Aristóteles manteve na "Metafísica", a diferença entre "ser" (einai, em grego) e "o que é/ ente" (tó ón, em grego) e estabeleceu como primeira a analogia do ente com o uno (tó hen):
«Pois, ainda que não sejam o mesmo, são distintos, ambos os termos são intercambiáveis: com efeito, o uno (to hén) é, à sua maneira, algo que é, e "o que é" (to ón) é algo uno (tó hén).» (Aristóteles, Metafísica, Livro XI, 1061 b, 15-20).
O que é, é algo que é - um sujeito indefinido: algo - e por conseguinte tem de ser uno, tem de ter um contorno exterior dentro do qual está. Ora o ser (einai) não é, necessariamente, uno: é ser, existir, indeterminado no que toca à forma. Aristóteles conceptualizou bem ao não estabelecer a analogia ser-uno mas sim ente/ o que é- uno. Subtileza...
No meu ponto de vista, diferente do pensamento aristotélico e parmenídeo,o ser não é exclusivamente uno nem exclusivamente múltiplo, em si mesmo. Uno e múltiplo são formas do ser cujo conteúdo primordial é o uno infinito sem forma: pura "matéria" ou "argamassa" espiritual, material ou vital que recebe as formas ou que envolve e preenche as concavidades destas.
Heidegger sublinhou a diferença entre o ser e o ente, acusando a filosofia tradicional de ter esquecido o ser a favor do ente e de pensar o tempo como um ente. Mas o próprio Heidegger não é, em regra, suficientemente claro a distinguir duas acepções da palavra "ser" que nos seus textos permanece indistinta:
A) O ser como existir, puro e simples. Matéria sem forma. "O ser é". Não me consta que alguma vez Heidegger tenha definido o "ser" como "matéria sem forma", tal como o faço.
B) O ser como estrutura de entes, interconexão de essências diversas. Neste caso é uma rede de formas, assentes sobre "matéria" física, vital ou espiritual.
Heidegger não é mais preciso que Aristóteles ao explanar os sentidos do termo "ser": simplesmente, envereda por caminhos platónicos e kantianos que, depois, reformula.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O diálogo platónico «Parménides ou das Ideias» é uma das obras mais importantes de Platão como modelo do discurso sofístico em que Platão embarca, até certo ponto, inconscientemente. Desmontemos alguns trechos desse diálogo:
O UNO NÃO SE DIVIDE AO APLICAR-SE A MUITAS COISAS E É SEPARÁVEL DO SER, AO INVÉS DO QUE DIZ PLATÃO
Depois de assegurar a Aristóteles que «o uno está ligado a todas as partes do ser», a personagem Parménides prossegue assim o diálogo:
PARMÉNIDES
Mas, sendo uno, encontrar-se-á integralmente em muitas coisas? Reflecte bem.
ARISTÓTELES
Já reflecti e vejo que é impossível.
PARMÉNIDES
Se não se encontra nelas integralmente, encontra-se dividido, pois não pode estar presente ao mesmo tempo, em todas as partes do ser, senão dividindo-se.
ARISTÓTELES
Claro.
PARMÉNIDES
Além disso, o que está dividido forma, necessariamente, tantos seres quantas as partes que contém.
ARISTÓTELES
Necessariamente.
PARMÉNIDES
«Enganámo-nos, portanto, quando há pouco dissemos que o ser está repartido numa infinidade de partes, pois não pode repartir-se em maior número de partes que o uno, mas sim em tantas partes como ele, porque o ser não pode separar-se do uno, nem o uno do ser, e ambos andam sempre a par.
ARISTÓTELES
Claríssimo.
PARMÉNIDES
Portanto, o uno, repartido pelo ser, é também múltiplo e infinito em número.
ARISTÓTELES
Evidentemente.
PARMÉNIDES
Portanto, não é apenas o «ser uno» que é múltiplo, mas também o é, necessariamente, o «uno», dividido pelo «ser». (Platão, Parménides ou Das Ideias, Editorial Inquérito; a letra negrita é posta por nós).
Em todo este diálogo, Platão joga com uma falácia anfibológica: usa o termo «uno» com dois sentidos diferentes, ora como essência pura, isto é adjectivo, ora como substantivo adjectivado, isto é, «ser uno». Portanto, o ser uno é múltiplo, mas o uno, qualidade pura, nunca é múltiplo, senão deixaria de ser uno.
