Quarta-feira, 15 de Dezembro de 2010
A tarefa principal da filosofia é avaliar argumentos?

 

 

Em artigo na revista "Crítica (na rede)", Luís Helvécio Marques Segundo, da Universidade de Ouro Preto, no Brasil, sustenta que  «A filosofia não é mais importante que a física, ou a matemática, ou a história; tem exatamente o mesmo valor que qualquer outra atividade cognitiva.» Não partilho, exactamente, essa opinião.  

 

Ser filósofo é mais vitalmente importante do que ser cirurgião ou vendedor de fruta mas, no momento de uma operação cirúrgica, a arte da cirurgia sobrepõe-se à filosofia e, no momento do abastecimento alimentar de uma comunidade, é mais importante possuir e disponibilizar a fruta do que saber a diferença ontológica entre o Sein e o Dasein na teoria de Heidegger. A filosofia, boa ou má, comanda tudo. Se a humanidade hoje está dependente de um imenso aparelho de cuidados de saúde que não impede, antes estimula, o crescimento das doenças, mediante a inoculação de vacinas nocivas e a ingestão massiva de medicamentos químicos, desvitalizadores, é porque uma deficiente filosofia é veiculada nos mass media, na literatura e no sistema de ensino, iludindo e manipulando milhões de pessoas.

Colocar a grande filosofia ao mesmo nível que a ciência médica deficiente é fazer o jogo desta última e permitir à classe médica e à indústria farmacêutica alienar biliões de pessoas com falsas noções de cura e de higiene. Só os filósofos possuem inteligência bastante para desmontar o erro de raciocínio que subjaz à crença na vacinação. Médicos-filósofos há poucos, médicos tecnocratas, de raciocínio falacioso, há muitos. Escreve ainda Marques Segundo:

 

«Finalmente, a contribuição mais importante da filosofia para nossas vidas comuns é a avaliação de argumentos. Avaliar argumentos não é uma atividade exclusiva da filosofia, fazemos isso também em outras áreas. No entanto, pelo fato de a filosofia ser uma disciplina de natureza a priori, i.e. feita pelo raciocínio apenas, a avaliação de argumentos é uma de suas tarefas principais; e sendo esta uma tarefa principal, é de se esperar um grande avanço nas técnicas de avaliação de argumentos. (Qualquer bom manual de lógica fornecerá uma quantidade razoável dessas técnicas.) Ao avaliar argumentos filosóficos, os filósofos dão atenção às ambigüidades da linguagem natural, procuram imprecisões e idéias escondidas, e tentam tornar algumas idéias mais plausíveis, entre outras atividades. Em suma, a filosofia torna nossa capacidade de pensamento muito mais precisa e eficaz. É de se esperar, portanto, que em situações corriqueiras onde estejam envolvidos argumentos, e.g. num debate presidencial, alguém que pense como um filósofo tenha mais probabilidades de avaliar corretamente tais argumentos e dizer se são bons ou não. O estudo da filosofia, portanto, fornece algo precioso ao ser humano: a capacidade para avaliar cuidadosamente as justificações que alguém tem para determinadas ações ou crenças.» (Luís Helvécio Marques Segundo, A filosofia é superior?, in Crítica, 20 de Novembro de 2010; o negrito é colocado por nós).

 

Na verdade, a tarefa principal da filosofia não é avaliar argumentos mas sim produzir uma panorâmica geral especulativa sobre a vida em geral, o universo (sua génese e funcionamento), o homem (sua natureza e finalidades) e as suas criações: a sociedade humana, a linguagem, a tecnologia, as ciências, a arte e a cultura em geral, a política, a teologia e a mitologia. A avaliação de argumentos é uma actividade colateral e nunca é feita de forma inteiramente científica: carrega, sempre, algum lastro ideológico. A formulação de Marques Segundo indica o desvio da filosofia para o plano da retórica, essa conspurcação do pensar profundo pelo "saber dizer".  Certamente, Aristóteles, nos seus tratados de lógica, forneceu regras de avaliação de argumentos mas foi na "Física" e na "Metafísica" que produziu o essencial da sua filosofia que é especulação, interpretação e construção ontológica, cosmológica, antropológica e não... avaliação de argumentos.

 

Marques Segundo comete ainda um sério equívoco ao escrever, acima: «No entanto, pelo fato de a filosofia ser uma disciplina de natureza a priori, i.e. feita pelo raciocínio apenas, a avaliação de argumentos é uma de suas tarefas principais».

Em primeiro lugar, a filosofia não é uma disciplina unicamente a priori, mas de dupla vertente: a priori (antes e fora da experiência) e a posteriori (com e após a experiência sensível). Em cada momento nascem ou renascem problemas filosóficos, fruto do contacto da inteligência com as realidades empíricas (a posteriori): economia, política, comportamentos sexuais, informática e cibernética, astrofísica, cinema, teatro, medicina, química, moda, etc. Se a filosofia fosse somente a priori, seria imune à experiência (a posteriori), desdenharia esta: não rectificaria nada do que concebesse. É fácil de ver que a filosofia «hippie» (recusa do trabalho burocrático e do militarismo, vida livre em comunas, etc) se forjou na experiência (a posteriori) dos jovens marginais ao ritmo capitalista actual, a filosofia dos direitos dos animais nasceu a posteriori, observando o sofrimento de animais a serem espancados, feridos ou mortos por seres humanos...

Em segundo lugar a filosofia não é feita pelo raciocínio apenas, mas pela intuição inteligível (átomo, mónada, universo como uma esfera são intuições inteligíveis) e pelo conceito empírico (modelo real de socialismo venezuelano ou chinês em 2010, modelo real de capitalismo norte-americano ou canadiano em 2010 são conceitos empíricos).

 

E prossegue o académico de Ouro Preto:

«Mesmo não sendo a atividade intelectual mais importante — não há a mais importante! — a filosofia compõe, com certeza, uma parte interessante da investigação do quebra-cabeças da realidade.» 

Equivoca-se. Há um largo consenso entre os pensadores que os limites da filosofia extravasam os de cada ciência e do conjunto das ciências: só a filosofia nos oferece a visão panorâmica do todo. Por conseguinte, ela - refiro-me à grande filosofia, não ao pequeno segmento que é a filosofia analítica centrada na retórica, subserviente às ciências ideológicas - é, de facto, mais importante que qualquer ciência, do mesmo modo que sem a visão intelectual do todo não se concebe correctamente a estrutura de cada uma das partes.

 

 « www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 

 

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 03:30
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Janeiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

A tarefa principal da fil...

arquivos

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

tags

todas as tags

favoritos

Teste de filosofia do 11º...

Suicídios de pilotos de a...

David Icke: a sexualidade...

links
blogs SAPO
subscrever feeds