No final do ano lectivo de 2012-2013, eis um teste de filosofia do 10º ano de escolaridade em Portugal que evita as perguntas de resposta de escolha múltipla com um "X" que criam, em regra, inúmeras injustiças na avaliação dos alunos, prejudicando muitos dos que sabem filosofar. A anti filosofia ou sub filosofia denominada «filosofia analítica», com distorsões frequentes no plano lógico e um grande vazio ontológico-metafísico, impera no ensino secundário e quase impera no ensino universitário.
Escola Secundária Diogo de Gouveia com 3º Ciclo, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA B
Professor: Francisco Queiroz
28 de Maio de 2013
I
“A obra de arte é um heterocosmos. Platão estabeleceu seis degraus na dialética de amar o Belo. A teoria da luz e da cor em Hegel é realismo crítico»
1) Explique concretamente este texto.
II
A) As três fases da Ideia Absoluta na História segundo Hegel e as três modalidades do sublime segundo Kant.
B) Realismo e irrealismo estético, objectivismo e subjectivismo estéticos.
III
3)Disserte sobre os seguintes temas:
«O conteúdo e a forma na obra de arte, segundo Hegel. O que é arte (pondere exemplos como: o urinol de Marcel Duchamp intitulado «A fonte», a pedra extraída da ribeira e posta na sala de museu por Alberto Carneiro, os quadros surrealistas, etc) a função de catarse da obra de arte, a arte pela arte, o princípio hermético macrocosmos-microcosmos.
CORRECÇÃO DO TESTE
(COTADO PARA 20 VALORES)
1) A obra de arte é um outro (hetero, em grego) mundo organizado (cosmos, em grego). Se pintarmos um quadro surrealista, em que a figura central é um tronco de árvore com uma cabeça de homem, estamos a criar um outro mundo, imaginário, plasmado na tela. (VALE DOIS VALORES). Na sua dialéctica ascensional para conhecer e amar o Belo, Platão apontou os seguintes procedimentos: começar por amar um só corpo belo, depois amar vários corpos belos, em seguida amar a beleza das almas, depois amar a beleza das leis e dos costumes, amar então as ciências e por último amar o Belo em Si, isto é, o arquétipo (VALE DOIS VALORES). Hegel sustentou que a luz do sol é incolor e que forma as diferentes cores ao embater nas diferentes escuridades, isto é, zonas da matéria que absorvem a luz em graus diferentes. Se vemos a cor do céu como azul é porque a luz solar ao embater na atmosfera se dispersa e torna claro o céu que em si mesmo é negro. Isto é realisno crítico, doutrina segundo a qual há o mundo de matéria exterior a nós que não é tal como os sentidos no-lo mostram. (VALE DOIS VALORES).
2) A) Para Hegel, a ideia absoluta ou Deus desenvolve-se em três fases: a primeira é o Ser em si, ou Deus espírito, sozinho, antes de criar o universo, o espaço, o tempo, a matéria e pode equiparar-se ao sublime nobre em Kant, isto é, um ente grandioso e simples, que suscita espiritualidade; a segunda é o Ser fora de Si ou transformação de Deus no seu oposto (alienação), a matéria física, em astros, céus, montanhas, oceanos, vulcões, plantas e animais e pode equiparar-se ao sublime terrível - algo de grandioso que suscita horror ou medo - como no caso de um vulcão expelindo lava ou de um precipício imenso; a terceira é o Ser para si ou transformação de Deus em humanidade que vai progredindo lentamente em direcção à liberdade - desde o mundo oriental, em que só um homem é livre, até ao cristianismo reformado por Lutero e completado pela revolução francesa de 1789, em que todos os homens são livres - que é o fim da história, fase que pode comparar-se ao sublime magnífico, em Kant - algo de grandioso que integra múltiplas riquezas materiais como o palácio de Versailles ou a Capela Sistina (VALE QUATRO VALORES; HÁ OUTRAS MANEIRAS DE RELACIONAR).
