Eis alguns simples pensamentos que flutuam ao sabor dos dias, sem pretensões, nesta primavera de 2017.
TODA A GENTE «TRAI» TODA A GENTE NO AMOR, AO MENOS EM PENSAMENTO. E não há modo de dar a volta a isto. Namoros e casamentos são contratos de parceria sexual ou económica. Deus é comunista ou anarquista: põe todos a ligar com todos.
AMAR É CUIDAR DE. É por isso que o amor prescinde, em muitos casos, da união sexual física. Vai além disso, é o amor do rosto, do sorriso, das ideias, do carácter.
O OBJECTIVO DA VIDA É DIVERTIR-SE SAUDAVELMENTE, AMAR, FAZER ARTE, VIAJAR, LER, FAZER POESIA, PARTILHAR ALEGRIA E MEIOS ECONÓMICOS COM OS OUTROS. Não é trabalhar. O trabalho, o automóvel próprio ou a casa de campo e o casamento são apenas meios, instrumentos, ao serviço da diversão, do sexo criativo, da manutenção da saúde física e mental, da paz na vizinhança, e da difusão da verdadeira ciência de viver (alimentação biológica sem amidos, nem laticínios nem frutas, fitoterapia, helioterapia, astrologia científica, teurgia, etc.).
NESTE DOMINGO DE PÁSCOA, 16 DE ABRIL DE 2017, PROCISSÃO EM HONRA DA VIRGEM DE GUADALUPE DE SÃO JORGE E DE SÃO LUÍS, NO ALTINHO DE SERPA. Em 2016, participei nesta procissão no Domingo de Páscoa com objectivos/ pedidos específicos: conquistar uma rapariga de olhos de fogo, linda(são as piores porque não lhes faltam pretendentes) e editar um determinado livro. Creio que não consegui nenhum destes pedidos. Somos, os crentes, uns «pedinchas», uns interesseiros.
OS PROFESSORES DE FILOSOFIA E OS FILÓSOFOS SÃO CARENTES DE PENSAMENTO HOLÍSTICO. O facto de negarem e ignorarem os movimentos dos planetas no Zodíaco enquanto causas de todos os acontecimentos no planeta Terra ilustra bem o papel mistificador da filosofia no presente século XXI e nos séculos transactos. Para os ignorantes filósofos não tem qualquer significado o facto de Júpiter ocupando graus do signo de Carneiro (arco do céu de 0º a 30º em longitude eclíptica) gerar, pelo menos aparentemente, viragens à direita em Portugal, como por exemplo: em 27 de Abril de 1928, com Júpiter em 21º do signo de Carneiro, ascensão do católico direitista Oliveira Salazar a ministro das Finanças do 4º governo da Ditadura Militar em Portugal; em 25 de Abril de 1975, com Júpiter em 8º-9º do signo de Carneiro, eleição da Assembleia Constituinte com maioria de deputados de partidos da direita e do centro-esquerda (PS 116 deputados, PPD 81 deputados, CDS 16 deputados) colocando em minoria a esquerda comunista (PCP 30 deputados, MDP 5 deputados) e revolucionária (UDP, 1 deputado); em 19 de Julho de 1987, com Júpiter em 28º do signo de Carneiro, vitória esmagadora da direita incarnada no PSD do primeiro ministro Cavaco Silva com maioria absoluta de deputados em eleições legislativas em Portugal; em 23 de Janeiro de 2011, com Júpiter em 0º do signo de Carneiro, reeleição de Cavaco Silva, do centro-direita, presidente da República Portuguesa.
SUÉCIA E ATENTADOS COM MERCÚRIO OU VÉNUS EM 28º DE PEIXES. Tudo está escrito nos astros e graus do Zodíaco mas a nossa inteligência é pequena para prever de forma exacta a data de atentados e acidentes na Suécia, país do meu coração além de Portugal e Espanha.
Em 28 de Fevereiro de 1986, com Mercúrio em 27º 10´/ 28º 11´ de Peixes, Olof Palme, primeiro-ministro social-democrata da Suécia, é assassinado a tiro por um desconhecido, presumivelmente um polícia chileno fascista, numa rua de Estocolmo após sair de um cinema; em 7 de Abril de 2017, com Vénus em 28º do signo de Peixes, um camião avança ao princípio da tarde sobre várias pessoas e embate na montra de uma loja da rua Drottninggatan (Rua da Rainha), uma via pedonal no centro de Estocolmo, fazendo pelo menos cinco mortos e oito feridos, em ataque terrorista.
FRANCISCO GEORGE ESTÁ PREOCUPADO COM O MOVIMENTO DOS PAIS QUE RECUSAM VACINAR /ENVENENAR OS SEUS FILHOS. Frente à «grande epidemia» do sarampo (23 casos em Portugal!) o Director Geral de Saúde, o médico Francisco George, fanático defensor da absurda doutrina da vacinação que suja o sangue com vírus atenuados e toxinas para «ensinar o organismo a defender-se» (ah,ah,ah), aparece nos telejornais a queixar-se dos pais mais intelectuais que recusam vacinar os filhos. Mas grave no plano jurídico e filosófico, é o facto de como agente do fascismo médico no seio da medicina alopática, exigir punição para os pais que não vacinem os filhos. Já somos milhares a recusar as vacinas/ venenos das multinacionais e seremos muitos mais...
A TELEVISÃO SÓ DÁ VOZ AOS DEFENSORES DA VACINAÇÃO, MANIPULANDO AS PESSOAS. O sarampo foi erradicado devido ao consumo de frutos e vegetais em larga escala, ao desporto de massas, aos banhos de sol na praia, aos banhos e cuidados diários de higiene e não às vacinas.Os vírus não são as causas essenciais das doenças mas sim o terreno orgânico sujo pelo tabaco, cadaverinas e maus alimentos. A vacina introduz a fase crónica, silenciosa da doença, como provou o professor Tissot, sábio francês.
SINCRONISMO ONTOFONÉTICO- Em 16 e 17 de Abril de 2017, a ideia de SIM está em destaque: no dia 16, o SIM no referendo pedido pelo presidente Erdogan às suas reformas anti.parlamentares na Turquia triunfa; no dia 17, um avião Piper PA-31T Cheyenne II, pertença da empresa SYMbios (evoca: SIM) Orthopédie, que fabrica e distribui próteses ortopédicas com sede na Suíça, sai do aeródromo de Tires rumo a Marselha, cai e choca com a galera de um camião junto ao hipermercado Lidl em Tires e incendeia-se, fazendo explodir o camião, às 12 horas e 5 minutos, morrendo as quatro pessoas que iam a bordo do avião, vejo na loja Kilim em Beja uma senhora tocar um SINO (evoca: SIM) tibetano, o Director Geral de Saúde, o médico Francisco George, aparece nos telejornais a queixar-se dos pais mais intelectuais que recusam submeter os filhos à prática da VACINA (evoca: SIM).
OSHO E A FRAGILIDADE DE DEUS. Diz o filósofo indiano Osho (1931-1990): «Só uma mente poética pode compreender a possibilidade de Deus, porque Deus é o mais fraco e mais sensível dos seres. É por isso que é o altíssimo; é a flor suprema. Floresce, mas floresce apenas numa fração de segundo. Essa fração de segundo é conhecida como "o presente". (...) Está sempre em flor - floresce em cada momento; mas não o pode ver, a sua mente está atravancada com o passado e o futuro»(Osho, Intimidades, pp 121-122).
É fácil perceber que Deus, segundo Osho, não é o ente dos castigos e dos mandamentos do Velho e Novo Testamento, do Alcorão, do Bhagavad-Gita, etc. Nem expulsou Adão e Eva do Paraíso nem criou o Inferno porque senão seria maldoso.É um Deus alegria, que desfaz os casamentos, as relações aborrecidas e põe a liberdade acima do amor.
