Segunda-feira, 20 de Junho de 2011
A essência como algo material na teoria de Hegel


 

Na "Fenomenologia do Espírito" Hegel escreveu:

 

« Mas o espírito não se mostrou ante nós como simples recolhimento da autoconsciência na sua pura interioridade, nem como o mero afundamento da autoconsciência na substância e no não ser da sua diferença, mas como este movimento do si mesmo que se aliena de si mesmo e se afunda na sua substância que, como sujeito, se adentrou em si partindo dela e convertendo-a em objecto e conteúdo, ao superar esta diferença da objectividade e do conteúdo. Aquela primeira reflexão partindo da imediatez é o diferenciar-se o sujeito da sua substância ou o conceito que se cinde, o ir para dentro de si e o devir do eu puro. Enquanto esta é um puro operar do eu=eu, o conceito é a necessidade e o surgir do ser aí (Dasein) que tem a substância como sua essência e subsiste para si. Mas o subsistir do ser aí para si é o conceito posto na determinabilidade e, portanto, o seu movimento nele mesmo, consiste em afundar-se na simples substância, que somente é sujeito como esta negatividade e este movimento. O eu não tem razão para aferrar-se à forma da autoconsciência contra a forma da substancialidade e objectividade, como se tivesse medo da sua alienação; a força do espírito consiste em permanecer igual a si mesmo na sua alienação e, como que é em si e para si, em pôr o ser para si somente como momento, como se punha o ser em si.» (Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, pags 470-471; o negrito é posto por mim).

 

 

Note-se que, neste excerto de Hegel, o termo substância possui um sentido fisicalista: a matéria é substância, o espírito em si não. Estamos, pois, em termos de terminologia, longe da res divina ( substância divina) expressão que Desacartes usava ao referir-se a Deus. Temos, no texto acima, as três fases do espírito, estático e em movimento,- as que compõem a dialéctica espiralar, quase circular, de Hegel - assim expressas:

 

1. Autoconsciência em si. O ser em si. O espírito, Deus, um pensamento universal abstracto, o ser, antes de criar o mundo físico, o espaço e o tempo. A imediatez, em sentido ontológico e protológico.

2. A substância da autoconsciência ou a autoconsciência alienada: o ser fora de si, na sua diferença como substância material, a matéria, o mundo da natureza biofísica, que é uma alienação do espírito puro, o objecto e o conteúdo (material) do espírito, substancialidade e objectividade. É negatividade porque a matéria nega o espírito, ao não possuir ideias, raciocínio, imaginação.

3. A autoconsciência como conceito: o ser para si, ou a consciência que, após mergulhar na matéria, reentra em si, na primeira fase, mas enriquecida com o saber da experiência.

 

 

O termo imediatez em Hegel parece ter um significado duplo: há a imediatez do ser puro, que é espírito ainda virgem, abstracto, ao qual nada foi acrescentado, uma imediatez ontológica, por assim dizer; e a imediatez da sensação, que é natureza biofísica "reflectida"  instantaneamente na consciência humana, sem a reflexão própria do conceito, do intelecto, uma imediatez gnosiológica.

 

Hegel dá ao termo essência um sentido material. Isto é expurgar a essência, do seio do ser puro. Ser = espírito, essência= matéria, conceito = ser para si, ser individuado (Dasein) que é reflexão, regresso do pensar a si mesmo. Em Aristóteles, a essência (eidos) era uma forma eterna, destituída de matéria. Aristóteles designava a essência incarnada na matéria por substância primeira (proté ousía). Mas com Hegel, a essência passa a designar a substância, a forma preenchida por matéria. E isso abre caminho já ao materialismo de Marx e Engels.

 

 

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Quinta-feira, 5 de Março de 2009
Habermas e a teoria do agir comunicacional

Habermas, filósofo alemão da Escola Crítica de Frankfurt, nascido em 1929, entende a racionalidade de forma holística: recusa separá-la em dois continentes, o formal e o substancial. Nesse sentido, critica Max Weber.