2) B) O realismo estético assegura que o belo e o feio existem fora das mentes humanas, ou num mundo de arquétipos no caso do belo (platonismo) ou nos próprios objectos físicos (aristotelismo). O irrealismo estético assevera que o belo e o feio existem só na imaginação e na conceptualização da mente humana. Ambos podem ser objectivistas - o belo e o feio são percebidos do mesmo modo por todas as pessoas; o objectivismo pode ser extra anima ou intra anima - e ambos podem ser subjectivistas - o belo e o feio variam de pessoa a pessoa. (VALE TRÊS VALORES).
3) Segundo Hegel, o conteúdo de uma obra de arte é a ideia e o sentimento que suscita nos que a contemplam. A forma é os materiais empregues na obra de arte - o mármore da estátua, a tela do quadro, etc - e os contornos da figura. (VALE DOIS VALORES). A arte é uma actividade de criação que visa suscitar a sensação do belo, ou por antítese, a sensação do feio. As fronteiras entre a arte e a indústria esbatem-se como no caso do urinol de Duchamp exposto num museu - só o título «A fonte» eleva o urinol à categoria de arte. As fronteiras entre a arte e a natureza biofísica esbatem-se como no caso da pedra retirada por Alberto Carneiro de uma ribeira e colocada numa sala de museu enquanto a exposição durar - a pedra só é arte naquele contexto da sala.(VALE DOIS VALORES). A função de catarse da obra de arte é o facto de ela permitir soltar as emoções e sentimentos recalcados no actor ou no espectador e purificar as almas. Exemplo: há espectadores que choram ao ver as cenas da flagelação do filme «A paixão de Cristo». (VALE UM VALOR). A arte pela arte é a corrente que afirma que a obra de arte não tem fins morais, políticos ou religiosos mas apenas busca suscitar a emoção estética (VALE UM VALOR). O princípio hermético macrocosmo-microcosmo estabelece que o que está em cima, o grande universo, espelha-se no que está em baixo, o pequeno universo. Por exemplo: a catedral medieval (microcosmos) espelha na sua planta com o transepto como os braços horizontais de uma cruz o corpo cósmico (idealizado) de Cristo crucificado com uma gigantesca dimensão (macrocosmos), que, supostamente, atravessaria o universo (VALE UM VALOR).
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Eis um teste de filosofia para o 10º ano da escolaridade em Portugal para o terceiro período lectivo, inspirado no princípio da substancialidade inteligente dos conteúdos: deve dar-se aos alunos múltiplos conteúdos filosóficos, definições claras, ricas e precisas, porque o filosofar não se alimenta do vazio e da vagueza, e deve-se pedir aos alunos que relacionem esses conteúdos.
A grande maioria dos professores de filosofia em Portugal, subsidiária dos clichés da lógica proposicional e de obtusos autores de manuais da linha filosófica "analítica", poderia ensinar muito melhor os seus alunos se pensasse em profundidade, dominasse os conceitos substanciais e ampliasse o horizonte de conteúdos a leccionar. Por exemplo, quantos professores sabem distinguir realismo crítico de realismo natural, em gnosiologia? Poucos...Por isso, expor com clareza conteúdos (exemplos: vitalismo, mecanicismo, leis da dialética, teoria dos três mundos em Platão, teorias aristotélicas da forma e da matéria, do acto e da potência, das quatro causas de um ente, estoicismo de Marco Aurélio, taoísmo, hegelianismo) é muito mais importante do que dar regras ou formas vazias (tabelas de verdade, derivações, etc) porque os conteúdos encerram ideias, teses substanciais e só isso permite o pensamento autêntico.
Vejamos o teste, centrado na Dimensão Estética:
Escola Secundária Diogo de Gouveia com 3º Ciclo, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA A
Maio de 2012. Professor: Francisco Queiroz
I
“O carácter heterocósmico da obra de arte liga-se ao facto de esta ser símbolo. A teoria da cor em Hegel exprime o realismo crítico deste e nessa teoria o azul e o vermelho desempenham funções diferentes na pintura medieval e renascentista. Objectivismo estético não implica necessariamente realismo estético. Kant postulou três modalidades do sublime, que se distingue do belo.»
