Vários equívocos integram o manual do professor Pensar, Filosofia 11º ano, de Fátima Alves, José Arêdes, Patrícia Bastos, com revisão científica de Luís Gomes (Tema III) e Maria Luísa Ribeiro Ferreira (Temas IV e V), da Texto Editora.
UMA EQUÍVOCA DEFINIÇÃO DE SENSO COMUM
No manual lê-se a seguinte definição de senso comum:
«O senso comum
«Dizemos que o conhecimento vulgar ou senso comum:
1. resulta de uma organização espontânea da racionalidade humana a partir da:
- actividade sensitiva e da experiência pessoal acumulada ao longo da vida;
- transmissão social da
2. é um conhecimento perceptivo, pois:
- é o modo mais elementar de conhecer o mundo;
- permite uma apropriação do mundo, associando representação e significado;
- fixa essa apropriação através de uma linguagem comum;
- é um conhecimento subjectivo;
- é acrítico ou dogmático, sem justificação racional, e identifica a representação com a realidade;
- é assistemático;
(Fátima Alves, José Arêdes, Patrícia Bastos, Pensar, Filosofia 11º ano, revisão científica de Luís Gomes (Tema III) e Maria Luísa Ribeiro Ferreira (Temas IV e V), Texto Editora., pág 186)
Esta definição é confusa, apesar de consensual entre os estudiosos de filosofia. Confunde o sociológico - a noção de senso comum designa a opinião da imensa maioria das pessoas, pertence ao género sociológico, ao qual pertence igualmente a noção de senso incomum (doutrinas esotéricas, filosofias complexas, ciências especializadas e abstractas) - com o epistémico.
O senso comum é subjectivo? Não parece. As matemáticas elementares com as suas operações do tipo « oito vezes oito é igual a sessenta e quatro», «trinta e cinco mais dezassete é igual a cinquenta e dois» pertencem ao senso comum. E não são conhecimento assistemático. Há, por conseguinte, muitas ciências e teses da ciência dentro do senso comum como por exemplo, "deve-se lavar as mãos para evitar doenças", "beber chá de folhas de oliveira faz descer a tensão arterial", "usar protector solar na pele durante a exposição ao sol na praia pode evitar cancro da pele", "votar em eleições autárquicas ou parlamentares nacionais assegura, em princípio. a eleição de deputados da nossa preferência".
O senso comum comporta: uma larga dose realismo ingénuo (por exemplo: a tese de que os corpos mais pesados caem sempre mais depressa para a Terra do que os mais leves; a tese de que as vacinas imunizam das doenças) e alguma dose de realismo epistémico, não ingénuo (por exemplo: a Terra é redonda). Portanto, o conhecimento «assistemático» e «subjectivo» é o conhecimento ingénuo, eivado de erros e superficialidade, e constitui apenas uma parte do senso comum, parte essa que se tem reduzido com a elevação do nível cultural das massas. O que este manual designa por "senso comum" deveria designar-se realismo ingénuo ou conhecimento ingénuo e fica aquém da vastidão do senso comum.
OMISSÃO DA TEORIA DAS QUALIDADES SECUNDÁRIAS E PRIMÁRIAS EM DESCARTES
Uma das pedras de toque que distingue os autores que sabem e os que não sabem ontognosiologia é a explanação que fazem do racionalismo de Descartes, da sua teoria do conhecimento, do percurso desde a dúvida hiperbólica até à demonstração do mundo exterior de matéria. Ora esse percurso não é explanado devidamente neste manual, com os pormenores essenciais:
«Descartes demonstra a existência de Deus e torna-o como garantia da indubitabilidade do critério da evidência, o critério da verdade que adoptou.»
«Neste sentido, por confiar nas capacidades da razão para atingir o conhecimento certo e indubitável, o racionalismo cartesiano é considerado uma teoria dogmática, ou um dogmatismo.»
(Fátima Alves, José Arêdes, Patrícia Bastos, Pensar, Filosofia 11º ano, revisão científica de Luís Gomes (Tema III) e Maria Luísa Ribeiro Ferreira (Temas IV e V), Texto Editora., pág 156)
Nem uma palavra há no manual sobre a demonstração do mundo material exterior, isto é, sobre o raciocínio que transita da existência, simultanea e única de Deus e do cogito humano, ao mundo exterior e à constituição ontológica deste. O raciocínio de Descartes, que o manual ignora, é do seguinte teor:
4º PASSO (da Existência de Deus e do eu pensante à existência do mundo material)
«Se Deus existe e é verdadeiro nos seus actos, não consentirá que eu me engane em tudo o que vejo, sinto e ouço, logo existe o mundo de matéria, feito só de qualidades primárias, objetivas, isto é, forma, tamanho, número, movimento. As cores, os cheiros, os sons, sabores, o quente e o frio só existem no interior da minha mente, do organismo do sujeito, pois resultam de movimentos vibratórios exteriores já que o mundo exterior é apenas composto de formas, movimentos e tamanhos. .Assim, a rosa não é vermelha, é apenas forma e tamanho. O ramo de rosas é apenas formas, tamanho e um certo número de unidades, não tem cor, nem cheiro, nem peso. O mármore não é frio nem duro, o céu não tem cor.»