QUINTA FEIRA SANTA E A MÃE DE TODAS AS BOMBAS. 13 de Abril de 2017. Quinta Feira Santa para o catolicismo e o protestantismo. Os EUA lançam uma poderosa bomba que destrói grutas e túneis do Estado Islâmico no Afeganistão. É assim a naureza humana: um lado religioso, que fala de paz e, ao mesmo tempo, um lado bélico patente no instinto de defesa e ataque violento que exige abater o inimigo, Quem protege mais o Ocidente democrático burguês da barbárie islâmica: Donald Trump e as suas bombas ou o papa Francisco e as suas orações?
Nesta Quinta Feira, consegui manter um jejum de 20 horas até ao jantar às 20.10 horas. Jantara pizza no dia anterior, 12 de Abril, e estive sem comer nem beber até às 20 horas e 10 minutos de 13 de Abril. Para quê? Auto limpeza do organismo? Ou motivação mística, religiosa?
EM BEJA HÁ MAIS QUALIDADE DE VIDA DO QUE EM LISBOA E PORTO. Ar puro. Paisagem alentejana. Casario branco em Beja mais limpo que milhares de prédios sujos e degradados em Lisboa e Porto. É certo que os jovens precisam de sair de Beja para serem mais livres e poder voltar a amar a cidade capital do Baixo Alentejo e as planícies de oliveiras, sobreiros e azinheiras. O que há é menos oferta de emprego em Beja do que em Lisboa e Porto.
CRISTINA ELOGIA BEJA .«No Algarve, há praias lindas, sol, mas a confusão de tráfego e a agitação dão-lhe pior qualidade de vida do que em Beja» - diz Cristina, professora - «Beja está muito bem situada, com saídas apetecíveis para Évora, Sevilha, Lisboa. Em uma hora e meia, ponho-me em Lisboa e posso ir assistir a um espectáculo de teatro ou música. Se estivesse no Algarve era mais complicado chegar a Lisboa e não conseguia ir assistir a tais espectáculos no mesmo dia. Diz-se que há o lado conservador, da «má língua» de Beja, mas no Algarve é igual. Anonimato, sair para a rua e não nos vigiarem ou identificarem, só em Lisboa.»
MATÉRIA É MATRIX. A matéria é real e temos que viver usando as suas leis: não fumar porque fumar suja os pulmões e o organismo, beber água pura, não carregar pesos excessivos, etc. Mas, ao mesmo tempo, a matéria é a fonte da ilusão: é por causa dela que o ladrão assalta pessoas ou a caixa ATM, a pessoa X se mata a trabalhar, etc. Por isso ela é matrix criadora da realidade irreal, aparente, e há que admitir uma realidade oposta a ela.
O NOSSO AMOR É EXTREMAMENTE FORTE. Uma das razões: sou décadas mais velho que ela. Como posso deixar a vida a qualquer momento - e ela também pode, por outras razões - amamo-nos intensamente. Mesmo se estivermos em cidades diferentes. «Como se fuera esta noche la última vez...» Não ligamos à opinião pública que condena o abismo entre gerações. A paixão correspondida - eis o supremo prazer. Não depende só da nossa vontade - os astros lá estão a mandar.
PORQUÊ PORTUGAL LIVRE ATÉ AGORA DE ATENTADOS ISLAMISTAS? João diz-me: «Há milhares de islâmicos fundamentalistas em Portugal. E são recrutados mais e mais. Mas a Jihad e o Isis precisam de uma base onde possam estar à vontade e não sofrer constantes rusgas policiais, prisões de militantes. Outro factor é que os portugueses não fazem manifestações anti islâmicas à porta da mesquita.»
COZINHEIRA GOURMET, 60 HORAS DE TRABALHO SEMANAL, 575 EUROS DE SALÁRIO - Durante um almoço num monte alentejano (sou um fã da teoria de Beja ser o centro esotérico do mundo...o cume da beleza horizontal), uma amiga diz-me: «Valorizem as cozinheiras. A minha filha de 20 anos é assistente de cozinha num restaurante gourmet de Lisboa e trabalha 60 horas por semana: 15 horas por dia. E ganha o salário mínimo nacional: 575 euros.»
É assim em muitas empresas privadas capitalistas em Lisboa e não só. Desapareceu nos anos 90, o bloco soviético, das burocracias comunistas que protegiam em aspectos laborais a classe operária e a ganância do capitalismo hiperindividualista triunfou no Ocidente, como no Leste como na China formalmente «comunista».
PENSA-SE, EM PORTUGAL? Os ídolos que a TV ou o governo ou a presidência da república nos oferecem são criaturas superficiais, como o Cristiano Ronaldo (nome de aeroporto!) que prendem o público por certa magia estética que irradia do corpo em movimento. Mas a estética, arte do belo e do feio, desvia-nos muitas vezes da profundidade do pensamento, da verdade, que é ontológica e não ôntica . O fado? Embriaga-nos. O cante alentejano? Comove-nos mas não evita o arranque de oliveiras centenárias em Serpa, Mértola, Beja para serem levadas para os países árabes ricos ou para sedes de mega empresas capitalistas europeias. Pensa-se pouco em Portugal, as massas estão alienadas.
LISBOA SÓ QUER FACTURAR. Lisboa está uma capital deliciosa para o turismo de massas. O Manuel contesta: «Lisboa só quer facturar; no turismo, artesanato, etc. É uma cidade de gente fútil, em especial os políticos, os galeristas, os que ocupam cargos importantes, gente que finge o que não é. Lisboa só é grande quando se torna atlântica na sua relação com negros, latino-americanos, asiáticos. Virada para a Europa, Lisboa é pequena, provinciana, imita pretensiosamente o europeísmo de sucesso. O melhor de Lisboa é a ponte sobre o Tejo: tem saída para o Alentejo.»
A CABRA E O CORVO, OS ANIMAIS MAIS INTELIGENTES. 8 de Abril de 2017. Somos nove pessoas a almoçar ao ar livre sob um toldo de plástico num monte alentejano onde se faz agricultura biológica. O Manuel, de um saber enciclopédico, diz: «As pessoas enganam-se se pensam que o cão e o cavalo são os animais mais inteligentes do habitat do homem. Não são. O mais inteligente é a cabra que convive com o homem há 60 000 anos ao passo que a vaca só se ligou ao humano há 6000 anos. Enquanto que o leite de vaca cria intolerância à lactose, o leite de cabra não cria e pode alimentar ovelhas, humanos, cães, gatos, etc. Não é por acaso que o Diabo, considerado o rei da astúcia, das artimanhas, é representado em forma de bode, o macho da cabra. Eu já tive um corvo e a GNR veio retirar-mo porque uma vizinha supersticiosa se queixou de que a ave podia servir a «magia negra». Sei que os corvos comunicam uns com os outros e de semanas a semanas fazem congressos em regiões campestres: vêm corvos de todo o lado e reunem-se a gasnar. Eliminam os doentes e têm outras regras. Ninguém sabe onde são os ninhos dos corvos. Preservam o anonimato e podem chegar a durar 120 anos, o que só se consegue sendo muito inteligente».
NINGUÉM ME AMA. AMAM A MINHA PROSA, AS INTUIÇÕES, AS CORRELAÇÕES QUE ESTABELEÇO NESTES TEXTOS. Sou um treinador da mente, a minha equipa joga contra a falta de sentido da vida, descobrindo estratégias, graus do Zodíaco. E nem mesmo ela, a amada por quem tudo faria, me ama. Só Santa Rita de Cássia, a Virgem Maria, a deusa Vénus, o Deus dos cátaros, a natureza vegetal e o Sol e a planície alentejana me amam. Mais ninguém.
NO MEIO DE TANTAS FESTAS EM BARES E DISCOTECAS, DE TANTAS VISITAS NO FACEBOOK, COM MILHARES DE ««AMIGAS/AMIGOS», lembra-te que só duas, três ou quatro pessoas gostam a sério de ti e são capazes de te acompanhar na doença, no desemprego ou na solidão. Os outros são estranhos no essencial ainda que possam pedir ajuda para ti se te virem desmaiada/o no chão.