1) Explique, concretamente, cada uma destas frases.
II
2) Relacione, justificando:
A) As três fases da ideia absoluta em Hegel e a lei da tríade.
B) Artes não plásticas e catarse.
C) Cubismo e teoria cosmológica de Pitágoras de Samos.
D) Forma e conteúdo na obra de arte, segundo Hegel, e racionalismo/ empirismo.
E) Teoria da forma e da matéria-prima universal (hylé), em Aristóteles, e leis do salto qualitativo e dos dois aspectos da contradição.
III
3)Disserte livremente, a partir do seguinte tema e abordando as seguintes questões e outras que entender:
«A arte. Há obras de arte sem conteúdo? Haverá arte sem arquétipos? É preferível a arte pela arte ou a arte ideológica? É a razão ou os sentidos ou outra instância a fonte do sentimento estético? A arte é filosófica ou anti-filosófica?
CORREÇÃO DO TESTE (COTADO PARA UM TOTAL DE 20 VALORES)
1) O carácter heterocósmico ( hetero significa outro, em grego, e cosmos é um universo ordenado) da obra de arte significa que esta é um mundo à parte da natureza biofísica e ao mesmo tempo um símbolo, isto é, um sinal gráfico-visual, auditivo, etc, de uma realidade ausente, metafísica ou não. Assim, por exemplo, o quadro de Salvador Dali com os relógios dobrados ou derretidos é um outro cosmos, na tela, e simboliza ou representa o passar do tempo de uma maneira diferente ou qualquer outra ideia. (nota: estas frases valem um total de 2 valores). A teoria da cor em Hegel sustenta que a luz é incolor e que a cor nasce da incidência da luz sobre as diferentes escuridades da matéria. Isso já constitui realismo crítico, isto é, doutrina de que há um mundo de matéria fora das nossas mentes que estas não captam tal como é. Realismo crítico em Hegel é também este sustentar que o céu é negro, de dia, embora pareça azul claro devido à dispersão da luz solar ao entrar na atmosfera. O azul é a cor maternal nos quadros renascentistas - a Virgem Maria segurando o menino Jesus, tem manto azul - o vermelho a cor viril da realeza - a Virgem Maria como rainha do céu tem manto vermelho. (nota: estas frases valem um total de 2 valores). Objectivismo estético é a doutrina segundo a qual os valores de belo e feio são os mesmos para todas ou quase todas as pessoas a respeito de cada caso, quer esses valores existam só nas mentes (irrealismo estético) ou no mundo exterior físico (realismo estético) ou mundo exterior arquetípico ( realismo estético platónico). (nota: estas frases valem um total de 2 valores). Para Kant, o sublime, isto é, o grandioso espiritual, como a filosofia e o masculino, distingue-se do belo, isto é, o pequeno, adornado e perfeito do ponto de vista visual, como a arte da cerâmica e o feminino. O subline divide-se em três modalidades: o sublime nobre, grandioso e simples, como a planície alentejana, ou o mar azul imenso e calmo; o sublime terrível, grandioso e criador de medo ou horror, como um quadro do Inferno do catolicismo ou um precipício imenso à beira do qual estamos; o sublime magnífico, grandioso e repleto de riquezas materiais, adornos, como a basílica de São Pedro e as igrejas barrocas cheias de talha dourada, pratas, mármores raros, etc. (nota: estas frases valem um total de 2 valores; no seu todo, a interpretação do texto da pergunta I vale 8 valores).
2) A) As três fases da ideia absoluta em Hegel são: a fase lógica ou do ser em si, que é a ideia absoluta ou Deus antes de criar o universo, o espaço e o tempo ( é a tese da tríade); a fase da natureza ou do ser fora de si, que é a da ideia absoluta alenada em natureza biofísica, Deus transformado em astros, montanhas, árvores, rios, animais, etc, sem reflectir ( é a antítese ou negação da primeira fase); a fase da humanidade ou do ser para si em que a ideia absoluta encarna em homens e sociedades que, ao longo dos séculos se vão espiritualizando grau a grau, através das formas de estado, da arte, da religião e da filosofia (é a síntese ou negação da negação que resume as duas anteriores; neste caso, a humanidade incorpora o espírito da primeira fase e a matéria corporal da segunda). A lei da tríade sustenta que o desenvolvimento se baseia em tese-antítese- síntese ( a resposta vale 2 valores).
