Em artigo de «Público» de 25 de Novembro de 2008, intitulado «Escolher conteúdos», escreve Desidério Murcho:
«A operacionalidade cognitiva é o primeiro factor importante na escolha de conteúdos escolares. A operacionalidade cognitiva de um conteúdo escolar é tanto maior quanto mais esse conteúdo pode ser proveitosamente aplicado pelo estudante para adquirir por si outros conteúdos. Em filosofia, por exemplo, insiste-se por vezes em ensinar aspectos irrelevantes da lógica aristotélica, além de a própria lógica aristotélica ser irrelevante, quando se pode ensinar lógica proposicional, que é mais operacional e mais intuitiva. O estudante é assim obrigado a decorar um conjunto de conteúdos sem qualquer aplicação para ele descobrir seja o que for, posteriormente.» (D.Murcho, in «Público», 25-11-2008; o bold é posto por nós).
A lógica proposicional assenta em diversas regras de validade/invalidade erróneas que Murcho e outros apologistas não detectam ou, se acaso já detectaram, insistem em não reconhecer. Não é, por conseguinte, superior à lógica aristotélica: necessita desta para ser corrigida e sobreviver.
Por exemplo, sobre o silogismo hipotético, o manual «A arte de pensar», de que Murcho é co-autor, declara que a afirmação do consequente (na segunda premissa) é uma forma falaciosa, isto é, um raciocínio erróneo:
P ---> Q
Q
Logo P
(Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, Filosofia 11º ano, pag 39)
Assim, segundo Murcho e os adeptos da lógica proposicional é erróneo o seguinte silogismo hipotético:
Se estou em Paris, visito a Torre Eifel.
Visito a Torre Eifel.
Logo, estou em Paris.
Ora, ao contrário do que postula a lógica proposicional, nada há de errado neste raciocínio: é válido tanto do ponto de vista substancial (verdade concreta, lógica informal) como do ponto de vista formal (validade ou verdade abstracta, lógica formal).
Por outro lado, para os defensores da lógica proposicional é necessariamente válida a seguinte forma do silogismo hipotético (modus ponens, isto é, afirmação da primeira parte da premissa condicional):
P ---> Q
P
Logo, Q
Assim segundo Murcho e os formalistas da lógica proposicional seria válido o seguinte raciocínio:
Se estou em Paris, visito a Torre Eifel.
Estou em Paris.
Logo, visito a Torre Eifel.
De facto, este raciocínio não possui validade dedutiva - a conclusão não brota necessariamente das premissas se o conexionamos com o referente, isto é, com a situação real a que se refere; é possível ir a Paris e não visitar a Torre Eifel - mas isso nem Murcho nem os teóricos desta lógica foram capazes de ver por... excesso de «operacionalidade cognitiva». A validade deste raciocínio é indutiva, contingente. A sua suposta «validade dedutiva» é uma mera tautologia.
UM AUTOR DE MANUAIS «CONTRA» OS MANUAIS
Outro dos traços da sofística de Desidério Murcho é criticar, teórica e demagogicamente, práticas que ele mesmo adopta, como se nada tivesse a ver com o assunto. Lembra o ladrão que grita «Agarra que é ladrão»:
«Dada a mentalidade aristocrática, não admira que muitos estudantes se sintam alienados da escola e não a valorizem: os manuais, programas e linguagens foram supostamente concebidos para eles, mas na verdade estão feitos contra muitos deles que reagem desprezando, e com razão, essa escola. Os responsáveis educativos pensam então que a rejeição resulta do desinteresse dos alunos pelos conteúdos, e esvaziam programas e manuais de conteúdos, enchendo-os de mais linguagens rebuscadas, que alienam ainda mais os alunos. » (D.M. in Público de 25-11-2008; o bold é nosso)
Faz sentido esta crítica? Que seriedade existe nestas frases quando sabemos que o manual «Arte de Pensar», da Didáctica Editora, de que Murcho é co-autor, é o modelo (defeituoso) de quase todos os manuais de filosofia para o 10º ano publicados nos últimos anos em Portugal?