MARÇO E ABRIL, A MEIA ESTAÇÃO. 3 de Abril de 2017. Encontro Ferro. Pergunto: «Então não foi ao Congresso das Açordas em Portel ouvir o Quim Barreiros, no domingo?» Ele: «Não. Fiz uma coisa melhor. Uma caminhada de 12 quilómetros em torno de Mértola que reuniu mais de 100 funcionários das repartições de Beja, Évora, Setúbal, Lisboa, Algarve. Agora é o tempo para as fazer. Depois em Maio vem o muito calor».
É assim, no Alentejo. A nossa primavera moderada é curta: passa-se do frio invernal ao calor tórrido do verão, do domínio do latifúndio por uns poucos à reforma agrária dos muitos trabalhadores ocupantes de terras. Se a vida é curta, fazemos caminhadas para a dilatar, pelos campos ainda verdes do querido Alentejo, nossa mãe-pai telúrica.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
João Miguel Branquinho, catedrático de filosofia da Universidade de Lisboa, doutorado em Oxford, mergulha em confusões ao reproduzir as confusas teses de Saul Kripke sobre materialismo . No seu ensaio «Contra o materialismo» escrito no âmbito do projecto de investigação Atitudes Proposicionais e Dinâmica Cognitiva, financiado pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa de que uma versão abreviada foi apresentada no 1º Encontro Nacional de Filosofia Analítica (ENFA) realizado em Coimbra em 17-18 de Maio de 2002, escreve Branquinho:
«As seguintes teses acerca de três formas de identidade psicofísica dão-nos três formas relativamente independentes de materialismo acerca do mental: a) identidade de substâncias. A substância que tem atributos mentais, a mente, aquilo que satisfaz frases abertas como ‘x está a pensar no Ser’, é identificada com a substância que tem atributos físicos, o corpo, aquilo que satisfaz frases abertas como ‘x tem 1m 80 cm de altura’. b) identidade de propriedades (identidade tipo-tipo). Cada propriedade mental ou tipo de estado mental, a propriedade expressa por frases abertas como ‘x é uma dor’, é idêntica a uma certa propriedade física ou tipo de estado do cérebro, a propriedade expressa por frases abertas como ‘x é um disparar de tais e tais neurónios’. Tipos mentais são objectos repetíveis, exemplificáveis. c) identidade de particulares (identidade especimen- especimen). Cada estado ou evento mental particular,aquilo que satisfaz frases abertas como ‘x é uma dor’, é idêntico a um certo estado ou evento físico no cérebro, aquilo que satisfaz frases abertas como ‘x é um disparar de tais e tais neurónios’. Eventos mentais particulares são objectos irrepetíveis, não exemplificáveis.»
(http://www.joaomiguelbranquinho.com/uploads/9/5/3/8/9538249/materialismo.pdf, excerto extraído em 3 de Setembro de 2015)
Seria interessante começar por definir identidade, coisa que Branquinho não faz com clareza: há identidade-mesmidade (uma coisa é idêntica a si mesma, um género é idêntico a si mesmo; exemplo: a Torre de Belém é idêntica a si mesmo, o género humano é idêntico a si mesmo e não ao género elefante ou ao género planeta) há identidade inclusiva (exemplo: o espírito é uma modalidade da matéria, isto é, os pensamentos são formas muito subtis de matéria, incluem-se nesta, tal como a madeira, a carne, a pedra) e há identidade exclusiva, de contrários( exemplo: saúde e doença são idênticas, isto é, formam uma unidade que é o estado e o grau de vitalidade de um organismo).
Ora, as três definições de materialismo aqui expostas não são «relativamente independentes entre si», pecam por falta de hierarquização. É o clássico erro da filosofia analítica que multiplica horizontalmente as definições sem as conseguir seriar, hierarquizar, reduzir o múltiplo ao uno, o que implicaria verticalização de conceitos (espécie, género, universal supra-genérico). Há uma só definição de materialismo: é a doutrina segundo a qual a matéria - algo que ocupa espaço, é dotado de diversos graus de impenetrabilidade e é composta de átomos e partículas infinitamente pequenas- é a essência de tudo, sendo o próprio espírito humano uma forma subtil de matéria. Portanto, só há um materialismo, definido como identidade de substâncias reduzidas a matéria ( a matéria é todas as coisas inclusive o espírito) Dividir materialismo em três espécies, isto é, pôr no mesmo plano que o materialismo em geral o chamado materialismo tipo-tipo e o materialismo especimen-especimen é um erro teórico de Kripke e do seu seguidor João Branquinho. A primeira definição de materialismo no texto acima subsume as outras duas.
O conceito de especimen-especimen ou a particularização inimitável ou nominalismo não é intrínseco ao conceito de materialismo, pode ser igualmente aplicado ao conceito de idealismo: é uma categoria do género numerológico (um só, muitos, todos) ao passo que materialismo é uma categoria do género ontológico (matéria como princípio do ser, espírito como essência do ser, etc). Kripke e Branquinho não possuem suficiente capacidade de visualização filosófica que lhes permita ver que estão a interligar géneros diferentes e a perder de vista o essencial, o conceito de materialismo que nem sequer conseguem definir de forma absolutamente clara.
UMA DEFICIENTE ANALOGIA ENTRE A DOR E A ESTÁTUA DE GOLIAS
Demarcando-se ,em certa medida, de Kripke, prossegue João Branquinho:
«Proponho-me explorar a analogia existente entre o caso dos objectos materiais comuns e o caso dos particulares mentais, e defender a ideia de que o padrão de explicação deve ser o mesmo para ambos os casos.»
«Para recorrer a um exemplo clássico, considere-se a estátua de bronze que tenho à minha frente e que representa o gigante Golias. Chamemos a esse objecto material ESTÁTUA. Consideremos agora a matéria particular, o pedaço específico de bronze, da qual esse objecto é composto. Chamemos-lhe BRONZE. Para dramatizar a situação, imaginemos que ambos ESTÁTUA e BRONZE começam a existir na mesma ocasião e cessam de existir na mesma ocasião (e ignoremos complicações derivadas das alterações e daa deteriorização a que o material está sujeito ao longo da sua existência). Tudo indica que ESTÁTUA não é nada mais do que BRONZE, que são objectos numericamente idênticos. Afinal, ocupam a mesma porção do espaço no decorrer de toda a sua existência, e têm em comum todas as propriedades que lhes estamos inclinados a atribuir. Todavia, argumentos modais poderosos podem ser construídos demodo a obter a conclusão contra-intuitiva de que ESTÁTUA e BRONZE são objectos distintos.Considere-se, por exemplo, a propriedade modal que uma coisa x tem quando satisfaz a seguinte condição contrafactual: se o bronze se derretesse então x deixaria de existir. BRONZE não tem esta propriedade, mas ESTÁTUA tem-na; ou seja, uma situação possível na qual o bronze se derrete é uma situação possível onde BRONZE continua a existir, mas ESTÁTUA não. Logo, BRONZE e ESTÁTUA não são idênticos. Suponhamos que argumentos deste género, os quais são surpreendentemente semelhantes aos argumentos modais anti- materialistas de Kripke, estabelecem de facto uma não identidade. Ficamos com o problema da identidade do objecto material relativamente à matéria do qual é feito. Se o objecto material que tenho diante de mim não é a matéria que o constitui, se é algo distinto do pedaço de bronze que também está diante de mim, então o que é afinal?
A sugestão que gostaria de fazer vai no sentido de considerar qualquer explicação queseja satisfatória para casos destes como uma explicação satisfatória para os casos de não identidades psicofísicas de particulares. A analogia consistiria em dizer que, do ponto de vistada sua identidade, a experiência de dor a está para o estado neurofisiológico b que é o seu suporte material assim como a estátua de Golias está para o pedaço de bronze que a constitui. »
(http://www.joaomiguelbranquinho.com/uploads/9/5/3/8/9538249/materialismo.pdf, excerto extraído em 3 de Setembro de 2015; o destaque a negrito é posto por mim)
O problema da identidade entre bronze e estátua de bronze não tem o grau de complicação que Branquinho lhe atribui. Estátua e bloco cúbico ou paralelipipédico de onde foi extraída são, de facto, coisas distintas. São não idênticas pela forma, facto que Branquinho não explicita e são idênticas (identidade inclusiva, noção que expliquei acima) na matéria. A analogia entre a dor e a estátua, estabelecida no texto de João Branquinho, é errónea porque a dor não é uma forma mas a estátua é uma forma plasmada numa forma irregular da matéria bronze. A dor é um estado neurofisiológico, não se distingue deste, mas a estátua de bronze distingue-se do bronze, não é apenas bronze mas este adicionado da forma particular de um homem, Golias.