 

«O potencial racional comunicativo é simultaneamente desenvolvido e alterado no decorrer da modernização capitalista. »

 

«A simultaneidade e a interdependência paradoxais dos dois processos só é possível quando se vencer a falsa alternativa que Max Weber estabeleceu entre racionalidade substancial e formal. Parte-se aqui do princípio de que o desencantamento (Entzauberung) de imagens religiosas e metafísicas do mundo da racionalidade juntamente com os conteúdos das tradições, rouba todas as conotações de conteúdo e assim também todas as forças para, além da organização teleologicamente racional dos meios, poder ainda exercer uma influência estruturante no mundo da vida. Em oposição a isto gostaria de insistir em que a razão comunicacional, apesar do seu carácter puramente processual, aliviado de todas as hipotecas religiosas e metafísicas, está directamente implicada no processo de vida social e que os actos de compreensão tomam conta dos actos de um mecanismo coordenador da acção. O tecido de acções comunicativas alimenta-se de recursos do mundo da vida e é, ao mesmo tempo, o médium através do qual se reproduzem as formas de vida concretas.»  (Jürgen Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade, Publicações Dom Quixote, pag 292; o negrito é posto por nós).

 

 

Habermas sublinha igualmente o carácter circular do agir comunicacional:

 

«Na teoria do agir comunicacional o processo circular, que encerra o mundo da vida e a praxis comunicativa quotidiana, ocupa o lugar de mediador que Marx e o marxismo ocidental tinham reservado à praxis social.»  (Habermas, ibid, pag 293; o destaque a negrito é nosso).

 

E sustenta que a razão comunicacional não elimina o erro mas partilha-o, socializa-o, do mesmo modo que partilha e socializa a verdade rectificadora.

 

«A razão comunicacional faz-se valer na força de coesão da compreensão intersubjectiva e do reconhecimento recíproco. No seio deste universo não é possível separar o irracional do racional do mesmo modo que, em Parménides, é separado o não-saber daquele saber que domina, como simplesmente afirmativo, sobre o que é o nada. Na sequência de Jakob Böhme e de Isaac Luria, Schelling afirma com razão que o erro, o crime e a ilusão não são irracionais mas sim manifestações da razão às avessas (Habermas, ibid, pag 299; o negrito é nosso).

 

 

A noção de praxis é reinterpretada por Habermas. Muito mais do que um agir instrumental, a praxis é um agir comunicacional que produz saber que permite transformar o mundo.

 

 

«Quando se reformula o sentido de praxis no sentido de agir comunicacional com o auxílio deste conceito de língua, as marcas universais da prática não se limitam só ao “legein” e “teukein”, isto é, às condições (que precisam de interpretação) para o contacto com uma natureza que se encontra no circuito de funções do agir instrumental. A praxis opera então muito mais à luz da razão comunicacional que impõe aos participantes na interacção uma orientação para as exigências de validação tornando assim possível uma acumulação de saber que transforma o mundo.» (Habermas, ibid, pag 307).

 

Embora recolhendo o contributo de Marx, Habermas diverge deste no conceito de praxis social. Entende esta não como actividade produtiva material mas como a interacção circular entre o mundo da vida, dividido em cultura, sociedade e pessoa, e o agir comunicacional

 

«Nem mesmo Marx escapou ao pensamento da totalidade de Hegel. Isto altera-se se a praxis social não for mais pensada socialmente como processo de trabalho.»

 

 «Com os conceitos que se complementam reciprocamente do agir comunicacional e do mundo da vida é introduzida uma diferença entre determinações que- diferentemente da diferença entre trabalho e natureza - não reaparecem como momentos numa unidade superior. É certo que a reprodução do mundo da vida se nutre de contribuições do agir comunicacional, enquanto que este depende por sua vez do mundo da vida. Este processo circular não deve representar-se segundo o modelo da autocriação como uma produção a partir dos seus próprios produtos, nem mesmo associado à auto-realização. » (Habermas, ibid, pag 314).

 

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