Nada isto é explicado no manual. É a habitual vagueza da filosofia analítica na ontognosiologia, excepção feita a Johnathan Dancy que, no entanto, comete erros notáveis.
Realismo crítico é a teoria gnosiológica segundo a qual há um mundo de matéria exterior ao espírito humano e este não capta esse mundo como é, mas distorcido por alguma percepção empírica.
NENHUMA REFERÊNCIA AO IDEALISMO DE KANT E UMA ERRÓNEA SEPARAÇÃO ENTRE RACIONALISMO E APRIORISMO
À semelhança dos outros manuais, não há, neste, nenhuma referência ao idealismo de Kant. A teoria deste filósofo é classificada apenas de apriorismo. Os autores estabelecem como três perspectivas de conhecimento: racionalismo (Descartes), empirismo (Hume), apriorismo (Kant). (pág. 178).
Há uma confusão grande porque o apriorismo de Kant é um racionalismo. No espaço a priori, segundo Kant, encontram-se as intuições puras de triângulo, círculo e outras figuras geométricas - que são ideias inatas em Descartes. No entendimento a priori estão as categorias ou conceitos puros de unidade, pluralidade, realidade, causa e efeito, etc. A priori não se opõe a racional, opõe-se sim a a posteriori. A priori e a posteriori pertencem ao género origem formal do conhecimento, ao passo que empírico e racional pertemcem ao género origem "material" do conhecimento. A teoria de Descartes também constitui um apriorismo porque as ideias inatas, pilares do conhecimento cartesiano, são conhecimentos a priori.
O kantismo é, pois, um racionalismo idealista (a matéria é ilusão sensorial), ao passo que o cartesianismo é um racionalismo realista crítico (a matéria é real embora as suas propriedades cor, som, cheiro, sabor, dureza, calor e frio, etc, sejam ilusão). É nesta distinção que o manual é omisso por incompreensão de aspectos essenciais, quer da teoria de Descartes, quer da teoria de Kant.
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O conceito de objectivismo de valores é transmitido de forma confusa em diversos manuais de filosofia. Eis um exemplo, extraído do manual «Pensar Azul», da Texto Editores:
«O objectivismo faz depender o juízo estético de critérios objectivos, por isso, quando se trata de apreciar a arte, o que deve ser determinante são as características formais do objecto.»
«O objectivismo faz depender a apreciação estética de um conjunto de características existentes no objecto estético.»
«Assim para podermos afirmar que «a Pietá é bela» , teríamos de conhecer as características formais da arte do Renascimento e depois avaliar se a Pietá tinha ou não essas qualidades estéticas e em que grau».
(Fátima Alves, José Arêdes, José Carvalho, «Pensar Azul», Texto Editores, pag.184).
Há aqui uma confusão entre objectivismo estético sensorial e objectivismo estético sensório-intelectual. Então não é possível existir objectivismo estético entre os «incultos» e iletrados? É necessária a teoria, o conhecimento formal-intelectual das propriedades do objecto para se possuir a noção objectiva de belo?
Se dezenas de milhar de crianças e adultos contemplam a paisagem marítima e costeira desde a fortaleza de Sagres e emitem o juízo estético «Isto é muito bonito», estamos perante um caso de objectivismo estético que não necessita de teorização, de comparação formal com outras paisagens marítimas, de estudos sobre a coloração do mar e a profundidade do horizonte, etc.
Objectivismo é, no essencial, a unanimidade de opinião entre um conjunto muito vasto de indivíduos sobre um mesmo objecto material (exterior) ou ideal («interior»).
A imprecisão na definição no manual «Pensar Azul» é óbvia: afirmar que «o objectivismo faz depender a apreciação estética de um conjunto de características existentes no objecto estético» não define objectivismo porque também o subjectivismo «faz depender a apreciação estética de um conjunto de características existentes no objecto estético.» O subjectivista, em regra, não nega características ao objecto exterior, até pode descrevê-las de forma razoavelmente objectiva mas adiciona-lhes o seu gosto pessoal, a sua interpretação íntima ...
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O manual «Pensar Azul» da Texto Editores oferece-nos a seguinte síntese sobre as teorias que equacionam o binómio liberdade/ determinismo na acção humana:
«Teorias àcerca do problema do livre-arbítrio:
a) determinismo radical ou incompatibilismo
b) indeterminismo
c) determinismo moderado (compatibilismo)
d) libertarismo.
«Para o incompatibilismo ou determinismo radical o livre-arbítrio é incompatível com a concepção de um mundo regido por leis causais, não tendo os seres humanos livre-arbítrio.»