NÃO HÁ IDENTIDADE ENTRE A ESSÊNCIA-BASE DO OBJECTO E ESTE NUMA DADA SITUAÇÃO ?
Na linha da filosofia analítica que substitui, muitas vezes falaciosamente, o raciocínio discursivo e a intuição, por fórmulas e variáveis como x, y, x qua p, etc., que mascaram e tornam confuso e mecânico o fio do pensamento, João Branquinho sustenta a tese de a base de um objecto, por assim dizer, a sua essência imutável, não se identifica com o objecto em certa situação exibindo uma certa propriedade contingente (o qua objecto):
«Uma possibilidade que me parece atraente é a teoria dos qua objectos proposta há já algum tempo por Kite Fine num pequeno artigo intitulado Acts, Events and Things (Fine 1982). Um qua objecto é uma espécie de fusão lógica de um objecto com uma propriedade. Dado um objecto x e uma propriedade P que x tenha, podemos construir a partir desses dois objectos um terceiro objecto, um qua objecto, o qual consiste em tomar o objecto x como se a propriedade P lhe tivesse sido“colada”. O resultado é x qua P, um qua objecto. Por exemplo, dados Durão Barroso e a propriedade, que ele tem, de ser primeiro- ministro, temos o qua objecto Durão Barroso qua primeiro-ministro. Fine chama a x a base do qua objecto x qua P e à propriedade P a sua glosa.»(...)
«Parece que podemos identificar Véspero com o qua objecto Vénus qua visto ao entardecer e Fósforo com o qua objecto Vénus qua visto ao amanhecer. Como as propriedades envolvidas nas glosas são obviamente diferentes, segue-se pelo princípio da identidade que os qua objectos Vénus qua visto ao entardecer e Vénus qua visto ao amanhecer são distintos. Logo, Véspero e Fósforo são numericamente distintos, o que é claramente inaceitável. Todavia, a objecção não colhe. A razão é, naturalmente, a de que a premissa usada, a pretensão de que Véspero é identificável com o qua objecto Vénus qua visto ao entardecer e Fósforo com o qua objecto Vénus qua visto ao amanhecer, é falsa. De facto, pelo princípio da identidade, um qua objecto x qua P não pode ser identificado com o objecto x que é a sua base; assim, dado que Véspero é Vénus, o qua objecto Vénus qua visto ao entardecer não pode ser identificado com Véspero (mutatis mutandis para Fósforo).
(http://www.joaomiguelbranquinho.com/uploads/9/5/3/8/9538249/materialismo.pdf, excerto extraído em 3 de Setembro de 2015; o destaque em itálico é colocado por mim).
É certo que um objecto em dada circunstância (o qua objecto) - por exemplo, Mário Soares aos 30 anos de idade e Mário Soares aos 91 anos de idade - não é formalmente o mesmo que o objecto base, Mário Soares (nascido em 7 de Dezembro de 1924 e ainda hoje vivo), não são formalmente idênticos. Mas há uma identidade informal, inclusiva, entre a base e as diferentes manifestações em diferentes tempos e lugares. Em suma: o qua objecto não é idêntico, na sua forma acidental, à sua base mas é idêntico, na sua forma essencial, à sua base. Dialética, estranha ao pensar de Branquinho! Os qua objectos, isto é, os diferentes momentos da existência de um objecto, estão potencialmente ou actualmente contidos na essência base como ensinou Hegel, sem usar a expressão qua objectos. Quer-me parecer que dialética hegeliana escapa, a João Branquinho e a Saul Kripke.
www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Eis um teste de filosofia do 11º ano de escolaridade em Portugal, evitando as perguntas de escolha múltipla em que o aluno coloca um X na hipótese que supõe estar certa e fica dispensado de explanar as suas ideias num corpo discursivo coerente.
Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA B
11 de Março de 2015. Professor: Francisco Queiroz
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.”.A ciência é a nossa religião. O que sucede no seu interior é a Boa Nova (Evangelho). O que sucede extramuros de ela são idiotices pagãs… A força motriz (das ciências actuais, originadas no século XVII) foi o nascimento de novas classes que se tinham visto excluídas do campo do conhecimento e que converteram a dita exclusão em proveito próprio, afirmando que o conhecimento era o que elas possuíam, e não o dos seus adversários. Uma vez mais esta ideia foi aceite por todos, nas artes, na ciência, na religião, até ao ponto de que hoje temos uma religião sem ontologia, uma arte sem conteúdos, e uma ciência sem sentido». (Paul Feyerabend, Diálogo sobre o método).
1) Explique estes pensamentos de Feyerabend, integrando a noção de IDEOLOGIA .
2) Explique, como, segundo a gnosiologia de Kant, se formam o fenómeno GALO, o conceito empírico de GALO.
3)Relacione, justificando:
A) Categorias e antinomias da razão em Kant e conjecturas em Popper.
B) Inteligência do homem primitivo do mito, inteligência do cientista do século XX, métodos da ciência, na perspectiva do anarquismo epistemológico em Paul Feyerabend.
C) Dualismo Yang-Yin, quatro forças fundamentais da natureza, realismo/idealismo não solipsista.
CORRECÇÃO DO TESTE ESCRITO (COTADO PARA 20 VALORES)
1)«A ciência é a nossa religião» significa que a mentalidade científica actual é dogmática como a teologia, acreditando em dogmas que não podem ser postos em causa, como por exemplo, « O Big Bang deu-se há 15 000 milhões de anos e foi o começo do universo», «as vacinas conferem imunidade», «os astros não comandam o comportamento humano». Os cientistas de hoje são os bispos e papas da nova religião da ciência. As ciências actuais nasceram com o emergir da burguesia industrial e financeira actual e por isso estão impregnadas de ideologia - sistema de ideias e valores de uma classe social- neste caso, a burguesia. A ciência e a tecnologia do automóvel como veículo de transporte individual ou familiar insere-se na ideologia individualista da burguesia: «Enriquece, compra um carro próprio, viaja livremente».
Que significa dizer que hoje temos uma religião sem ontologia? Significa que temos um conjunto de ritos cujo simbolismo profundo já perdemos, em cuja filosofia original já não penetramos. Por exemplo, ignoramos que o facto de a pia de baptismo de antigas igrejas e catedrais ser octogonal é porque o oito significava a oitava esfera que, em alguma gnose, era a esfera de Sofia, a Virgem Maria do cristianismo, a Stela Maris representada na rosa dos ventos ou estrela de oito pontas que orientava os navegantes (as almas) perdidos . Constroem-se hoje igrejas com uma arquitectura moderna ignorando o número de oiro (1,618), número mágico de proporção entre o comprimento e a largura e a altura de um compartimento. Que significa dizer que hoje impera uma arte sem conteúdos? Significa, por exemplo, que uma tela branca salpicada de pontos vermelhos é um quadro sem conteúdo, um significante sem significado. Que significa dizer que há uma ciência sem sentido? Significa, por exemplo, que há uma medicina que não percebe o sentido da febre - acção de autodefesa do organismo, expulsando as toxinas através do suor ou de urinas escuras - e manda reprimir os sintomas, tomando anti piréticos. (VALE QUATRO VALORES).
2) Segundo a gnoseologia de Kant, o fenómeno galo forma-se na sensibilidade, no espaço exterior ao meu corpo físico, do seguinte modo: de '«fora» da sensibilidade, os númenos afectam esta fazendo nascer nela um caos de matéria (exemplo: madeira, ferro, areia, etc, em um magma) que as duas formas a priori da sensibilidade, o espaço (com figuras geométricas) e o tempo (com a duração, a sucessão e a simultaneidade) moldam, fazendo nascer uma ou mais fenómenos de galos. O entendimento, com as categorias de unidade, pluralidade, necessidade, confere consistência ao fenómeno galo. Não existe númeno galo, galo é fenómeno na sua totalidade.
