José Gil, filósofo português de matriz francesa, talvez o mais proeminente académico de filosofia dentro da instituição universitária, no Portugal do século XXI, escreveu o seu mais paradigmático ensaio há uns 15 anos, sobre a fenomenologia da percepção ideosensível, a estética e a arte. Aí se pode ler:
«O esqueire - e o equívoco - fazem com que o gesto corporal signifique para além dos movimentos do corpo (em suma, que o corpo fale de outro modo que não simplesmente agindo, confundindo gestos e ações). É então que o espaço de uma massa semântica autónoma, significada pela linguagem, se pode constituir.»
«A tensão entre estes dois vetores - esgueire e equívoco, intervalo e confusão - desemboca num equilíbrio instável: a situação original de um intervalo que põe um "interior" amorfo é acompanhado por um equívoco que impõe aderências tão estreitas entre a expressão e o expresso que um dos temas não consegue desprender-se por completo um do outro: não há "hipocrisia" fora da expressão corporal ou facial da hipocrisia. Mas o sentido de "hipocrisia" não se esgota nesta expressão: permanece o intervalo entre o expresso e a expressão, como persiste entre o fundo informe e a forma que incarna o sentido.» (José Gil, A imagem-nua e as pequenas perceções, pag 297, segunda edição, Relógio de Água; a letra negrita é posta por mim).
Lendo este discurso, simultaneamente barroco e racional, podemos perguntar-nos: até que ponto um escritor de grande qualidade como José Gil - este não é, seguramente, inferior a José Saramago - não dilui o filosofar como exercício de especulação racional na metáfora poética?
José Gil constrói uma arquitetura ontológico-fenomenológica em que o esgueire ou lugar ontológico vazio e o equívoco ou caos «informe» são os motores do conhecimento, em particular da percepção sensível. Todos os filósofos buscam definir dois ou três princípios fundamentais na génese do mundo ou do conhecimento humano: em Tales de Mileto, a água e a inteligência modeladora chamada Deus, em Aristóteles, a forma, a matéria-prima e o composto, em Descartes, a res divina, a res cogitans e a res extensa, em Kant, o sujeito transcendental ou a priori e os númenos, em Heidegger o ser desdobrado essencialmente em ser-aí (cada homem) e ser diante dos olhos (o mundo visível e palpável, "exterior"), etc.
Aparentemente Gil é um antiplatónico: não se vislumbra, ao menos nesta parte da obra, a postulação de arquétipos ou modelos eternos e perfeitos àparte das coisas existentes do quotidiano, uma vez que diz-nos que não há hipocrisia fora do esgar hipócrita do rosto ou do gesto corporal hipócrita, isto é, não separa a essência do ente ou sendo. Começarei por pôr em dúvida que a linguagem se constitua após o esgueire e o equívoco abrirem um além na acção corporal. Não é o equívoco já a linguagem em potência? Não está a linguagem, desde o início, tanto como o metafenómeno ou feixe gerador de energias de que Gil fala adiante, a dirigir e direcionar o devir-outro do homem?
No excerto acima de José Gil, parece-me ambígua a utilização do termo «intervalo»: é usado ora como nada ontológico ou esgueire, ora como diferenciação entre o expresso e a expressão, diferenciação que não é, seguramente, um nada, a meu ver, mas um espaço presente e separador. Gil não escapa ao calcanhar de Aquiles dos filósofos em geral que é a anfibologia, o atribuir a um mesmo termo, sentidos diferentes, no mesmo texto, sem se darem conta disso.
Além disso, pergunta-se: se o intervalo põe um "interior" amorfo ou fundo informe, em que se distingue esse intervalo ou lugar não inscrito do fundo amorfo?
UM LUGAR QUE NÃO É FÍSICO NEM PSÍQUICO, QUE NÃO É SENTIDO NEM SEM-SENTIDO - OU COMO A IMAGEM POÉTICA AFASTA DO RIGOR FILOSÓFICO
E prossegue José Gil:
«Se há intervalo inicial entre o que se vê no corpo do outro e o que ele significa (para além do que significa aquilo que se vê) é porque qualquer coisa de absolutamente irredutível (à presença para a qual remete o signo ou a forma) escapa à significância do visível. Não se trata do que, do sentido, não é signo ou não é significável; mas, mais profundamente, daquilo que não sendo nem indizível nem inefável, cai fora da esfera tanto do signo como do sentido, não é nem coisa a dizer nem coisa a denotar. Isso, que não tem nome, é um lugar não inscrito, lugar do intervalo entre o visível das formas do corpo e o informe que procura tomar forma; a esse lugar, não há símbolo, nem índice, nem forma que o nomeie porque não é nem conteúdo psíquico, nem um lugar físico, nem um pensamento; não é um sentido nem um não-sentido. Mas só ele permite aos pensamentos que se formem e ao sentido tornar-se não-sentido; aos signos significarem e às formas surgirem e combinarem-se.» (José Gil, ibid, pag 297; o negrito é colocado por mim).
Nada há de radicalmente novo em filosofia nestas linhas. Parece estarmos a ler o «Livro do Caminho», de Lao Tse, quando este diz que do não ser, do sem forma, do vazio (Tao) nasce o ser, o que tem forma. O que surpreende é como Gil salta os campos alinhados, de contornos definidos da lógica, e mergulha nos vapores sulfurosos da inconsistência lógica: «o lugar sem nome não é indizível ... mas não é coisa a dizer»; «o lugar não é um sentido nem um não sentido» , aqui afrontando o princípio do terceiro excluído; «não se trata do que, do sentido, não é signo nem significável.. mas (do que) cai fora da esfera tanto do signo como do sentido...», expressão que se afigura algo incoerente uma vez que na esfera do sentido tudo é significável o que a primeira parte da citação nega.