«Segundo o indeterminismo, alguns acontecimentos, como é o caso dos estados mentais, não têm causa, ou seja, ocorrem aleatoriamente.»
«Para o compatibilismo ou determinismo moderado o mundo é regido por leis causais mas a acção humana é livre por ser determinada mas não constrangida.»
«O libertarismo defende que as escolhas humanas não são nem casualmente determinadas nem aleatórias. São produto da deliberação racional e responsável do agente.»
(in Filosofia 10º Ano, de Fátima Alves/José Arêdes/ José Carvalho, Revisão Científica de Carlos João Correia, Texto Editores, Lisboa 2007, pag. 62).
A confusão desta classificação é patente a quem meditar nela com lucidez.
Antes de mais a posição nº 3, intitulada compatibilismo ou determinismo moderado, é exactamente a mesma que a nº 4, intitulada libertarismo. Dizer que são diferentes é o mesmo que dizer que a Avenida da Liberdade de Lisboa quando sobe é diferente da mesma Avenida da Liberdade de Lisboa quando desce (no mesmo troço). É apenas uma questão de perspectiva, de terminologia: determinismo associado a livre-arbítrio ou libertismo (livre-arbítrio) associado a determinismo.
Aliás, sobre o libertarismo escrevem Fátima Alves, José Arêdes e José Carvalho:
«Os libertaristas consideram que as nossas acções não são causalmente determinadas nem aleatórias.Partindo do pressuposto dualista de que o mundo material e a acção humana são de natureza diferente, concluem que também se regem por leis diferentes e, por essa razão, as leis (físicas) que regem os fenómenos corporais (mundo material) não se aplicam aos fenómenos mentais. Trata-se de uma posição dualista.» (Pensar Azul, Texto Editores, pag 55).
Classificam como dualista o libertarismo mas, de forma míope, não conseguem ver que o que designam por determinismo moderado ou compatibilismo é, igualmente, um dualismo, visto pressupor leis naturais inflexíveis e vontade livre autónoma...
Se, afinal, o determinismo moderado coexiste com o livre-arbítrio que propicia acções humanas livres e responsáveis e o libertarismo admite que o mundo físico é regido por leis deterministas mas o mundo mental do livre-arbítrio não, onde está a diferença?
Em segundo lugar, a definição fixada na posição nº 2, baptizada de indeterminismo, não possui clareza. O dito «indeterminismo» inclui livre-arbítrio? Ou não? Porque razão não há-de ser uma modalidade do libertismo/ determinismo moderado, já que é compatível o livre-arbítrio com a erupção de estados mentais irracionais, inesperados ou imprevisíveis?
É esta confusão na hierarquização de conceitos, baseada na hiper-análise (desdobramento de uma mesma definição em várias aparentemente diferentes, semeando o caos intelectual) que os professores e alunos de filosofia em Portugal absorvem de manuais cuja única virtude é a profusão de textos de diversos autores.
Que vale a universidade, na área da filosofia, se é dela que saem tantos pequenos «filósofos» com licenciaturas, mestrados e doutoramentos, que elaboram manuais escolares deficientes e exames nacionais de filosofia repletos de erros?
O DETERMINISMO NÃO CONSIDERA ILUSÓRIA A LIBERDADE
No Manual português «Percursos, Filosofia 10º Ano» lê-se:
«Para os defensores do livre-arbítrio e do compatibilismo, o ser humano é livre e tem controlo sobre si mesmo.»
«Para o determinismo, a liberdade é uma ilusão. Não temos controlo sobre os nossos actos».
(Carlos Amorim, Catarina Pires, «Percursos, Filosofia 10º ano», revisão científica José A. Ribeiro Graça, Areal Editores, Lisboa 2007, pag. 52)
Para o determinismo a liberdade é uma ilusão? Eis uma falácia. Em primeiro lugar, o determinismo não pensa: é um sistema objectivo, um princípio segundo o qual nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Se no entanto, entendermos por determinismo o conjunto dos pensadores deterministas, a frase continua a ser uma falácia: a generalidade dos pensadores deterministas admite o livre-arbítrio, compatibiliza as leis inflexíveis na natureza física e psicofísica com a liberdade de escolher. A liberdade não existe dentro da malha apertada do determinismo mas existe fora desta, justaposta a ela. Libertismo é apemas uma propriedade comum a um determinismo (moderado) e a um indeterminismo biofísico, não é uma corrente em si mesma.
Carlos Amorim, Catarina Pires e José A.Ribeiro Graça confundem determinismo com fatalismo. É óbvio que estas imprecisões de conceitos mergulham alunos e professores num mundo de paralogismos, de equívocos.
Nota: Para obter um quadro geral inovador, que traçamos segundo o método dialéctico, das teorias referentes ao livre-arbítrio, fatalismo, determinismo e indeterminismo, consultar o artigo de 6 de Maio de 2007 neste blog, intitulado «As diversas teorias sobre o livre-arbítrio e a necessidade (Crítica de Manuais Escolares-XVIII)».
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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