O conceito de galo forma-se no entendimento, faculdade que pensa mas não sente, do seguinte modo: a imaginação, situada entre a sensibilidade e o entendimento, transporta desde aquela a este as imagens de galo e as categorias do entendimento de pluralidade e unidade recebem as diversas imagens e transformam-na numa só imagem abstracta, o conceito empírico de galo. (VALE QUATRO VALORES)
3)A) As categorias ou conceitos puros são estruturas a priori do entendimento como por exemplo: unidade, pluralidade, necessidade-contingência. A razão, segundo Kant,dado que não se apoia em factos empíricos, e se aventura no desconhecido, especulando, gera a antinomia - as afirmações contrárias entre si - «O mundo teve um princípio, o mundo nunca principiou» sem conseguir chegar a uma conclusão. Ora ambas estas coisas se conjugam com a teoria de Popper segundo a qual as teses das ciências empíricas são conjecturas, isto é suposições, sujeitas à falsificabilidade e revisibilidade: a categoria de realidade entrou na formulação da conjectura «O número atómico do enxofre é dezasseis»; estando a conjectura marcada pelo cepticismo, ela condiz, por exemplo, com a antinomia «o mundo é eterno, o mundo não é eterno» (QUATRO VALORES).
3) B) A inteligência do homo sapiens primitivo do mito é holística: ligado à natureza, percebendo o bater do relógio cósmico, o primitivo escuta o silêncio e rejeita uma civilização de tecnologia avançada em que milhares de automóveis atravessam a cada minuto as ruas de uma cidade, os túneis e viadutos, fazendo ruído e poluindo o ar com gases. A medicina natural do primitivo, com a utilização de plantas curativas que purificam o sangue e qualquer orgão do corpo, e reflectida ainda na medicina dos séculos XVII-XIX que usava métodos tradicionais como medir as pulsações, ou utilizar as sanguessugas para chuparem sangue das pessoas e reduzir osa riscos de AVC, opõe-se de certo modo à medicina actual, cheia de análises, biópsias e radiografias que Feyerabend classifica como «estupidez». A inteligência do cientista do século XX é, para Feyerabend, fragmentária, de um racionalismo deficiente porque não apreende a realidade como um todo físico e metafísico. Para Feyerabend, a dança da chuva feita por povos indígenas do México funciona desde que feita invocando os deuses com sinceridade e com o ritualismo apropriado mas para o cientista universitário actual é «mera estupidez», «crença anticientífica».
Feyerabend diz que há múltiplos métodos válidos, incluindo os das ciências tradicionais que deveriam entrar as universidades e ter tanto estatuto como as tecnociências que lá estão instaladas: a cura pelos cristais, a cura pelas pirâmides, a fitoterapia, o feng shui, a acupunctura, a astrologia, etc, são tão ou mais importantes que os raios laser, as cirurgias, as análises laboratoriais. Isto é o anarquismo epistemológico, a ausência de doutrinas-chefes: todas estão ao mesmo nível de poder social, não há um conjunto de ciências «superiores» que excluem as outras rotulando-as de «atrasadas, anticentíficas, perigosas» e absorvem os financiamentos estatais e privados. (VALE QUATRO VALORES).
3-C) O dualismo Yang Yin, segundo o taoísmo, é a luta de contrários que constitui a estrutura da vida e do universo: Yang é luz, calor, movimento, verão, fluxo da onda, dia, expansão, som, masculino; Yin é escuridão, frio, repouso, inverno, refluxo da onda, noite, contração, silêncio, feminino. O electromagnetismo, uma das quatro forças fundamentais da natureza, - as outras são a gravidade, a força fraca e a força fraca - comportando a luz, os raios X e o microondas, é yang porque expande, projecta longe as partículas ao passo que a gravidade é yin, porque atrai, puxa para dentro. A força nuclear forte que agrega protões e neutrões é yin, mantém o núcleo coeso, ao passo que a força nuclear fraca é yang visto que desintegra o núcleo produzindo radioactividade . O realismo é a teoria que sustenta que há um mundo de matéria fora das mentes humanas e pode ser considerado espacialmente yang porque está fora. O idealismo não solipsista é a teoria que sustenta que apenas existem muitas mentes humanas e cada uma delas inventa um mundo material irreal dentro dela e pode ser considerado yin porque a matéria está dentro da mente. (VALE QUATRO VALORES).
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Na sua obra fundamental «Fenomenologia do espírito», Hegel define a matéria como um princípio universal, semi indeterminado. A forma seria então o factor de individualização.
Isto parece opor-se a Aristóteles e a Tomás de Aquino que sustentaram ser a matéria o princípio de individuação, aquilo que deforma, ao aplicar-se à matéria, uma mesma essência ou forma específica (eidos) e cria este e aquele indivíduo singular (Sócrates e Heráclito teriam a mesma essência ou forma específica, que é homem, mas a matéria de cada um deles estabeleceu as singularidades, o nariz achatado de Sócrates diferente do de Heráclito, etc). Escreveu Hegel:
«E assim também a relação entre ácido e base e o seu movimento mútuo constituem uma lei, na qual estas contraposições se manifestam como corpos. Sem embargo, estas coisas separadas não têm nenhuma realidade; a força que as dissocia não pode impedi-las de entrar de novo em um processo, já que não são senão esta relação. Não podem, como um dente ou uma garra, permanecer para si e mostrar-se de este modo. O facto de que a sua essência consista em passar de um modo imediato a um produto neutro é o que faz do seu ser um ser superado em si ou um universal; e o ácido e a base só possuem verdade como universais. Assim, pois, do mesmo modo que o vidro e a resina podem ser tanto electricidade positiva como negativa, o ácido e a base não se acham vinculados como propriedade a esta ou àquela realidade, mas que cada coisa só é ácida ou básica relativamente; o que parece ser decididamente ácido ou base adquire nas chamadas "sinsomatías" a significação contraposta relativamente a outro. Deste modo, o resultado das experiências supera os momentos ou as animações como propriedades das coisas determinadas e liberta os predicados dos seus sujeitos. Estes predicados devêm, como de verdade o são, encontrados somente como universais; em razão de esta independência recebem, portanto, o nome de matérias, que não são nem corpos nem propriedades, e há que guardar-se muito, com efeito, de chamar corpos ao oxigénio, etc, à electricidade positiva e negativa, ao calor, etc. »
«A matéria, pelo contrário, não é uma coisa que é, mas o ser como universal ou em modo de conceito. A razão que é ainda instinto estabelece esta atinada diferença sem a consciência de que , ao experimentar a lei em todo o ser sensível supera precisamente, assim, o seu ser somente sensível e de que ao apreender os seus momentos, como matérias, a sua essencialidade converte-se para ela em algo universal e enuncia-se, nesta expressão, como algo sensível não sensível, como um ser incorpóreo e, sem embargo, objectivo».
(Hegel,Fenomenología del espíritu, pag 155-156, Fondo de Cultura Económica, México; o destaque a negrito é posto por mim).
Esta é uma grande passagem de Hegel, de grande profundidade, sobre a dialética: o ser das coisas é transitório e aguenta-se ou firma-se no seu contrário, com o qual dá o salto para um novo estado; a matéria não é uma coisa que é mas o ser como universal, dado que é o substrato de todas as transformações ou mudanças de forma de cada ente concreto. .
Cada um dos contrários é susceptível de passar ao outro ou a um estado intermédio: o ácido e a base, que são termos relativos, produzem um sal ou neutro. A matéria é lei e não coisa, com a ressalva de que a lei atravessa a coisa, todas as coisas. E a matéria aparece definida em dois planos: como ser universal, sensível (exemplo: o ar que há por toda a parte, a terra que pisamos e cheiramos) e como conceito (exemplo: o ar concebido como mistura de oxigénio, azoto, hidrogénio, gases raros, etc). Como sempre, a dialética do ser e do conceito ou reflexão do ser.