Ao afirmar que «o uno, repartido pelo ser, é também múltiplo e infinito em número» a personagem Parménides sofisma a questão: o «uno repartido pelo ser» não é o uno puro, a qualidade uno em si mesma, mas é, sim, o ser uno - ou seja, um mosaico de partes - e este ser uno, de facto, é múltiplo e poderá ser infinito em número de partes .
Ao dizer que «o ser não pode separar-se do uno, nem o uno do ser, e ambos andam sempre a par» Platão produz realmente um sofisma de que nem o filósofo real Aristóteles não a personagem deste diálogo se conseguiu libertar na sua «Metafísica».
Então o uno não pode separar-se do ser? Que falsidade! O não-ser é uno e está relativamente separado do ser por um «contorno». Este uno que envolve o não ser está fora do ser. Uno é uma forma englobante e ser é um conteúdo englobado ou um misto forma-conteúdo. São distintos, em certa medida.
O UNO PODE DAR-SE INTEGRALMENTE AO MESMO TEMPO EM MUITAS COISAS, AO INVÉS DO QUE DIZ PARMÉNIDES
Outro ponto relevante do diálogo é o seguinte:
PARMÉNIDES
«Mas, sendo uno, encontrar-se-á integralmente ao mesmo tempo em muitas coisas? Reflecte bem.
ARISTÓTELES
Já reflecti e vejo que é impossível.
PARMÉNIDES
Se não se encontra nela integralmente, encontra-se dividido, pois não pode estar presente, ao mesmo tempo, em todas as partes do ser, senão dividindo-se.» (Platão, Parménides ou Das Ideias, pag 67-68; a letra negrita é acrescentada por nós).
Isto é pura sofística. Desmontemo-la: há três termos em questão, o uno, o seu contrário, isto é, o múltiplo, e o intermédio, isto é, o ser, onde se dão os dois primeiros em simultâneo. Portanto, o uno não pode dar-se ao mesmo tempo no múltiplo mas pode dar-se ao mesmo tempo que o múltiplo num aglomerado ou multidão de coisas, isto é, no ser. Sendo o uno uma qualidade, não espacial, e não uma substância extensa, pode multiplicar-se e existir em milhões de coisas em simultâneo: é como Deus, goza do dom da ubiquidade sem se dividir nem diminuir de intensidade.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
A distinção entre existência, por um lado, e essência (forma específica) e forma individualizada, por outro lado, está bem patente na Metafísica de Aristóteles: «o que é» e «o uno», isto é, o ser (existência), é o mais universal e divide-se em múltiplos géneros, cada uma das quais é um quê-é (essência).
« O uno não é algo diverso do que é. Ademais a substância (ousía) de cada coisa é una não acidentalmente, do mesmo modo que é também algo que é. Por conseguinte, há tantas espécies do que é quantas há do uno, e estudar o quê destas quero dizer, por exemplo, do mesmo, do semelhante e outras coisas deste tipo corresponde a uma ciência que genericamente é a mesma. (Aristóteles, Metafísica, livro IV, 1003b)
Aristóteles criticou Parménides por este usar o termo «ser» em um único sentido:
«A Parménides, podem-se levantar as mesmas objecções As suas premissas são falsas porque supõe que ser só se diz em sentido absoluto, sendo que tem muitos sentidos. ( ) Porque o ser do branco é distinto daquilo que o recebe, ainda que branco não exista separadamente, fora do que é branco; pois o branco e aquilo a que pertence não se distinguem por estar separados mas pelo seu ser. Isto é o que Parménides não viu.» (Aristóteles, Física, Livro I, 186a).
Branco e objecto branco por exemplo, lençol distinguem-se pelo seu ser, diz Aristóteles. Mas segundo Parménides, o ser de branco e de lençol branco é o mesmo tanto branco como lençol branco se encontram, enquanto qualidades ou coisas determinadas, enquanto formas, fora do ser que lhes subjaz. Se Aristóteles diz que a distinção se faz pelo ser é porque hierarquiza este em vários níveis por exemplo: o branco é o nível acidental, o lençol é o nível substancial - ou considera que a essência branco e a essência lençol são seres distintos e neste caso recusa conferir realidade ao «ser em geral» de Parménides, limitando-se ao ser determinado, isto é, ao ser agarrado à essência, indissociável desta e, portanto, múltiplo, porque muitas são as essências.
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