Mas o belo discurso, que inclui o paradoxo, não transcende a filosofia como ciência de rigor? E não se situa no mar do imaginário que é, sobretudo, poesia e literatura surreal?
UM SOLO MOVEDIÇO INTERIOR, EXTERIOR OU INTERNO-EXTERNO?
Gil escreve ainda a propósito do Esgueire ou intervalo-primordial, a «zona zero» da "Manhattan" das duas torres gémeas da sua filosofia, a Torre do Equívoco e a Torre das Formas realizadas:
«É o lugar-zero a partir do qual o corpo-imagem de outros se cobre de infinitas vibrações, de movimentos intervalos: se a esquematização do sentido do corpo se continua a prestar à subjetivização, é porque o solo sobre o qual se ergue a imagem do corpo está em incessante movimento de diferenciação, de dissolução e de apagamento desse mesmo solo. A "superfície" de inscrição, a pele-nua, do corpo percebido são afetados de um não-lugar, de uma não-inscrição eventual. É o não-lugar do absolutamente possível. Porque o intervalo de Esgueire é absoluto e ao Equívoco corresponde o Possível. Os possíveis do devir-outro partem de um zero de atualidade que é muito simplesmente nulo (comparável decerto ao caos de Klee; ao abismo-caos de Guaugin, ao abismo-branco de Malevitch). »
«O branco da inscrição é o que não teve lugar. É um não acontecimento. Duplo paradoxo: o de poder haver produção de um não acontecimento e o de esse acontecimento poder produzir acontecimentos (a não-inscrição pode levar um homem a inscrever, encetando por exemplo um devir-artista). »(José Gil, A imagem-nua e as pequenas perceções, pag 298; a letra a negrito é posta por mim).
Note-se que o termo "não-inscrição" usado por Deleuze e outros filósofos franceses significa o que não existe ou o que existe mas permanece invisível e indetetado. Passemos por alto, o facto de Gil definir o Esgueire de forma oscilante, ora como um não-lugar, ora como intervalo espacial- neste último caso é um lugar porque o espaço se compõe de lugares.
Em Gil, o Esgueire é o lugar-zero e o não-lugar do absolutamente possível ao passo que o Equívoco corresponde ao Possível. Há uma diferença de grau, no mínimo. Dir-se-ia que o Esgueire é o ser em potência mas esta definição aplicar-se-ia igualmente ao Equívoco...E, afinal, o que é o solo movente, em transformação, sobre o qual se ergue a imagem-nua do corpo? É algo interior ao eu psico-corporal, exterior a este ou ambas as coisas? O texto não nos esclarece.
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Aristóteles foi seguramente, um pensador muito mais profundo que Peter Singer, Bernard Williams, Hillary Putnam, Nigel Warburton, Simon Blackburn, e a generalidade dos filósofos e parafilósofos contemporâneos editados e divulgados nos media. O nosso tempo caracteriza-se por um estranho paradoxo: uma precisão tecnológica de alto grau, consubstanciada na era da informática e da robótica, e uma imprecisão e banalidade filosófica generalizadas - com excepções, felizmente - consubstanciadas em obras de filosofia para o grande público, e dezenas de milhar de teses de mestrado e doutoramento mais ou menos superficiais e coalhadas de equívocos.
Na notável obra que é a Física, Aristóteles escreveu:
«Há pois um movente primeiro e algo que é movido, e também um tempo no qual, e ademais um desde o que e um para o que, já que todo o movimento é desde algo e em direcção a algo. Porque são coisas distintas o que é primitivamente movido, aquilo a partir do que e aquilo em direcção a que algo é movido, como no caso da madeira, do calor ou do frio que são, nesta ordem, o «o que», o «em direcção ao que» e o «desde o que». É claro neste caso que o movimento está na matéria da madeira, não na forma, porque nem a forma, nem o lugar, nem a quantidade movem nem são movidos, mas há um movente, algo movido e algo para o qual é movido. (Porque a mudança toma o seu nome mais do que «em direcção ao que» do que do «a partir do que» algo é movido. Por isso, de uma mudança para o não-ser diz-se que é uma destruição, ainda que o que é destruído mude desde o ser, e de uma mudança em direcção ao ser diz-se que é uma geração, ainda que mude desde o não ser). (Aristóteles, Física, Livro V, 224b; o negrito é colocado por nós).
Esta passagem, a todos os títulos notável - não circunscrevemos a excelência das interpretações do tempo a Kant e Heidegger... - assemelha o tempo ao movimento: em ambos há um desde ou a partir de (o passado, no caso do tempo), um que é, movente (o presente, no caso do tempo) e um para que ou em direcção a que (o futuro, no caso do tempo).
A dificuldade em aceitar na totalidade esta reflexão de Aristóteles reside no facto de este postular que o movimento está na matéria da madeira e não na forma, nem no lugar.
Por que não há-de o lugar mudar com o movimento dos corpos que nele se deslocam? Por que razão só a matéria muda na madeira e não a forma?
A tese aristotélica não implica sustentar que no final de uma viagem de automóvel a matéria corporal de uma pessoa se tenha alterado, movido, ainda que a forma, o contorno, permaneça a mesma? A matéria corporal não é em si mesma um conjunto de microformas invisíveis?
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