É notável ainda a tese de Hegel de que há um instinto da razão que leva esta, por exemplo, a generalizar que todas as pedras caem para a Terra ao serem largadas no ar, uma vez que nos limitamos a fazer esse tipo de experiências 100, 1000 ou 50 000 vezes e a generalização que daí parte é por instinto ou intuição da razão. Assim a indução (amplificante) não é cem por cento lógica, racional, mas tem a sua quota parte de pressentimento, instinto.
Karl Popper e Heidegger, entre outros, atacaram a dialética sem a compreender verdadeiramente: nenhum deles possuía a profundidade de Hegel que foi, talvez, o Aristóteles dos nossos dias.
Os filósofos analíticos, com as suas divisões intelectualmente imperfeitas - por exemplo, Simon Blackburn com a sua divisão das correntes metaéticas em determinismo duro/ determinismo moderado/ libertismo/ indeterminismo, sem conseguir encaixar o "libertismo" no determinismo nem no indeterminismo... - também se revelaram incapazes de pensar de forma genuinamente dialetica. Thomas Nagel, Kripke ou Peter Singer não foram nem são capazes da profundidade e da riqueza conceptual de Hegel.
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Ao finalizar o ano lectivo de 2012-2013, eis um teste de filosofia do 11º ano de escolaridade que não vive da imitação do frágil modelo de perguntas de resposta múltipla com um "X" que a maioria dos professores de filosofia deste país, qual rebanho obediente, mecanicamente parece adoptar.
Escola Secundária Diogo de Gouveia com 3º Ciclo, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA A
Professor: Francisco Queiroz
28 de Maio de 2013
«Segundo Thomas Kuhn, os paradigmas científicos são participantes de revoluções epistemológicas mas incomensuráveis, posição que não coincide exactamente com o conjecturalismo de Karl Popper no qual existe a noção de falsificacionismo.»
1) Explique, concretamente, este texto.
2) Relacione, justificando:
A) O anarquismo epistemológico de Paul Feyerabend, os mitos e a ciência holística.
B) Angústia, desespero e estádio estético segundo Kierkegaard.
C) Espaço e tempo segundo Kant, espaço e tempo segundo Einstein.
3) Disserte, livremente, sobre os seguintes temas:
«A teleologia dos movimentos no universo segundo Aristóteles. O princípio da incerteza de Heisenberg. Relativismo nas concepções sobre os «buracos negros» do universo. A causa-efeito e a matéria na teoria de Kant»
CORRECÇÃO DO TESTE (COTADO PARA UM TOTAL DE 20 VALORES)
I
1) Paradigma científico é um modelo teórico-prático assente, em regra, no determinismo, uma teoria acompanhada, em regra, por métodos de experimentação. Exemplos: o paradigma do átomo, com um núcleo interior e órbitas electrónicas; o paradigma da psicanálise dividindo a psique em inconsciente, subconsciente e consciente. A revolução epistemológica é a mudança brusca ou total de paradigma. Por exemplo,a teoria do universo geocêntrico, paradigma dominante ou ciência normal na Idade Média, durante séculos, revelou anomalias e foi contestada no século XVII por uma nova ciência, denominada ciência extraordinária, do modelo heliocêntrico defendido por Copèrnico e Galileu. A ciência extraordinária acabou por impor-se na comunidade científica e transformou-se em ciência normal. Os paradigmas são incomensuráveis: não pode medir-se qual deles é o verdadeiro ou o mais verdadeiro que o outro. O conjecturalismo de Karl Popper sustenta que as ciências empíricas não passam de conjuntos de conjecturas ou suposições (exemplo:o átomo de hidrogénio com um só electrão é uma suposição) e supõe o falsificacionismo, isto é, uma ciência precisa de ser submetida a testes de falsificabilidade - a experiências que buscam incoerências ou excepções nas suas leis - e só receberá o título de ciência enquanto não for desmentida por um conjunto de factos relevantes. Mas em Popper é possível hierarquizar as ciências mais plausíveis e demarcá-las das não ciências. (VALE TRÊS VALORES).
II
2-A) O anarquismo epistemológico de Feyerabend é a concepção segundo a qual todos os saberes devem ter,à partida, um estatuto igual e direitos iguais, à moda da democracia de base anarquista: o astrólogo deve ser tão ouvido e convidado a ir à televisão quanto o astrofísico universitário, o curador através das plantas deve figurar na mesa redonda radiofónica com os médicos alopatas. Ademais, não há um único método científico mas deve-se explorar a pluralidade de métodos e improvisar: se um doente de cancro não obtèm sucesso com a quimioterapia por que não experimentar a medicina natural, os cataplasmas de argila molhada ou a mordedura do escorpião aplicada por um técnico ? Para Feyerabend, a universidade, o sistema de saúde, a indústria e a esfera política são controlados por homens arrogantes e desonestos, ligados a interesses financeiros e mediáticos espúrios, que canalizam para os seus projectos e cargos dinheiros do Estado e eliminam as ciências antigas tradicionais que lhes fazem concorrência. O mito, ou história lendária dos primórdios da humanidade, com deuses, heróis e monstros, ligado a um pensamento holístico, isto é global, é mais importante que as ciências . Foram os mitos que lançaram as bases da cultura, são eles que levam as pessoas a invocar os deuses segundo ritos que funcionam, desde que contextualizados, como a dança da chuva, o exorcismo, etc, e superam as modernas psicologia e medicina farmacológica e as ciências especializadas. (VALE TRÊS VALORES).
2-B) A angústia é a liberdade travada, não pela necessidade mas por si mesma. É uma ansiedade que normalmente acompanha uma expectativa sobre o futuro. No estádio estético, o protótipo é o Don Juan, insaciável conquistador de mulheres que vive apenas o prazer do instante, e sente angústia se está apaixonado por uma mulher e teme não a conquistar. O desespero é posterior à angústia: é a frustração sobre algo que já não tem remédio ou que se esgotou. Ao cabo de conquistar e deixar centenas de mulheres, o Don Juan cai no desespero: afinal nada tem, o prazer efémero esvaiu-se. (VALE DOIS VALORES)
2-C) Espaço e tempo segundo Kant são as formas a priori da sensibilidade, as «paredes» desta. São ambos anteriores à matéria e aos objectos materiais (fenómenos) que se formam dentro do espaço ou sentido externo. Mas espaço e tempo são irreais, nada são fora do sujeito percipiente (idealismo transcendental de Kant). Segundo Einstein, existe o espaço-tempo é inseparável da matéria, não existe espaço vazio. O universo é esférico e fechado, os raios de luz descrevem curvas, ainda que possam circular infinitamente. O espaço-tempo é irregular, possui curvatura, não é plano e infinito como na geometria euclidiana, encurva na proximidade de grandes massas de matéria, e este espaço-tempo é real em si mesmo, existe independentemente dos sujeitos (realismo ontológico). Em Einstein, o avanço do tempo (a «flecha do tempo», irreversível) seria ralentizado ou anulado à medida que um corpo viajasse a uma velocidade próxima da velocidade da luz ou mesmo atingisse esta. (VALE TRÊS VALORES).