2) B) As artes não plásticas são aquelas que não se plasmam ou fixam na matéria: música, cinema, poesia, dança, teatro. Em todas estas há a catarsis ou purificação da alma, do espectador e do artista: ao ver uma cena comovente num filme ou no teatro, vêm lágrimas aos olhos de muitos espectadores e isso é catarse; ao ouvir uma música rock ou pop, a pessoa balança o corpo, salta, dança e faz catarse ao libertar emoções. ( vale um valor)
2) C) O cubismo é uma corrente artística, de inícios do século XX, que transfigura a realidade natural reduzindo-a a figuras geométricas, nomeadamente a cubos, paralelipípedos, cilindros, etc. A cosmologia de Pitágoras de Samos sustenta que o cosmos se formou a partir de figuras geométricas que são números: do vazio veio um ponto (este representa o número um); o ponto desdobrou-se em dois que formam uma recta (esta representa o número dois); da recta sai um ponto que projetando-se sobre ela de infinitos modos tece um plano ( este representa o número três); do plano sai um ponto que projetando-se segundo três rectas gera um tetraedro ou pirâmide de três lados e uma base (esta representa o número quatro). Planos, linhas e pirãmides são comuns à doutrina de Pitágoras e ao cubismo na descrição ou reconstrução dos objectos do mundo real. (vale dois valores).
2) D) Para Hegel, a forma da obra de arte é os materiais e os contornos e superfícies que a compõem, e o conteúdo é o ideal e o sentimento que transmite. Assim, a Pietá de Miguel Ángelo tem como forma o mármore e a figuras da Virgem com Cristo morto sobre as coxas e como conteúdo o sofrimento da mãe do Salvador, na perspetiva cristã, e a ideia de que a morte de Cristo redimiu a humanidade dos pecados. A forma da obra de arte liga-se sobretudo ao empirismo, corrente que afirma que quase todas as nossas ideias são cópias empalidecidas das percepções empíricas, porque estas nos mostram a cor do quadro, o mármore da estátua, etc. O conteúdo da obra de arte liga-se sobretudo ao racionalismo, corrente que afirma que muitas das nossas ideias não derivam das percepções empíricas e contrariam estas, porque descobrir o conteúdo, o significado de uma obra de arte, envolve muitas vezes o raciocínio, o pensar reflectido. (vale dois valores)
2) E) Segundo Aristóteles, há uma matéria-prima universal (hylé) que ao ser moldada por diversas formas ( a forma de cavalo, a forma de árvore, etc) dá origem a objectos (compostos): esta e aquela árvore, este e aquele cavalo, este e aquele homem, etc. A lei do salto qualitativo diz que a acumulação lenta e gradual de um factor num fenómeno gera um salto brusco de qualidade: assim, podemos imaginar que a forma cavalo começa a introduzir-se lentamente na hylé ou matéria informe até que se dá o salto qualtitativo, o aparecimento de um cavalo físico real. A lei dos dois aspectos diz que numa contradição há dois aspectos em regra desigualmente desenvolvidos: assim, no objecto ou composto cavalo, a forma é o aspecto dominante e a matéria-prima ou hylé é o aspecto dominado. (vale dois valores)
3) A resposta é livre, aflorando as perguntas sectoriais dentro da pergunta (vale três valores).
Nota para a correção: nas perguntas de relacionação entre dois ou mais conceitos, a cotação para cada resposta dada deve obedecer a um princípio de premiar o aluno que estuda e sabe as definições separadamente: assim deverá receber 50% a 60% da cotação da pergunta desde que defina correctamente os conceitos, embora não consiga interligá-los.
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