, ser, conhecimento, etc.; nem respondem a problemas como, por exemplo, o de saber se todas as desigualdades são injustas ou se existe um sentido da vida, etc.. Em metafilosofia examina-se a natureza dos problemas filosóficos, como se devem estudar as teorias e os argumentos da filosofia, ou que papel desempenha a interpretação de textos, o conhecimento do contexto histórico ou o domínio da lógica no trabalho filosófico. Por exemplo, quando se discute a utilidade, a historicidade ou a universalidade da filosofia está-se em pleno campo metafilosófico.» APC (Dicionário Escolar de Filosofia).
A tentação do grupo que está por detrás deste Dicionário Escolar de Filosofia e da revista "crítica na rede" e actual direcção da Sociedade Portuguesa de Filosofia é grande: como não domina os grandes temas do tronco e das raízes da árvore da filosofia - por exemplo: as ontologias fenomenológica de Heidegger e Sartre, a ontologia reísta de Xavier Zubiri e outras - ficam-se pela rama da lógica proposicional, do que pomposamente chamam lógica modal e procuram transformar estas últimas numa "metafilosofia", isto é, numa "segunda filosofia" que controle como um açaimo o lobo livre da grande filosofia especulativa, do pensamento por excelência. Desde quando é que discutir a utilidade, a historicidade ou a universalidade da filosofia é sair fora do campo da filosofia e constitui «metafilosofia»? Isso sempre foi filosofia e continuará a sê-lo.
É óbvio que podemos conceder que as ciências, lógica incluída, ou as religiões são uma metafilosofia - estão além da filosofia - mas não reconhecemos o sentido de "metafilosofia" que António Paulo Costa (APC) quer instituir aqui.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Em artigo do seu blog A Filosofia no Ensino Secundário, intitulado «10 falsas questões mais habituais sobre a filosofia» escreve Rolando Almeida, um dos membros do grupo «crítica na rede»:
«Em filosofia não tem de se ser mais profundo do que em matemática ou química. Em primeiro lugar deve-se privilegiar a clareza que nem sempre coincide com facilidade, dependendo do estudo que se realize. Obviamente se estamos a falar de filosofia como eu estou a falar neste texto, não se exige profundidade alguma. Exige-se clareza e rigor. A ideia da profundidade em ciência e filosofia, diz respeito à sofisticação dos problemas em análise. Se estamos numa área como a Lógica Modal, envolvendo a discussão de conceitos como possibilidade e necessidade, o mais provável é que a discussão não seja muito acessível a quem não possui qualquer preparação em filosofia. A mesma questão é atribuível a uma qualquer investigação em física ou química. Mas, regra geral, estas teorias mais profundas podem ser expostas a um nível mais intuitivo. E porque é que existe esta necessidade de explicar aos mais leigos os problemas mais sofisticados? Por uma razão muito simples. Somos seres limitados no tempo e um dia alguém vai ter de continuar os nossos estudos, desenvolvendo-os e possibilitando novas descobertas, por isso temos de ensinar aquilo que sabemos ou condenamos o saber à sua morte. Depois porque um filósofo só descobre as fragilidades das razões que oferece em favor das suas teses se um outro o puder estudar e refutar.» (Rolando Almeida)
É óbvio que, ao contrário do que sustenta Rolando Ameida, em filosofia se tem de ser mais profundo que em matemática e em química - o que é uma tarefa para a elite dos filósofos autênticos. Se a filosofia não descer às raízes, à substancia oculta da química e da matemática, não pode constituir-se em epistemologia destas, nem pode aspirar a ser uma visão de síntese, holística.
Rolando Almeida contradiz-se, ademais, ao dizer que ao falar de filosofia, do modo que o faz, «não se exige profundidade» alguma mas sim «clareza e rigor». Na verdade, clareza e rigor pressupõem profundidade de pensamento. Profundidade de pensamento e simplicidade de exposição deste são apanágio dos grandes pensadores, não do vulgo dos professores de filosofia.
Ao qualificar a «profundidade filosófica» como sofisticação, Almeida desliza sem o saber para o glaciar da sua verdade: sofisticação designa subtileza excessiva, falsificação (vem de sofística; ver Dicionário de Língua Portuguesa, 6ª edição, Porto Editora). A filosofia profunda não é sofisticada.
Sofisticados (sofistas, pseudofilósofos) são os que, mediante uma terminologia complicada, pretendem, sem clareza nem rigor, arvorar-se em «filósofos, lógicos modais e proposicionais,» antepondo as suas regras fragmentárias do «pensar» à perfeição conteudal do pensar.