3) Teleologia é a ciência ou o estudo das finalidades, das causas finais (télos aitía). No mundo sub-lunar, composto por 4 esferas concêntricas e imóveis- Terra, ao centro, água, ar e fogo - os corpos deslocam-se com a intenção de regressar à sua origem. Exemplo:se atirarmos ao ar uma pedra (para a esfera do ar) ela cai porque deseja voltar à Terra, sua origem. No mundo celeste, composto por 54 esferas de cristal, 7 delas com um planeta incrustado e as outras 47 com constelações de estrelas incrustadas , o movimento é circular, perfeito e começou assim: a última estrela, da última esfera, mais próxima de Deus viu Este, que é o pensamento puro e desejou alcançá-lo, iniciando um movimento de rotação da esfera. As outras estrelas e planetas imitaram-na no desejo de alcançar Deus, o télos deste movimento celeste. (VALE DOIS VALORES). O princípio da incerteza de Heisenberg é indeterminista: afirma que é impossível conhecer em simultâneo a posição e a velocidade de um electrão. O simples facto de observamos ao microscópio electrónico interfere com o fluxo de electrões em análise. (VALE DOIS VALORES). Para muitos astrónomos, os buracos negros do universo eram restos do núcleo de estrelas que colapsaram sobre si mesmas mas Hawkins e Penrose, discípulos de Einstein, concebem os buracos negros como singularidades, lugares onde as leis da física conhecidas deixam de funcionar, portas de entrada de outros universos. Isto é relativismo - a verdade científica varia de época a época de cientista a cientista (VALE DOIS VALORES). Em Kant, a causa-efeito é uma das 12 categorias ou conceitos puros do entendimento, não está na matéria, e a matéria é um conjunto de sensações, irreais em si mesmas, existentes na sensibilidade, que desapareceriam caso o nosso espírito se extinguisse.(VALE TRÊS VALORES).
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No seu manual para o ensino secundário, adotado em dezenas ou mesmo centenas de escolas em Portugal, Luís Rodrigues demonstra, à semelhança de Karl Popper, de Bertrand Russell e dos professores universitários portugueses e estrangeiros em geral, uma incompreensão fundamental da ontognosiologia de Kant. Escreve Rodrigues:
«Assim todo o conhecimento começa com a intuição sensível, ou seja, com a recepção de dados ou impressões sensíveis mediante duas formas com as quais a sensibilidade está equipada: o espaço e o tempo. Intuir é, portanto, receber dados empíricos, espacializando-os e temporalizando-os.»
«Exemplificando:
«Um automóvel passa frente à minha casa ao meio-dia, fazendo muito barulho e buzinando constantemente. O automóvel provoca em mim uma determinada impressão sensível. Eu recebo esta impressão sensível de uma determinada forma, isto é, espacializo-a e temporalizo-a porque me refiro ao barulho do automóvel como verificando-se em frente à minha casa (espacialização) e a uma determinada hora (temporalização). Assim, vê-se que a intuição sensível consiste em estabelecer uma relação espácio-temporal entre as impressões sensíveis (sensações) provenientes das coisas (por exemplo, do automóvel).» (Luís Rodrigues, Filosofia 11º ano, Plátano Editora, página 198, consultor, Luís Gottschalk; a letra a negrito é um sublinhado meu).
O erro de Luís Rodrigues é não perceber que o automóvel não é uma coisa exterior ao espírito humano mas uma construção dentro deste, um fenómeno cuja consistência é ideal-sensorial, ou seja, é um conjunto de intuições empíricas geradas no espaço que constitui a «mente exterior do sujeito». Rodrigues e Gottschalk interpretam Kant como se este fosse um realista ontológico - no caso: como se o automóvel existisse fora do espírito do sujeito e circulasse por uma rua exterior ao espírito humano- quando Kant é um idealista ontológico ou idealista transcendental, isto é, alguém que diz que os objetos materiais são conjuntos de sensações ou ideias forjadas na parte da minha mente que extravasa o meu corpo físico e engloba o universo inteiro.
Que diz Kant sobre a matéria que compreende, no caso que estamos a considerar, a chapa, o volante, o motor, os estofos, os pneus do automóvel? Que a matéria é uma simples representação, um conjunto de imagens e conceitos no nosso espírito:
«Com efeito, a matéria cuja unidade com a alma levanta tão grandes dificuldades não é outra coisa que uma simples forma ou um simples modo de representação de um objeto desconhecido, formado por aquela intuição que designamos por sentido externo. Deve, portanto, haver algo fora de nós a que corresponde esse fenómeno que chamamos matéria.» (Immanuel Kant, Crítica da razão pura, páginas 361-362, nota de rodapé, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra a negrito é colocada por mim).
A matéria não é um «em si». Não é algo que exista independente de nós. O fenómeno (automóvel, casa, gato, etc) não está fora de nós, do nosso eu-espírito-cosmos: está somente fora do nosso corpo físico. Mas Rodrigues e Gottschalk apresentam-nos o automóvel, que é matéria, como coisa em si, independente de nós. É ainda um erro falar nas «impressões sensíveis (sensações) provenientes das coisas (por exemplo: o automóvel) », coisas estas que estariam fora de nós. Os objetos fora de nós (númenos) não nos enviam sensações: estas são produzidas na nossa sensibilidade, dentro de nós, sob o influxo de uma desconhecida excitação exterior emanada dos númenos, o que é diferente.
Este equívoco de supor que segundo a gnosiologia de Kant, há um objeto material fora de nós é geral no meio dos professores universitários e leva-me a interrogar: há verdadeiros filósofos nas cátedras universitárias de hoje ou apenas reprodutores, algo inábeis porque deformantes, da tradição filosófica?
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Aristóteles postulou, na «Metafísica", a analogia do uno e do ente. Analogia significa uma semelhança entre formas ou funções de dois ou mais entes, substantivos ou não, bastante diferentes entre si. Por exemplo, o homem é análogo a uma árvore: os pés são análogos às raízes, as pernas ao tronco de madeira, os braços aos ramos, a cabeça à copa de folhas. O que é ou ente assemelha-se ao uno, são análogos: o uno indeterminado não é espécie dentro do género ser, ainda que este abarque uma vastíssima extensão do uno determinado. Se ser é entendido como puro existir indeterminado coincide absolutamente com o uno indeterminado, isto é, enquanto matéria, isto é, substrato indeterminado da forma, e engloba o uno determinado (limitado por uma forma) e o múltiplo (o uno indeterminado retalhado por várias formas).
O uno determinado e o ente determinado são, em certo sentido, no estrato das formas, dois círculos que se interpenetram. No substrato da matéria, o uno e o ser (puro) coincidem em absoluto e são infinitos, falando em termos espaciais. Há uma zona do ente determinado que é una, e outra zona que não é una mas múltipla, do ponto de vista da forma- ainda que a dialética sublinhe que a multiplicidade está incluída numa unidade superior, que é a matéria do existir.
Assim temos dois sentidos da palavra uno: o uno da forma que é vencido, dissolvido, pelo aparecimento da multiplicidade; o uno da matéria abstracta, do conteúdo indeterminado do todo, e este uno é verdadeiramente invencível, imóvel, ubíquo, infinito. O uno da matéria abstracta - que não é matéria densa, nem energia, etc, mas sim substrato geral do mundo físico, do pensamento, etc - coincide completamente com o ser, o ente. É aqui que se centra a noologia de Parménides: «o ser é, uno, imóvel..» No entanto, a finitude do ser proclamada por Parménides já indica confusão entre o ser como existir (qualidade universal, insubstancial) e o ser como ente-essência esférica (substância).
Num outro sentido, o uno determinado - por exemplo, o uno do universo - abarca o ente A e o ente não A - por exemplo, a matéria e a não matéria (energia) Sobre o "espaço" infinito do ser indeterminado/ uno indeterminado inscrevem-se quatro círculos: o do ente determinado (exemplo: a flora do planeta Terra), o do ente não determinado (exemplo: a não flora do planeta Terra, ou seja, a fauna, a humanidade, os planetas, a galáxia, etc) o do uno determinado (exemplo: uma árvore) e o do múltiplo (exemplo: um milhão de árvores).
A ideia de uno obtém-se independentemente da forma. Não é a forma/contorno exterior que faz reconhecer o uno mas a matéria interior a esse contorno, a textura, o conteúdo. É a matéria que dá a ideia do uno e a forma a do múltiplo.
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Gilles Deleuze é mais um dos filósofos que não compreendeu o núcleo essencial da doutrina de Kant. Escreveu:
«A ideia fundamental de que Kant denomina a sua "revolução coperniciana" consiste no seguinte: substituir a ideia de uma harmonia entre o sujeito e o objecto (acordo final) pelo princípio de uma submissão necessária do objecto ao sujeito (...)