O sofrível manual «Arte de Pensar- 10º ano» (volume I, pag 82) classifica as respostas ao problema do livre-arbítrio em 4 correntes: determinismo radical, determinismo moderado, indeterminismo e libertismo. É uma cópia do confuso Simon Blackburn no seu Dicionário de Filosofia - alguém falou em macacos de imitação e na necessidade de os combater?
É tão erróneo distinguir determinismo radical de determinismo moderado como falar de lei da gravidade radical e lei da gravidade moderada: o determinismo é sempre o mesmo, a lei da gravidade é uma só.
É igualmente um erro lógico de palmatória de Simon Blackburn e dos seus imitadores (Murcho, Aires Almeida, Pedro Galvão, António Paulo Costa, Célia Teixeira, Paula Mateus, Luís Rodrigues, etc) colocar o libertismo fora da dicotomia determinismo-indeterminismo: isso viola o princípio do terceiro excluído, segundo o qual uma coisa ou qualidade pertence ao grupo A ou ao grupo não A, exclúindo a terceira hipótese.
O libertismo é uma forma de determinismo ou de indeterminismo ou ambas as coisas, não podendo estar fora da dicotomia. Pelos vistos, o grande apologista da «superioridade» da lógica proposicional não sabe, sequer, aplicar o princípio do terceiro excluído no pensamento...
O problema do ensino da filosofia consiste, antes de mais, na deficiente conceptualização e sistematização das correntes e ideias filosóficas, mais do que na memorização mecânica. Não há filosofia sem memorização, que é o substrato «bruto» da filosofia, sem embargo de esta ultrapassar necessariamente a memorização. A filosofia emerge com a imaginação e a racionalidade construtiva-criativa operando sobre juízos, raciocínios e conceitos memorizados a partir dos textos ou do diálogo vivo.
A «OPERACIONALIDADE COGNITIVA» CONTRA O CONHECIMENTO AUTÊNTICO
Quando se troca a função primordial da filosofia - a delimitação cognitiva dos conceitos, a descoberta das pontes (correlações: juízos, raciocínios) que ligam aqueles - função essencialmente estática, pela "operacionalidade dos conceitos", isto é , do movimento dos conceitos segundo regras mecânicas, não pensadas com madurez, função dinâmica, cai-se inevitavelmente naquilo que Murcho critica com aparente seriedade:
«Alguns professores tendem a complicar o óbvio e a baralhar o simples, para poder depois fazer perguntas de aparência sofisticada. O resultado é treinar o aluno como um macaco fazedor de exames e testes, e não como um ser humano que compreende os conteúdos em causa.» (Desidério Murcho, «Escolher conteúdos», in Público de 25-11-2008).
Ora a lógica proposicional é um fazer mecânico, não um pensar originário e livre. Esta robótica do pensamento para onde alguns subfilósofos "analíticos" empurram os estudantes de filosofia do 10º e 11º ano do ensino secundário ou do curso universitário é, de facto, um treinar «macacos» por fórmulas meramente decoradas.
Não venha Murcho com a sua habitual sobranceria, típica do pensamento superficial, dizer que «ultrapassou Aristóteles» e está na ponta de lança da modernidade. Essa propaganda não colhe junto dos que pensam em profundidade e não se deixam encadear pelo uso nos grandes media da «filosofia» simplex ( existe um paralelismo entre o político José Sócrates com o seu simplex e Murcho com o seu simplismo «lógico proposicional» mas não é tema deste artigo).
A lógica proposicional foi concebida para o raciocínio matemático, quantitativo, não para o raciocínio filosófico e científico-físico, qualitativo. Nestes dois últimos há conceitos intrínsecos a outros conceitos - emerge aqui a tríade substância primeira, espécie e género, posta em relevo por Aristóteles e que a lógica proposicional, defeituosa, esqueceu - como as bonecas russas, em que uma se abre e contêm outras mais pequenas lá dentro.
A lógica proposicional está para a lógica de predicados como a teoria de Newton, do espaço uniforme e formado de linhas rectas , está para a teoria de Einstein, do espaço heterogéneo que encurva na proximidade de grandes massas. É exactamente o oposto do que o lobby da «filosofia analítica/lógica proposicional» em Portugal propaga.
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