O «simplex» filosófico que Rolando de Almeida advoga é, no fundo, a outra face do cientismo - essa pretensão que a ciência dominante ostenta de ser intocável, de explicar tudo por «factos científicos», de ser tão ou mais profunda que a filosofia e blindada à investigação desta.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
À primeira vista, a filosofia «é» mais «a priori» -isto é, anterior à experiência, isenta de experiência - do que a ciência.
Assim pensam alguns autores como os do Manual de Filosofia do 11º ano português A Arte de Pensar que, no texto seguinte, fornecem uma distinção confusa entre a filosofia e a ciência (o negrito é nosso):
«O perspectivismo fraco apoia-se na diversidade de actividades cognitivas, que estudam diferentes aspectos da realidade. Assim, por exemplo, a filosofia procura a verdade sobre problemas de carácter mais básico e mais geral, consistindo num estudo a priori, enquanto a ciência procura também a verdade, mas sobre problemas de carácter empírico ou formal. A natureza dos objectos da filosofia e da ciência é, portanto, diferente. Temos resultados diferentes mas esses resultados são acerca de diferentes objectos.»
(Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, manual de Filosofia do 11º ano, Didáctica Editora, pag. 222-223).
Salta à vista um primeiro equívoco neste texto: o conhecimento a priori opõe-se decerto a empírico mas não se opõe a formal, pelo contrário, inclui este. A filosofia, pela lógica que lhe é inerente, possui uma forte dimensão formal. E não é verdade que a filosofia se abstenha de buscar a verdade sobre problemas de carácter empírico e que estes sejam exclusivo da ciência, como o texto quer fazer crer. Os problemas da legitimidade do aborto voluntário, da censura na internet e na imprensa em geral, da dicotomia capitalismo/ comunismo, da industrialização versus preservação ecológica, etc, são problemas empíricos e filosóficos. Sustentar que a filosofia consiste apenas num «estudo a priori» é truncá-la, reduzi-la a uma gramática do pensamento.
O conhecimento a priori é o conhecimento obtido sem recurso directo ou indirecto à experiência sensorial. Em princípio, a sua fonte preexiste à vida biológica: as ideias inatas postuladas por Descartes - segundo este, ao nascer, já teríamos gravados na nossa mente as ideias de alma, Deus, corpo, números, figuras geométricas - são conhecimentos a priori.
Podemos, no entanto, admitir que enquanto se vive, isto é, enquanto nos banhamos permanentemente no mundo empírico, na experiência sensorial, exista no nosso espírito um compartimento escuro, hermeticamente fechado à experiência, no qual se processa o conhecimento a priori ( exemplo: conceber um triângulo, conceber que à diversidade de determinações subjaz uma unidade essencial). Seguramente, Kant partilhava este ponto de vista.
Kant escreveu (o negrito é nosso):
«A matemática fornece o exemplo mais brilhante de uma razão pura que se estende com êxito por si mesma, sem o auxílio da experiência.» (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 581).
«Assim, construo um triângulo, apresentando o objecto correspondente a um conceito, seja pela simples imaginação na intuição pura, seja, de acordo com esta, sobre o papel, na intuição empírica, mas em ambos os casos completamente a priori, sem ter pedido o modelo a qualquer experiência» (Kant, ibid, pag 580).
«O conhecimento filosófico considera, pois, o particular apenas no geral, o conhecimento matemático, o geral no particular e mesmo no individual, mas a priori e por meio da razão, (...)»
«É nesta forma que consiste, por consequência, a diferença entre estes dois modos de conhecimentos racionais e não é sobre a diferença das matérias ou objectos que repousa.» (Kant, ibid, 580)
Kant postula que tanto a filosofia como a matemática são conhecimentos à priori.
A filosofia não é, a nosso ver, mais «a priori» do que a lógica e do que a matemática, ciências formais. Definir filosofia como «conhecimento a priori» é defini-la como lógica e como dialética mas não como epistemologia ( a filosofia pensa sobre as noções de átomo, vacina, infraestrutura e superestrutura, id, ego e super-ego, etc) , ética, estética, gnosiologia.
A filosofia é, em larguíssima media, conhecimento a posteriori, obtido com base na experiência sensorial, articulado com conhecimento a priori. O seu objecto é rigorosamente o mesmo que o da ciência: a «realidade», «a verdade objectiva». Diferem apenas no grau de dogmatismo e de positividade.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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