«Seria legítimo esperar que o problema de uma submissão do objecto pudesse ser facilmente resolvido do ponto de vista de um idealismo subjectivo. Mas nenhuma solução é mais estranha ao kantismo. O realismo empírico é uma constante da filosofia crítica. Os fenómenos não são aparências, mas também não são produtos da nossa actividade. Afectam-nos na medida em que somos sujeitos passivos e receptivos. Podem ser-nos submetidos; precisamente porque não se trata de coisas em si. Mas como o serão, sabendo-se que não somos nós que os produzimos?» (Gilles Deleuze, A filosofia crítica de Kant, pag 23, Edições 70; o negrito é de minha autoria).
O equívoco de Deleuze reside em dizer que os fenómenos «afectam-nos na medida em que somos sujeitos passivos». É um erro. Quem nos afecta não são os fenómenos, mas os númenos, entes metafísicos. É certo que Kant denomina a sensibilidade de faculdade receptiva mas ao mesmo tempo mostra, sem ser muito claro, que esta cria o fenómeno, ou seja, é activa:
«Dou o nome de matéria ao que no fenómeno corresponde à sensação; ao que, porém possibilita que o diverso do fenómeno possa ser ordenado segundo determinadas relações dou o nome de forma do fenómeno. Uma vez que aquilo, no qual as sensações unicamente se podem ordenar e adquirir determinada forma não pode, por sua vez, ser sensação, segue-se que se a matéria de todos os fenómenos nos é dada somente a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no espírito, pronta a aplicar-se a ela e portanto tem que poder ser considerada independentemente de qualquer sensação.» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag 62, Fundação Calouste Gulbenkian).
Conforme se depreende desta citação a forma do fenómeno - por exemplo: maçã e cadeira são fenómenos - está a priori no espírito, isto é, na sensibilidade. Não está, pois no próprio fenómeno como coisa fora de nós, como sustenta Deleuze ao dizer «os fenómenos «também não são produtos da nossa actividade.». Ora, a forma é aplicada para criar o fenómeno? Sim. Quem aplica a forma? O espírito do sujeito, que se compõe de sensibilidade, entendimento e razão.
Por outro lado, a matéria do fenómeno é dada - eu diria: é forjada - a posteriori. Há assim um construtivismo kantiano: a forma a priori junta-se à matéria a posteriori para gerar o fenómeno espacial ou objecto exterior (a árvore, a nuvem, a mão, etc). E isto passa-se no interior da sensibilidade de cada um que inclui o espaço exterior ao corpo (Kant é idealista).
«...Os chamados objectos exteriores são apenas simples representações da nossa sensibilidade, cuja forma é o espaço, mas cujo verdadeiro correlato, isto é, a coisa em si, não é nem pode ser conhecida por seu intermédio; de resto, jamais se pergunta por ela na experiência.» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag 70, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é colocado por mim).
A matéria dos fenómemos é a sensação: eles não são senão projecções sensoriais fora do nosso corpo mas dentro do nosso espírito, essa imensa abóbada cósmica que envolve, concentricamente, o nosso corpo. Os objectos exteriores são apenas representações, conteúdos da consciência fora do corpo físico do eu perceptivo: é o mesmo que diz Berkeley, por outras palavras - ainda que Kant se procure demarcar falaciosamente daquele filósofo escocês. Os fenómenos são criações da sensibilidade e do entendimento e situam-se dentro da primeira. Deleuze afirma sobre os fenómenos que «não somos nós que os produzimos». É falso. Nós criamos os fenómenos através das formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e das categorias do entendimento. Deleuze nem sequer percebe isso.
Alguém, no mundo universitário, apontou esta errónea interpretação de Deleuze sobre a doutrina de Kant? Não. Isto significa que o universo dos catedráticos de filosofia partilha a mesma superficialidade, a mesma ausência de profundidade de pensamento sobre a ontolognosiologia de Kant. Sejam Popper, Deleuze, Habermas, Blackburn, Nagel, Sartre ou até o excepcional Heidegger, todos conceptualizam, mais ou menos confusamente, a génese e a natureza do fenómeno em Kant. Há, pois, que romper com a tradição contemporânea das interpretações esquivas e equívocas de Kant. É o que fazemos.
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Roy Wood Sellars (1880-1973), filósofo norte-americano do "realismo crítico" e do humanismo religioso, escreveu, sobre o dualismo forma-matéria:
« Em primeiro lugar, não vejo necessidade de postular um dualismo metafísico de forma e matéria. A matéria é uma abstracção tanto como a forma. A realidade é matéria informada: tem estrutura e organização, tem uma determinada natureza. A isto se deve que as nossas categorias: espaço, tempo, causalidade, etc, tenham validade. Na medida em que o aristotelismo e o escolasticismo separaram a matéria da forma incorreram em um dualismo vicioso e desnecessário. É a realidade que é activa e sede de processos; não uma matéria nem uma forma. »
«Ora bem, se o objecto do conhecimento é uma matéria informada, poderia logo colocar-se o problema: que elemento do objecto se transmite à mente? Falta dizer que não é o ser, mas sim a "forma". Transmitir o ser é impossível, porque a coisa deve permanecer fora da mente que a conhece, e pela mesma razão, conhecer a coisa é não ser a coisa. Mas conhecer uma coisa não é, tampouco, ter uma reprodução à maneira de cópia dela. Que é, pois, o conhecimento? É a posse consciente da "forma" de uma coisa por parte da mente, a saber, da sua localização, tamanho, estrutura, possibilidades causais, etc. É a captação vicária dos traços reproduzíveis de uma coisa. Conhecer é conhecer a própria coisa.» (Roy Wood Sellars, citado in Paul Kurtz, «Filosofia norteamericana en el siglo veinte», Textos escogidos, Fondo de Cultura Económica, México, pag. 346, 1972; a letra a negrito é posta por mim).
Sem dúvida, parece, à primeira vista, um texto de filosofia de grande qualidade.
Começarei por uma ligeira correcção da frase de Sellars: «A matéria é uma abstracção tanto como a forma.» Não é a matéria que é uma abstracção: ela existe, indissociavelmente ligada à forma e só por abstracção captamos completamente o conceito de matéria.
Mas se acusa o aristotelismo e a escolástica de ter introduzido um dualismo artificial forma-matéria, Sellars parece postular um dualismo forma-matéria, algo rígido, no plano ontognosiológico: o ser seria a matéria, informada, e o conhecer - a percepção empírica, o conceito - seria só a forma.
Não me parece exacto este dualismo: na apreensão do ser, existe alguma matéria deste que passa para o interior da mente humana. O que é a cor verde, por exemplo? Forma ou matéria? A côr verde de um campo está presente na nossa percepção, tal como o sabor doce do mel que saboreamos. Fotões, sejam eles exteriores ou interiores à mente, compõem a cor. É certo que os fotões não são matéria mas no sentido aristotélico de matéria como substrato, a cor parece-me ser um substrato da forma percebida, não da forma real exterior. A côr é uma espécie de "matéria" sem matéria-massa. Por isso,dizer que conhecer é só apreender a forma e não a matéria é uma interpretação «óptica» do conhecimento
E dizer que o mel é doce, ao prová-lo, é apreender apenas a forma do mel? Ou é mesmo absorver uma ínfima parte do ser do mel?
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Se o ser é mais extenso e transcendental, isto é, mais universal, que qualquer género, então é uma matéria, a matéria indeterminada que se divide em sensível e inteligível. Logo o ser puro - ou existência pura, destituída de forma - é uma matéria especial, a proto matéria, ontologicamente anterior à matéria prima sensível de Aristóteles (hylé).
Toda a determinação ou talidade é a impressão, cunhagem ou instalação de uma forma na massa infinita e absolutamente indeterminada que é o ser. Este não é somente um predicado universal de todas as coisas - exemplo: "A Torre de Pisa é (ser)", " Os oceanos são (ser; existem)" - é também o sujeito (hypokeimenon) mais universal de todos. A existência é, portanto, uma matéria - mesmo a existência do pensamento ou de um Nous (espírito universal) independente de toda a matéria física.
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